“Bensaïd de certa forma esclarece o texto de Marx e aprofunda a análise sobre o embate ‘propriedade privada versus direitos e costumes tradicionais’. E torna esse debate muito atual, uma vez que estamos em uma época em que todas as dimensões da vida passam a ser privatizadas"
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Os despossuídos de Marx e o moderno Capitalismo Verde
31/05/2017
por
Verena Glass

Roda de conversa em São Paulo parte dos textos de Marx e Daniel Bensaïd sobre os Debates acerca da Lei sobre o Furto de Madeira para discutir a relação entre marxismo e ecologia

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Debate “Era Marx ecologista?” na livraria Tapera Taperá
Por Verena Glass

Nos idos de 1842, Karl Marx, então com 24 anos, escreveu uma série de artigos para a Rheinische Zeitung (Gazeta Renana) sobre um debate que era levado a cabo pelo parlamento local acerca da criação da Lei da Repressão ao Roubo de Lenha. Ou seja, punição à população pobre que, conforme costume secular, coletava cavacos e galhos das florestas para minimizar os efeitos do frio rigoroso do inverno alemão. Os  proprietários dos bosques haviam exigido que tal costume – coleta de restos de madeira – fosse considerado crime como forma de proteção de suas propriedades, transformando assim camponeses e pobres urbanos em delinquentes.

O contrassenso da criminalização de uma tradição que, até então, havia possibilitado a sobrevivência dos despossuídos de sua região natal, levou Marx a criticar duramente a ideia da primazia da propriedade privada sobre direitos e costumes tradicionais, e da confluência do Estado com interesses privados, a Lei, a propriedade e a exclusão econômica. Assim como não faz sentido que os ricos reivindiquem as esmolas dadas aos pobres nas ruas, ponderou Marx, também não faz nenhum sentido que eles reivindiquem propriedade exclusiva dos bens comuns da natureza.

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Isabel Loureiro: Bensaïd ajuda a compreender Marx

Para os estudiosos do marxismo, os Debates acerca da Lei sobre o Furto de Madeira, como ficaram conhecidas as reflexões do jovem Karl na Gazeta Renana, seriam o embrião de sua crítica da economia política, desenvolvida posteriormente. Mas e se lêssemos estas reflexões sob outro prisma? Se a análise se centrasse no conceito, também tangenciado nos Debates, de bens comuns e financeirização da natureza?

Foi com isso em mente que a Fundação Rosa Luxemburgo e a filósofa Isabel Loureiro propuseram um debate, realizado em São Paulo no último dia 23 em parceria com a Editora Boitempo e a Livraria Tapera Taperá, sobre o recém lançado livro Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira (Editora Boitempo). O evento tinha por título: “Era Marx ecologista?”

Para justificar esta provocação, Isabel Loureiro se remete ao filósofo francês Daniel Bensaïd, que escreveu a primeira parte do livro Os Despossuídos. “Bensaïd de certa forma esclarece o texto de Marx e aprofunda a análise sobre o embate  ‘propriedade privada versus direitos e costumes tradicionais’. E torna esse debate muito atual, uma vez que estamos em uma época em que todas as dimensões da vida passam a ser privatizadas. Quando analisamos a crise ambiental dos nossos tempos, surge a premência dos bens comuns não passíveis de privatização, bem como a ideia do domínio público como contraposição às extremas desigualdades e à destruição do meio ambiente”, explica.

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Luiz Marques: Marx relacionou capital com desagregação ambiental

Para os debatedores convidados – o professor do departamento de História da Unicamp e autor do livro Capitalismo e Colapso Ambiental, Luiz Marques, Camila Moreno, formada em filosofia e direito e atualmente doutoranda do CPDA/UFRRJ, e o historiador e filósofo José Correa Leite, Professor da Faculdade de Comunicação da FAAP – é consenso que o capitalismo está na raiz dos grandes problemas ambientais (tais como a superexploração dos bens naturais pelos processos de industrialização, urbanização, aumento do consumo, etc.).

Luiz Marques pondera, no entanto, que Marx e Engels pouco aprofundaram as reflexões sobre a questão ambiental, apesar de destacarem os impactos da produção capitalista sobre a natureza. Segundo Marques, Marx criou uma relação causal entre destruição e capital, mas, iluminista e adepto da dialética hegeliana, acreditava que o capitalismo se autodestruiria; e com ele desapareceriam seus efeitos nocivos. Marx até chegou a dialogar com os populistas russos, como Sergei Podolinsky, pioneiro do pensamento da  economia ecológica, explica José Correa, mas desavenças de Engels com os russos levaram ao desinteresse de Marx pelo movimento, que criou conceitos como biosfera, processos ecológicos e biodiversidade, entre outros. “Estes são conceitos não encampados pelo marxismo”, lamenta Correa.

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José Correa: Russos aprofundaram mais questões ecológicas

A dificuldade do marxismo de então, bem como do marxismo atual, em incorporar nas leituras políticas e econômicas os fatores ambientais, também tem limitado a leitura dos fenômenos modernos da nova Economia Verde, o discurso pseudo-ambiental do mais voraz capitalismo dos dias atuais. E, neste sentido também, a financeirização da natureza e o debate sobre os bens comuns, cada vez mais predados pelo capital nos modelos de Desenvolvimento ou Neodesenvolvimentismo hegemônicos.

Camila Moreno, que há mais de oito anos acompanha as negociações de cúpula das Nações Unidas sobre Clima pelo Grupo Carta De Belém, destaca que o conceito de Capital Natural, base das proposições do sistema ONU, do BID e do G-20 nas negociações sobre clima e meio ambiente, hegemoniza o debate sobre a chamada governança da natureza. Surgem e se fortalecem, nesse âmbito, as proposições acerca do mercado mundial de carbono, bolsas verdes, bolsas do clima e outros como métrica global de gestão dos ecossistemas, na premissa de que os problemas ecológicos só podem ser solucionados a partir de relações econômicas (preservação só é possível se houver pagamento e lucratividade).

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Camila Moreno: Financeirização da natureza é a nova cara do capital

Marx não era ecologista no sentido que a palavra tem hoje, mas certamente apontou, de muitas formas, a relação entre o capitalismo e a degradação ambiental do Planeta. Grosso modo, a predação capitalista da natureza – seja na revolução industrial e no fomento ao consumo, seja através do moderno agronegócio, da transgenia, das propostas de pagamento por serviços ambientais, entre outros -, defenderam os debatedores, é uma realidade que precisa urgentemente ser compreendida e incorporada pela esquerda marxista dos nossos dias, uma vez que só assim se faz possível entender e combater os mecanismos que perpetuam os despossuídos e a criminalização de suas lutas por uma vida digna.

 

Ou ouça a íntegra de debate no soundcloud da Radio Popular ou assista o vídeo abaixo