Por que a enchente no Rio Grande do Sul é tão devastadora?

Catástrofes climáticas como essa não são um caso isolado. Fenômenos extremos têm ocorrido com maior frequência no Brasil e no mundo
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Por que a enchente no Rio Grande do Sul é tão devastadora?
17/05/2024
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Elisangela Soldateli Paim

No Rio Grande do Sul, mais de 2 milhões de pessoas, em 461 dos 497 municípios, foram afetadas em decorrência das chuvas que atingem o estado desde o dia 28 de abril. O número de mortes chega a 151. Já são mais de 100 pessoas desaparecidas e, aproximadamente, 80 mil estão em abrigos. Os dados são da Defesa Civil, do dia 16 de maio de 2024. 

Foto: Gilvan Rocha / Agência Brasil
Foto: Gilvan Rocha / Agência Brasil

Catástrofes climáticas como essa não são um caso isolado. Fenômenos extremos como este têm ocorrido com maior frequência e intensidade em todas as regiões do Brasil e ao redor do planeta nos últimos anos. 

Inundações têm assolado o Quênia, país no continente africano, desde março mais de 200 pessoas já morreram. No Brasil, somente em 2023, foram registrados 12 eventos climáticos extremos, segundo a Organização Meteorológica Mundial. Tais episódios aprofundaram ainda mais as desigualdades sociais e econômicas no país. 

As consequências da crise climática evidenciam o racismo ambiental, uma vez que os eventos climáticos atingem com mais intensidade populações mais vulneráveis, em sua maioria pessoas negras, mulheres, crianças e idosos. 

As fortes chuvas no Maranhão e o mapa das regiões mais afetadas no Rio Grande do Sul comprova isso. Na região metropolitana de Porto Alegre, capital do estado, as populações de baixa renda são as mais atingidas. 

Segundo a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), todas as 145 comunidades quilombolas, em 70 municípios do Rio Grande do Sul, foram atingidas pelas enchentes.

Enchente no Rio Grande do Sul - Foto: Defesa Civil/ RS

Enchente no Rio Grande do Sul – Foto: Defesa Civil/ RS

“Não olhe para cima”

A situação poderia ter sido completamente diferente se cientistas locais e ambientalistas tivessem sido ouvidos. Há pelo menos 10 anos, o relatório “Brasil 2040: cenário e alternativas de adaptação à mudança do clima”, da Presidência da República, já indicava chuvas acentuadas no Sul do Brasil em decorrência das mudanças climáticas. 

O documento também indicava a necessidade de execução de sistemas de alerta e de planos de contingência. No entanto, após concluído, o estudo foi engavetado e providências não foram tomadas por parte dos diversos entes governamentais.

É necessário ressaltar o desmonte da legislação ambiental no Brasil ocorrido durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022) e, particularmente, no estado do Rio Grande do Sul, no mandato de Eduardo Leite (2019 – atual). 

Em 2019, foram feitas modificações em 480 pontos da legislação ambiental no estado sulino. A flexibilização das políticas ambientais visava beneficiar setores econômicos – principalmente os vinculados com a expansão do plantio de soja, eucaliptos e o setor minerário. 

Uma das mudanças mais emblemáticas foi a aplicação do autolicenciamento em alguns casos. Este processo possibilita que as empresas assumam a responsabilidade pelo licenciamento de suas próprias atividades, dispensando a análise e aprovação (ou não) por parte dos órgãos ambientais. Foi aprovada também a redução dos recursos públicos destinados à prevenção de desastres.

Redução de emissões

Os sinais do agravamento da crise climática são evidentes em todo o planeta. Para reduzir os impactos negativos desta crise, a principal saída é a redução das emissões de gases de efeito estufa. 

O Brasil, como 6º maior emissor de gases de efeito estufa do planeta, tem o desafio de acabar com o desmatamento na Amazônia e com a supressão de vegetação nativa de outros biomas como, por exemplo, o Pantanal, a Caatinga, a Mata Atlântica e o Pampa; além de recuperar áreas já degradadas. 

Vista aérea do bairro alagado de Canoas, região metropolitana de Porto Alegre. Níveis históricos de fortes chuvas causaram a inundação do Lago Guaíba, com 5,35 metros de altura - Foto: ACNUR/Daniel Marenco.

Vista aérea do bairro alagado de Canoas, região metropolitana de Porto Alegre. Níveis históricos de fortes chuvas causaram a inundação do Lago Guaíba, com 5,35 metros de altura – Foto: ACNUR/Daniel Marenco.

Também é necessário eliminar a exploração dos combustíveis fósseis e não promover a ampliação da exploração em novas regiões, como o caso da Foz do rio Amazonas. 

O país tem a responsabilidade de atuar em instâncias regionais e globais para que os demais países também implementem políticas concretas de redução de emissões. 

Contradições à brasileira

Aqui há grandes contradições, já que o próprio governo Lula sempre alimentou a economia do combustível fóssil e, recentemente, entrou na Organização dos Países Exportadores de Petróleo e Aliados (Opep+). Ainda sobre o setor energético, é primordial não promover a simples substituição de fontes fósseis por fontes renováveis, já que estas – quando instaladas em grande escala – fragmentam territórios e ocasionam danos socioambientais irreversíveis

Além destas medidas de redução de emissões e políticas energéticas implementadas com justiça, são necessárias políticas efetivas de mitigação e adaptação às mudanças climáticas nos âmbitos locais, regionais e nacionais. O Brasil está bastante atrasado neste processo. 

Somente nesta quarta-feira (15), o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei 4.129/2021 –com um único voto contra, de Flávio Bolsonaro (PL/RJ)- que estabelece regras gerais para a formulação de planos de adaptação às mudanças climáticas.

No entanto, em 2023, o governo Lula retomou os trabalhos relacionados com o Plano nacional sobre mudança do clima, que abarca estratégia em três áreas: mitigação, adaptação e transversal entre estes últimos dois. Participam diversos atores governamentais, da sociedade civil, do setor privado e academia. Os desafios são complexos considerando também os retrocessos dos últimos anos.

No Rio Grande do Sul é importante considerar que o padrão histórico de ocupação do território do estado é baseado no desmatamento e na degradação dos campos nativos que compõem o Bioma Pampa. Mais do que nunca são extremamente necessárias e urgentes medidas de enfrentamento à mineração de carvão e de areia, ao latifúndio da soja e tabaco no Rio Grande do Sul.  

O que aprendemos?

A tragédia no Rio Grande do Sul faz aflorar a reflexão sobre o modelo de desenvolvimento que estamos promovendo. Quais lições estamos aprendendo? Quem vai pagar o custo de recuperação da infraestrutura destruída? Quais mudanças vamos realizar?

Cabe mencionar todas as ações fundamentais de solidariedade que têm sido tomadas – por movimentos populares, organizações sociais, comunidades indígenas, negras e periféricas – para minimizar a fome, a falta de água, de produtos básicos de higiene, a destruição de moradias e tantos outros danos que ficarão na memória das pessoas. 

Logo no início das chuvas, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) lançou a Campanha de Solidariedade Sem Terra ao Rio Grande do Sul. O Movimento dos Pequenos Agricultores e Pequenas Agricultoras (MPA) já doou mais de seis toneladas de alimentos agroecológicos para as cozinhas solidárias que estão garantindo alimentação para as atingidas/os. 

O Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Teto (MTST), o Movimento dos Atingidos e Atingidas por Barragens (MAB), o Movimento das Mulheres Camponesas (MMC), entre tantas outras organizações, são parte ativa neste processo de solidariedade e cuidado.

É um fato concreto que enchentes, ondas de calor ou frio extremo, tornados, afetam a segurança alimentar dos povos ao ocasionar prejuízos às plantações, também aumentam o preço dos alimentos, geram desabastecimento e aprofundam a fome em diversos continentes, além da violência. 

Mais que nunca se faz necessário debater, seguir construindo propostas e práticas políticas transformadoras que contemplem a análise das múltiplas crises que enfrentamos, da qual a crise climática é parte cada vez mais evidente. 

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*Elisangela Soldateli Paim é coordenadora latinoamericana do programa clima e energia na Fundação Rosa Luxemburgo