Se essa fonte de energia é assim tão boa, porque em alguns países – como a Alemanha, a Bélgica, a Suíça – seus governos decidiram abandoná-la? Porque em outros – como a França e o Japão – há grandes movimentos sociais que lutam para que seus países “saiam” do nuclear? O que explica essa oposição a usinas nucleares?
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Porque se opor a usinas nucleares? Da inquietação ao pânico. Ou à indignação?
09/01/2015
por
Chico Whitaker

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Chico Whitaker.

 

É perigoso viver no mundo. Não tanto por causa daqueles

que fazem o mal, mas por causa daqueles que olham e deixam que aconteça.

Albert Einstein [1]

Quando se questiona o uso da energia nuclear, na matriz energética brasileira, o primeiro argumento de quem a defende é de que só ela pode oferecer energia sem interrupção. E que já nisso ela é muito superior à hidráulica, porque a agua que move as turbinas pode faltar. E à solar – que não produz eletricidade à noite – ou à eólica – que deixa de produzi-la quando o vento para. Além disso, por que prescindir da energia nuclear, se a demanda de energia elétrica, num país em desenvolvimento, é crescente, e isto nos obriga a utilizar todas as opções existentes, ainda mais quando as “alternativas” que, embora existam, produzem energia ainda muito cara?

Se estes argumentos não nos convencem, nos lembram imediatamente as vantagens econômicas comparativas da energia nuclear. E que ela é a que menos interfere nas condições de vida da população e no meio ambiente. Não se está aventando que pode ser solução até para o aquecimento global? E mais: ela é a mais limpa. Uma afirmação final encerra a discussão: ela é também a mais segura!

Não podemos então senão nos darmos por vencidos, até porque tais discussões exigem conhecimentos de que nem sempre dispomos. Na verdade, há uma enorme distância entre o que sabemos – os comuns dos mortais – de física, química, engenharia, economia, e os conhecimentos exigidos para se falar com um mínimo de propriedade do uso da energia atômica para produzir eletricidade. O tema é para especialistas, como se diz. Quem não o conhece e ousa abordar a questão corre o risco de ser logo desqualificado. E quando o somos ficamos inibidos e inseguros até para nos exprimirmos. De fato temos que nos recolher à nossa ignorância.

Mas apesar disso conseguimos facilmente perceber que tudo que acontece com usinas nucleares é envolto em mistério e segredo, e a informação a respeito logo desaparece. É certo que estamos permanentemente imersos num mar de informações sempre renovadas, substituídas por outras mais espetaculares. Mas parece que há coisas que não deveríamos ter sabido. Por quê?

E ainda uma grande dúvida continuará nos alfinetando: se essa fonte de energia é assim tão boa, porque em alguns países – como a Alemanha, a Bélgica, a Suíça – seus governos decidiram abandoná-la? Porque em outros – como a França e o Japão – há grandes movimentos sociais que lutam para que seus países “saiam” do nuclear? O que explica essa oposição a usinas nucleares?

Para nossa sorte – dos “comuns dos mortais” – um número crescente de “especialistas” e de “não-especialistas”, pelo mundo afora (mais em outros países do que aqui no Brasil), estão contando coisas[2] que nos ajudam a superar nossas dúvidas e a começar a compreender o que se passa de fato com essas usinas.nuclear-power-plant-261119_640

 

 

Segredo e mistério

Quanto ao segredo e mistério no tratamento do tema, encontramos uma série de respostas. A primeira delas surge quando ficamos conhecendo a origem da tecnologia das usinas nucleares. A pesquisa sobre a possibilidade de desintegrar átomos, em que se baseia o seu funcionamento, atendeu inicialmente a um objetivo militar, na Segunda Grande Guerra. O que se queria era construir a bomba atômica – que usa a enorme energia que resulta de desintegrações encadeadas de átomos. Era a busca da “arma definitiva”, cujo poder destruidor foi constatado pela primeira vez no genocídio ainda impune de Hiroshima (com átomos de urânio) e em Nagasaki (com átomos de plutônio, um elemento artificial que resulta da desintegração do urânio). O segredo é essencial, na cultura de guerra. As bombas tinham sido construídas secretamente, antes que algum “inimigo”, existente ou futuro, as fizesse. Esse mesmo segredo se impôs em seguida, como não podia deixar de acontecer, na corrida armamentista da Guerra Fria, em que um número maior de nações buscava construir suas próprias bombas, como arma de dissuasão.

A partir daí o segredo passou a ser usado quase que “naturalmente” em tudo que se referisse à pesquisa atômica, até chegar ao desenvolvimento da tecnologia das usinas, que emergiu do Programa Átomos para a Paz. Com esta tecnologia se conseguiu controlar a desintegração de átomos de urânio, interrompendo-a no momento desejado. E ela passou a servir para o bom “negocio” da construção de reatores nucleares, de altos investimentos e altos lucros, interessando a grandes multinacionais. Surgiu então outra razão para se manter o segredo: ele é a “alma do negócio”, na atmosfera competitiva da economia capitalista (por isso a espionagem industrial é nela usada sistematicamente, sem maiores preocupações senão a de evitar que seja descoberta). E como usinas e equipamentos nucleares são de alto valor agregado, os governos protegem suas empresas exportadoras, para o bem de seus balanços de pagamentos…

Mas ao se ouvir o discurso sobre o “uso pacífico” da energia nuclear, surge outra dúvida. O que se diz é que esse uso, diferentemente daquele feito com objetivos militares, beneficia enormemente as populações, mesmo quando ele entra na categoria do “negócio”: na medicina, com a luz que chega às casas e às ruas, com a eletricidade nos hospitais, nas indústrias, nos meios de transporte. Não se deveria então disseminar ao máximo os conhecimentos sobre reatores nucleares? Não deveria a ONU estimular os governos a superar o egoísmo e ampliar a cooperação internacional, e mesmo a participação social no desenvolvimento dessa tecnologia?

Sabemos todos que perspectivas humanitárias nem sempre conseguem apoio… Mas na verdade o que ocorre é que o problema não é esse. O que leva a manter o segredo a qualquer custo é uma razão de outra natureza. Contrariamente a um dos argumentos usados para defender as usinas nucleares (de que elas são o modo mais seguro de se produzir eletricidade), elas têm um terrível calcanhar de Aquiles, que é exatamente sua insegurança. O segredo é necessário porque ficaremos muito inquietos ao começarmos a descobrir os riscos que se escondem por detrás das belas aparências das usinas. E se ficarmos conhecendo mais em detalhe como e porque acontecem os acidentes nas usinas, sentiremos uma certa angústia e, logo depois, passaremos ao pânico… O que decretará o fim do “negócio”…

Central Nuclear de Susquehanna (EUA). Fonte: Wikipedia.

 

A segurança como mito

Na verdade, as usinas nucleares são extremamente perigosas. Sua segurança é um dos grandes mitos inventados para construir sempre mais usinas. E os “acidentes severos” – como os técnicos os chamam, cuidadosamente – são verdadeiras “catástrofes sociais”. Os “especialistas” e “não especialistas” que estão passando essa informação são de países que já foram vitimados por elas ou estão bastante ameaçados de as viverem, como a Ucrânia, o Japão, a França.

A complexidade do funcionamento e operação das usinas cria a possibilidade de uma combinação de falhas: de projeto, de materiais e aparelhagens e de erros humanos. São as “falhas múltiplas” (como são chamadas, no jargão técnico que esconde seu completo significado). E isto independentemente da eventual interferência de fatores externos – como o terremoto e o tsunami no Japão e possíveis atentados terroristas nos dias de hoje. As falhas múltiplas podem levar os operadores a não mais conseguirem interromper as desintegrações em cadeia, o que eleva a altos níveis a temperatura do reator e ele chega a fundir.

As consequências são então muito mais violentas que as de qualquer outro acidente com obra humana ou pela ação da natureza. Fenômenos químicos fora do controle levam as usinas a explodirem. E com sua explosão é espalhada uma quantidade incomensurável de partículas de elementos radioativos, que foram produzidos com a desintegração de átomos com que funcionava, e que contaminarão a terra, a agua, o ar, as plantas, os animais, as coisas, e sempre milhares de pessoas… Ainda quando os reatores se encontrem dentro de solidíssimos edifícios de contenção das partículas, em caso de explosão, sua massa fundida perfurará a base em que tiverem sido instalados, por mais espessa que seja, até chegar ao lençol freático[3].

Por isso os acidentes em que o reator não chega a fundir, que se multiplicam ao longo do tempo de vida das usinas, são pouco noticiados. E são minimizadas as consequências dos acidentes em que houve essa fusão e que já não podem ser escondidos[4]. Usa-se para isso até mesmo a autoridade científica da Organização Mundial da Saúde (OMS), na divulgação de dados menos dramáticos sobre os efeitos dos acidentes.[5]

 

O lixo atômico e as alternativas já existentes

Imagem de 16 de março de 2011 dos quatro prédios dos reatores danificados. Fonte: Wikipedia.

O problema das usinas, que leva tantos a elas se oporem, não é somente o do risco de acidentes. Se continuarmos semeando usinas nucleares pelo mundo afora, não estaremos somente transformando nosso planeta numa casa de horrores, cujos moradores poderão, de um momento para outro, viver os infindáveis sofrimentos causados por imprevisíveis catástrofes. Pode-se dizer que elas não passam de hipóteses, de baixa probabilidade[6]. Mas algo de muito concreto já está se passando desde que a primeira usina nuclear do mundo começou a funcionar: nós mesmos e muitas futuras gerações teremos que manter guardados, inaccessíveis aos seres humanos, o “lixo atômico”[7] de alta radioatividade formado pelos produtos da desintegração do urânio nos reatores e pelos restos radioativos das usinas que terão que ser desmontadas após seu tempo previsto de vida. E simplesmente mantendo o funcionamento das usinas que já construímos, a cada dia que passa mais “lixo radioativo” se acumulará.

Também chamado eufemisticamente de “rejeito radioativo”, um tal “lixo” não serve senão para irradiar e contaminar – e, no caso do plutônio, para fabricar bombas. E só deixará de emitir radiações depois de séculos e mesmo muitos milhares de anos[8].

Um detalhe importante a lembrar: os elementos radioativos contidos nesse “lixo” são artificiais, isto é, eles só existem no nosso planeta porque seres humanos constroem reatores que os fabricam. Ou seja, são obra humana, talvez com um pequeno apoio do diabo…

Tudo isto nos permite entender porque alguns poucos físicos brasileiros, mais ferinos, não chamam seus colegas pró-nucleares de nucleocratas mas sim de nucleopatas…

E nos permite entender também porque nem cabe discutir alternativas para tomar o lugar da energia nuclear na matriz energética – uma questão que sempre se levanta. Essas alternativas já existem e estão sendo desenvolvidas em muitos países, para que seu custo não as inviabilize. Na mesma perspectiva, não cabe também discutir se “a emenda é pior que o soneto”: os países que “saem” do nuclear – como a Alemanha – passam a usar mais carvão e petróleo como fontes energéticas, com seus conhecidos efeitos no aquecimento global, até que outras fontes ocupem o espaço. São opções de natureza diferente, cada uma com seu “preço social”. A “saída” do nuclear não precisa ser “compensada” de alguma maneira. O nuclear é uma escolha “proibida” em si[9].

Mas não podemos entrar em pânico. Temos que passar da angustia à indignação,[10] frente à irresponsabilidade (ou, no mínimo, a inconsciência) com que as “autoridades constituídas” tratam dessas questões. E temos urgência em passar da indignação à ação, na luta contra a insanidade.[11]

Terão as “autoridades” brasileiras um dia a coragem de tomar a decisão de eliminar da nossa matriz energética a opção da energia nuclear, antes que seja tarde demais? Precisarão, tristemente, do argumento dos fatos? Conseguirá nossa sociedade, apesar de tudo isso lhe parecer tão longínquo, pressionar essas “autoridades” para que assumam sua responsabilidade, em vez de deixar que as coisas aconteçam?
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[1] Citação da página inicial do livro La verité sur le nucléaire – le choix interdit (“A verdade sobre o nuclear – a escolha proibida”), de Corinne Lepage, Éditions Albin Michel, 2011.

[2] Depois do acidente de Fukushima, que estremeceu certezas, muitos livros de crítica ao nuclear estão sendo escritos.

[3] A contaminação da água usada para resfriar o reator fundido e sua passagem para o lençol freático e para o Oceano Pacífico é o maior problema enfrentado até hoje no Japão, depois do acidente de Fukushima.

[4] A denúncia de que algo grave teria ocorrido em Chernobyl, na então União Soviética, em 1986, foi feita quando uma quantidade anormal de partículas radioativas foi detectada nos céus de Estocolmo, alguns dias depois de ter ocorrido o acidente. Mas antes já tinha ocorrido outro acidente igualmente grave na União Soviética, em 1957, nos inicios da corrida armamentista da Guerra Fria, com reatores destinados à produção de plutônio para bombas atômicas. Esse acidente ficou no entanto desconhecido do mundo durante 20 anos. Só se soube dele pelo relato feito em Londres por cientistas dissidentes que deixaram seu país.

[5] A OMS é uma agência da ONU que não pode, por convenio, divulgar dados sem uma revisão de outro organismo da ONU, a Agencia Internacional de Energia Atómica – AIEA, criada para promover o uso dessa energia…

[6] Para fundamentar a baixa probabilidade, os defensores das usinas lembram que houve até hoje, além do citado na nota anterior, somente três “acidentes severos”: em Three Miles Island, em Chernobyl e em Fukushima. Mas não se conta que em acidentes sem a fusão do reator há múltiplas possibilidades de vazamento de radioatividade, em proporções menores, assim como há o transporte ininterrupto de elementos radiativos, como o urânio usado como combustível e o “lixo atômico”, que são uma ameaça permanente de acidentes com tais vazamentos.

[7] A existência desse “lixo” desmonta por si só o outro mito inventado sobre a energia nuclear: o de que é a mais limpa…

[8] O plutônio, exatamente, leva 24.100 anos para que a metade de sua massa deixe de ser radioativa. É a chamada “meia vida”, outro eufemismo usado para dourar a pílula…

[9] Esse é o título da obra citada na primeira nota deste texto.

[10] No Japão a população afetada pelo acidente de Fukushima já não está somente indignada, ela sente propriamente “raiva” dessas autoridades (ver “relato de viagem a Fukushima”, http://www.chicowhitaker.net/artigo.php?artigo=85).

[11] Há muito que se pode fazer. Um mínimo, por exemplo, seria colher assinaturas na Iniciativa Popular de mudança da Constituição proibindo usinas nucleares no Brasil… Baixe os formulários para isso e veja informações e ações em curso no site www.xonuclear.net.

 

Imagens: retirada de Pixabay e Wikipedia.