Por: Márcia Falcão
Este mês de maio de 2024 ficará marcado na história de Porto Alegre como o período da maior enchente já vivida até então. Pelo menos 30% da área da cidade foi inundada pelas águas turvas que extravasaram das comportas e portões do Guaíba, assim como das redes de esgoto cloacal e pluvial. Outra grande parte da cidade não teve suas casas inundadas, mas ficou sem luz e fornecimento de água por semanas. A circulação de carros e transporte coletivo colapsou, e, ao entardecer, a escuridão e o medo tomavam conta das ruas em quase metade da cidade. A lição precisa ser aprendida: não há moradia protegida numa cidade desprotegida.
O Desastre Social e Ambiental como Processo
Em Porto Alegre, cerca de 94 mil famílias tiveram as águas turvas adentrando suas casas e perderam total ou parcialmente seus bens materiais adquiridos com anos de labuta, além de documentos, fotografias e lembranças de valor inestimável. Justiça seja feita, todo o Rio Grande do Sul foi duramente atingido. O balanço dos estragos registrado pela Defesa Civil afirma que 463 dos 497 municípios foram afetados, desalojando quase 600 mil pessoas. Em algumas regiões, como o Vale do Taquari, essa foi a terceira enchente em menos de um ano. Entre estiagens e enchentes históricas, o estado tem sofrido as consequências das “boiadas” ambientais e urbanísticas que flexibilizaram o Código Florestal brasileiro, o Código Ambiental estadual e abandonaram o planejamento urbano e ambiental em favor do agronegócio e da especulação imobiliária.
Em Porto Alegre, 20.781 famílias tiveram suas casas parcial ou totalmente comprometidas. Mais uma vez, as famílias mais afetadas são pobres e negras, grande parte delas moradoras das 142 áreas de risco, onde vivem cerca de 84 mil pessoas. A cidade que, nas décadas de 1990 e 2000, nutriu a esperança de outro mundo possível, vem amargando duas décadas de governos neoliberais comprometidos com a redução da máquina pública a qualquer custo. As duas últimas gestões, de Marchezan, do PSDB, e de Sebastião Melo, bolsonarista declarado do MDB, vêm desmontando estruturas e serviços públicos para justificar privatizações e concessões.
Exemplo disso foi o abandono da manutenção do sistema de proteção às cheias, construído na década de 1970, projetado para proteger a cidade de inundação até a cota de 6 m acima do nível do mar. O sistema, em pleno funcionamento, teria suportado a máxima de 5,35m registrada. Isso, não fosse a extinção do Departamento de Esgotos Pluviais, em 2017, e o sucateamento do Departamento de Águas e Esgotos, que assumiu as funções com constantes cortes de equipes. Em 2007, o órgão contava com 2.493 funcionários, dos quais restam 1.050, e os recursos investidos caíram de R$ 239,72 milhões para R$ 136,87 milhões. E não por falta de recursos em caixa, uma vez que o DMAE tem R$ 400 milhões investidos no sistema financeiro.
Na virada do Século XX, Porto Alegre foi pioneira ao incorporar a concepção de proteção ambiental ao planejamento urbano, com a criação de uma Secretaria de Meio Ambiente, do Plano Diretor de Arborização Urbana, e a ampla participação da sociedade no que foi chamado de Cidade Constituinte. Nesse período, foram realizados congressos das cidades (1993 e 1995), resultando no primeiro Plano de Desenvolvimento Urbano e Ambiental, em 1999. Atualmente, a pasta que “cuida” do meio ambiente tem trabalhado arduamente para entregar os parques da cidade ao ramo de entretenimento. É o que ocorre com os parques às margens do Guaíba, como oParque Harmonia, que teve quase toda sua área impermeabilizada e 1/3 das árvores cortadas para dar lugar a uma arena de shows e parque com roda-gigante. Seguem o mesmo rumo o parque Marinha do Brasil e o Anfiteatro Pôr do Sol, que receberá um centro de eventos e uma marina pública, o que já diz tudo sobre o perfil do público a que se destina.
Com o abandono da gestão ambiental, da drenagem e saneamento, todo o planejamento urbano vem sendo entregue nas mãos do mercado imobiliário especulativo. Desde 2010, foram feitas 90 mudanças no plano diretor. Exemplo recente é a autorização para loteamento de 426 hectares de banhado para a construção do “Bairro Planejado Fazenda do Arado”. São abundantes os exemplos de permissividade da prefeitura, “rasgando o Plano Diretor” em favor de um seleto grupo de empresas do ramo, “Os donos da Cidade“. Resultado desse processo é o alto número de imóveis vazios (101.013 unidades habitacionais, 14% do total da cidade). De outro lado, os esforços da prefeitura na política de regularização fundiária e habitação de interesse social ficam bem demonstrados na prestação de contas do plano de metas de 2023, com 50% de cumprimento das metas na entrega de matrículas e 0% das metas de infraestrutura essencial e entrega de unidades habitacionais.
A Reconstrução em Disputa
Diante do contingente de 21 mil famílias que tiveram suas casas parcial ou totalmente destruídas, o prefeito não cogita a hipótese de acionar o contingente de imóveis vazios e afirma que “respeita o mercado“. Em resposta ao anúncio do governo federal de compra imediata de imóveis particulares, o prefeito afirmou que Porto Alegre não tem imóveis disponíveis para essa demanda. A alternativa da gestão foi a construção de uma “cidade temporária” de lona, para 10 mil pessoas, em área às margens da cidade, já deficitária em transporte, saúde e educação. Só após intensas críticas, a prefeitura desistiu da ideia.
No entanto, no “Plano Estratégico de Reconstrução da Capital” para a “Habitação de Interesse Social para Famílias que Perderam suas Casas”, o que está previsto são mais incentivos e flexibilizações para a construção de imóveis: “isenção do pagamento de Solo Criado; liberação de estoque de potencial construtivo; flexibilização de altura e taxa de ocupação; e flexibilização de doação de áreas para empreendimento do Programa MCMV”. O referido plano contou com a consultoria da empresa americana Alvarez & Marsal, a mesma que ficou famosa após a reconstrução gentrificada de New Orleans, após o furacão Katrina em 2005.
Os que destruíram a cidade, não podem reconstruí-la segundo seus interesses. Frente aos esforços da gestão ultraliberal em fazer negócios com a desgraça, os movimentos sociais vêm se organizando em Comitê Popular da Reconstrução, para exigir o cumprimento da função social da moradia e da cidade prevista no Estatuto das Cidades. Já aconteceram quatro ocupações de prédios na área central (três públicos e um hotel desativado, de propriedade privada). Além disso, os movimentos exigem a criação de Frentes Emergenciais de Trabalho para a geração de trabalho e renda, a prioridade na recuperação de creches e escolas e a garantia de que as famílias serão reassentadas rapidamente nas áreas urbanas consolidadas e providas de equipamentos públicos. No horizonte próximo, a derrota do modelo de gestão que privatiza os lucros e socializa os prejuízos são tarefa central para avançar no direito à moradia e à cidade.
* Márcia Falcão é educadora popular e militante do MTD. Doutora em Geografia pela UFRGS, com pesquisa de tese sobre a crise da moradia na Espanha e as práticas de incidência política da PAH; e pesquisadora do Observatório das Metrópoles núcleo Porto Alegre.