Neurociência aponta que crianças e adolescentes não têm capacidade desenvolvida de controle, ponderação, racionalidade e consciência, o que exige avaliação diferenciada em casos de conflito com a lei e medidas socioeducativas não privativas de liberdade
Por Verena Glass
No final do ano de 2015, o governo brasileiro, em parceria com o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), publicou um Mapa do Encarceramento no país, que, entre outros, apresenta um dado preocupante: segundo o Sistema Integrado de Informação Penitenciária (Infopen), jovens entre 18 a 29 anos representam 54,8% da população carcerária brasileira. Já em relação à faixa abaixo dos 18 anos, o documento aponta que, apesar da legislação específica que regula uma forma diferenciada de tratamento de atos infracionais (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA), o número de jovens e crianças em medida restritiva de liberdade em 2012 era superiores a 20.530, número que vem aumentando ano a ano. Destaca-se nesta análise o fato de que, entre crianças e adolescentes que cumprem medidas socioeducativas de internação e semiliberdade, a maior parte deles estão internados. E responsáveis pelo cumprimento destas medidas são instituições corretoras com ideologias e práticas muito semelhantes às das unidades penitenciárias de adultos, com uma tendência de recrudescimento das medidas punitivas sobre a população juvenil.
Esta tendência de banalização da vida de crianças e jovens em depositórios violentos e brutalizantes – em processo de aprofundamento não apenas no Brasil (onde se debate a redução da maioridade penal), mas também em grande parte dos países da América Latina -, foi o tema de um seminário internacional organizado no último mês em São Paulo, em uma parceria da ONG Ação Educativa com a Fundação Rosa Luxemburgo. O objetivo foi ampliar, a partir de organizações e movimentos que atuam em São Paulo e de experiências no Uruguai e no Chile, o debate sobre “Medidas Não-privativas de Liberdade para Adolescentes” como caminho para redimensionar a construção de futuros para uma parcela grande da juventude em situações de risco e violência.
De acordo com o advogado chileno Álvaro Castro, do Centro de Estudos da Justiça da Faculdade de Direito na Universidade de Chile, é preciso considerar, em primeiro lugar, que a criança e o adolescente estão em estágios de desenvolvimento intelectual e anímico que, de acordo com a neurociência, não os tornam imputáveis por certos comportamentos.
“Há vários elementos a se considerar e que justificam a nossa proposição de que necessitamos de um direito penal exclusivo para os adolescentes. Temos que considerar, por exemplo, que este grupo tem uma capacidade cognitiva bem menor e menos clareza, portanto, das lógicas sociais. Nesta faixa etária, o autocontrole é limitado e não há uma reflexão sóbria sobre custos e benefícios de determinadas ações. Uma criança ou um adolescente não pensa em o que vai acontecer a partir do que faço”, explica o advogado.
Por outro lado, a forte dependência do elemento grupal na vida dos adolescentes, que leva à decisões coletivas que muitas vezes estão em desacordo com posicionamentos individuais, cria padrões de comportamento que não necessariamente são reproduzidos em outras circunstâncias. Ou seja, banalizar em parâmetros de criminalidade a avaliação de comportamentos, sem levar em consideração uma série de fatores sociais, psicológicos e físicos é uma temeridade, avalia Castro.
Para o advogado, ainda de acordo com estudos neurocientíficos e psicológicos, a delinquência juvenil é episódica, tendendo a diminuir drasticamente após os 25 anos. “De acordo com a neurociência, a última parte do cérebro a amadurecer é a frontal, responsável pela capacidade de controle, ponderação, racionalidade e consciência. Isso ocorre por volta dos 25 anos. Se considerarmos este fato e que o encarceramento de crianças e adolescentes causa profundos traumas, sensação extrema de estresse e medo, não me parece razoável a adoção de sistemas punitivos deste tipo”.
Mudança de mentalidade
Segundo a defensora pública do Estado de São Paulo, Fernanda Balera – cuja análise sobre a constituição anímica e psicológica dos adolescentes se coaduna com a do advogado chileno -, é preciso romper com o estigma de que internar é bom. Isso significa trabalhar tanto o judiciário como a opinião pública, que ainda consideram a reclusão uma oportunidade de transformar delinquentes em seres produtivos. “Não se leva em conta que, na vida dessas crianças, falta tudo e sobra violência, discriminação e abusos, inclusive familiares. A reclusão é vista e exigida como punição, ao mesmo tempo em que se espera que nas instituições o jovem tenha atividades produtivas. Porque pobre tem que ter atividade produtiva. E o que acontece é que, apesar de a internação estar limitada legalmente a seis meses, o que vemos são períodos de reclusão muito superiores a isso. Por isso a Defensoria Pública defende incondicionalmente as medidas não privativas de liberdade para crianças e adolescentes em conflito com a lei”.
Ainda de acordo com o Mapa do Encarceramento do governo federal, a internação é a medida mais aplicada a crianças e adolescentes no Brasil. Em 2012, 13.674 jovens estavam em sistema de internação, 4.998 em internação provisória e 1.860 em semiliberdade – já em 2015, de acordo com a Marisa Fortunato, Superintendente Pedagógica da Fundação CASA-SP, 66% dos jovens infratores estavam internados -, sendo que apenas 11% dos adolescentes que cumpriam medida socioeducativa restritiva de liberdade cometeram atos infracionais considerados graves, como homicídio e latrocínio.
Medidas não privativas de liberdade
De acordo com os lineamentos do direito internacional, o tratamento dado a crianças e adolescentes em conflito com a lei deve evitar consequências negativas do processo judicial ao jovem, adotar medidas que evitem procedimentos judiciais e evitar que os casos ingressem no sistema penal.
De acordo com o advogado chileno Álvaro Castro, a defesa de medidas não privativas de liberdade não apenas prevê um tratamento mais adequado à realidade das crianças e adolescentes, como também diminui custos para o Estado. Nesse sentido, antes de mais nada devem ser discutidos acordos reparatórios, suspenção condicional das penas ou programas de justiça reparativa, mediante conciliação entre as partes. O importante, neste sentido, é promover respostas vinculadas à comunidade e a família dos jovens, bem como envolver a comunidade na solução da delinquência.
No âmbito dos acordos reparatórios, firmados entre imputado e vítima, Castro explica que estes tem como objetivo que o imputado repare de forma satisfatória os danos causados à vítima, produzindo a extinção da ação penal. No âmbito da suspensão condicional, o processo penal pode ser extinto antecipadamente quando o imputado comprove que não voltará a cometer o delito. Por fim, no âmbito da conciliação, há um acordo amistoso entre a vítima e o infrator.
Por outro lado, as alternativas ao encarceramento ou medidas não privativas de liberdade podem ser múltiplas e divididas entre advertência e sanção, propõe o advogado. Como advertências, pode-se trabalhar com processos de mediação e reparação, serviços comunitários, obrigação de assistência a cursos ou obrigações especiais, e supervisão. Já entre as sanções, Castro lista trabalho comunitário, multas, reparação de danos, liberdade vigiada ou detenção domiciliar.
Tanto o advogado como a procuradora Fernanda Balera insistem que a maior urgência está na mudança de posicionamento da sociedade e do judiciário no sentido de compreender e se reeducar quanto à peculiaridade da situação de crianças e adolescentes em conflito com a lei. É preciso mudar essa cultura do medo e da vingança, largamente cultivada pelo senso comum e principalmente pela imprensa, afirma a defensora.
É neste sentido, explica a assistente social uruguaia Rosana Abella, da Casa Bertolt Brecht, que, em 2014, participou ativamente da exitosa campanha contra a redução da maioridade penal no Uruguai. “Vivemos uma intensa campanha do medo que busca vincular a delinquência à adolescência. Mas todas as estatísticas comprovam que, na totalidade dos crimes cometidos, a porcentagem de participação de crianças e adolescentes é mínima. Por outro lado, o que vemos nos centros de reabilitação são temeridades inaceitáveis, como abusos, torturas, exclusão extrema. Por isso entendemos que as medidas não privativas de liberdade são um primeiro passo para coibir estas situações”.
Veja a íntegra dos debates do seminário, em duas mesas:
De manhã, debateram Alvaro Castro Morales, advogado chileno; Rosana Abella, assistente social e coordenadora da Casa Bertolt Brecht; Fernanda Balera, da Defensoria Pública; e Daniel Serra Azul, do Ministério Público de São Paulo. A mesa foi mediada por Daniel Santini, da Fundação Rosa Luxemburgo. De tarde, debateram Marisa Fortunato, da Fundação Casa; Maximiliano Dante, da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social; Valdênia Paulino, do Cedeca Sapopemba; e Erika Kokay, deputada federal (PT-DF). O debate foi mediado por Fernanda Nascimento, da Ação Educativa.
Fotos: Divulgação; Gerhard Dilger