CHAVES PERDIDAS E REENCONTRADAS
Por Ana Rüsche
Em maio, a Fundação Rosa Luxemburgo recebeu a Dra. Marlen Eckl e o poeta Paulo Ferraz para conversarem sobre Arte como refúgio e esperança – a contribuição dos refugiados judeus alemães nas artes em São Paulo. O evento foi organizado pelo Instituto Martius-Staden em conjunto com o Arquivo Histórico Judaico Brasileiro – AHJB.
“A arte era tudo para mim: refúgio e esperança, o sonho de uma liberdade perdida precocemente diante da adversidade do destino”. Marlen Eckl selecionou esta frase para abrir sua fala sobre a ideia de arte como refúgio. A frase é de Alice Brill, fotógrafa e pintora, a respeito de sua convivência com outros artistas amigos. Era na arte que Alice Brill encontrava um “sentido na vida, capaz de a sustentar face à insegurança de um mundo que parecia desmoronar”.
A arte como refúgio
Marlen Eckl estudou a fundo a trajetória de artistas que chegaram ao Brasil nas décadas de 1930 e 1940 fugindo de perseguições nazistas. O país não era um destino calculado ou conhecido. A capital era Buenos Aires ou Rio de Janeiro? Entidades judaico-alemãs tentaram providenciar informações que tornasse a emigração mais segura. Um exemplo seria a brochura Brasil, país de acolhimento para a emigração judaico-alemã (Herbert Frankenstein, 1936), que orientava a ida para São Paulo tanto pelo clima ameno quanto “por sua posição dominante no mercado e indústria latino-americano”. Desde os trópicos, também eram organizados locais de encontro de refugiados, como a Casa da Juventude da CIP – Congregação Israelita Paulista, fundada em 1936.
A pesquisadora conta que muitos destes artistas traziam consigo maquinário e inovações técnicas, que permitiram o entrosamento com a economia local. Os Bordados Flieg, com máquinas trazidas da Alemanha, chegaram até a atender as Forças Armadas brasileiras no fornecimento de insígnias aos uniformes. Além das bordadeiras, a família Flieg trouxe consigo uma inspiração e duas máquinas fotográficas: o então jovem fotógrafo Hans Günter Flieg pode colocar em prática sua técnica aprendida em Berlim e, em solo brasileiro, transforma-se em um dos principais artistas a documentar a construção a ferro e aço de cidades brasileiras (mais sobre Flieg no acervo do IMS).
Nas artes plásticas, uma das conhecidas contribuições é o desenvolvimento das linguagens de vanguarda – exemplos da arte abstrata, trabalhada pela pioneira Gisela Eichbaum, e o surrealismo, cultivado por Walter Lewy. Mesmo a geração mais nova, como Agi Straus, Alice Brill, Eva Lieblich, Eleonore Koch, Fred Jordan e Gisela Bruch, desenvolvem expressões que procuram discutir as culturas de ambos os mundos que conhecem, linguagens aptas a testemunhar a urbanização veloz das cidades brasileiras.
Marlen Eckl terminou sua exposição detalhada a respeito de criações tão ricas e complexas, apontando que estas “obras refletem, de uma maneira ou de outra, tanto a experiência da dolorosa expulsão da querida pátria quanto a bem sucedida integração no país de acolhimento”.
A literatura judaica no Brasil
Na segunda parte do evento, Paulo Ferraz tratou da contribuição da comunidade judaica à literatura brasileira. Esquematicamente, traçou uma divisão em dois períodos – um mais distante e silencioso, de matriz sefaradita e ibérica; e outro mais próximo, de matriz asquenaze, germânica e eslava: “o primeiro corresponderia ao período de formação do Brasil e de nossa própria identidade nacional, momento posterior ao processo de expulsão e perseguição das comunidades judaicas na península ibérica; já o segundo diz respeito às migrações europeias que têm início no final do XIX e que se intensificaram com as duas grandes guerras mundiais”.
A respeito do primeiro período, há poucos estudos e muitas suposições, considerando-se que já não é possível rastrear com precisão o que seria contribuição cristã e o que seria judaica – quantos são os escritores com ascendência judaica no Brasil colônia e império? Não se sabe.
Ferraz citou a especulações a respeito da ascendência da mãe do Padre Vieira, pois de ofício era padeira e letrada, algo raro entre as trabalhadoras cristãs. Ela teria, inclusive, alfabetizado o filho. Mais conhecidas são as perseguições. Bento Teixeira, que escreveu o poema épico Propopeia sobre a capitania de Pernambuco, um dos primeiros escritores laicos do país, foi aprisionado e levado a Portugal pela Inquisição. O dramaturgo Antônio José da Silva, conhecido como “o judeu”, chegou até a estudar Direito em Coimbra, mas foi condenado à morte em 1737.
Paulo Ferraz considera que há muitas formas de violência e “uma delas é justamente a de romper os liames entre o presente e o passado, negar a toda um grupo o direito à sua memória, o direito à sua identidade”. Sendo assim, no segundo período, no século XX, um dos traços seria a insistência em serem ouvidos.
Esta literatura poderia ser lida a partir da busca em recuperar histórias de abandono, de perdas, de reconstrução e de novos arranjos sociais e de identidades. Deste segundo período, foram mencionados Moacyr Scliar, Michel Laub, Nelson Ascher e Leandro Sarmatz, sem esquecer da importante contribuição da Tatiana Salem Levy, a qual explicita sua ascendência sefaradita.
De Moacyr Scliar foi lido um trecho de O centauro no jardim. No livro, cria a personagem Guedali Tartakovsky, um menino judeu, nascido metade homem, metade cavalo, cuja narrativa resume parte da origem da comunidade judaica do Rio Grande de Sul:
“Meu pai senta, enterra a cabeça entre as mãos. A mulher tem razão, ele é o culpado do que está acontecendo. Todos os colonos judeus da região, vindos com ele da Rússia, já foram para a cidade — para Santa Maria, ou Passo Fundo, ou Erechim, ou Porto Alegre. A revolução de 23 expulsou os últimos remanescentes da colonização. Meu pai insiste em ficar. Por que, Leão? — pergunta minha mãe. Por que essa teimosia? Porque o Barão Hirsch confia em nós, ele responde. O Barão não nos trouxe da Europa para nada. Ele quer que a gente fique aqui, trabalhando a terra, plantando e colhendo, mostrando aos góim que os judeus são iguais a todos os outros povos. Homem bom, o Barão. Na Rússia de 1906 — derrotada na guerra contra o Japão —, os pobres judeus, alfaiates, marceneiros, pequenos comerciantes, viviam em casebres miseráveis de pequenas aldeias, aterrorizados com a ameaça dos pogroms”.
E sobre a pergunta da narradora de A chave da casa, de Tatiana Salem Levy, “quantas vezes não ouvi essa mesma história? A dor de nunca mais ter visto o pai nem a irmã, de nunca mais ter pisado na terra que primeiro fora sua. A dor de só ter trazido a mãe a tempo de perdê-la. De ter visto tanta miséria no navio, tanta miséria na terra que deixara. Quantas vezes? E agora o que ele quer? Que eu vá atrás da sua história, recuperar o seu passado? Por que essa chave, essa missão descabida?”. A resposta aos porquês seria: seguir criando.
Este evento integrou ciclo de palestras organizado pelo Instituto Martius-Staden em conjunto com o Arquivo Histórico Judaico Brasileiro – AHJB, sobre a história da imigração judaico-alemã para o ano de 2015. A Fundação Rosa Luxemburgo apoiou o ciclo sediando esta palestra.
Fotos do evento: Daniela Rothfuss, Instituto Martius-Staden.