Por Fabio Luis Barbosa dos Santos *
Duas narrativas dominam a leitura sobre o impeachment. O campo golpista alega uma reação aos descalabros do governo Dilma. Os depostos denunciam um projeto derrotado nas urnas, que recorreu ao golpe para se impor.
Esta discussão não é retórica: da leitura que prevalecer no campo da esquerda, depende as fundações da política futura. Contribuindo para este debate, proponho seis hipóteses sobre o impeachment, o PT e a onda progressista.
1) O PT é corresponsável pela situação que o traga. Não é o único responsável, mas também não é uma vítima.
E é corresponsável em todos os seus aspectos: por ter mantido intocado o poder das corporações de comunicação; por ter incorporado e servido à lei de responsabilidade fiscal, a qual o partido foi historicamente contrário – e que ironicamente, serviu de pretexto para depor Dilma; por ter praticado uma combinação entre cooptação e repressão com os movimentos populares; por ter feito da política parlamentar a sua base, e nunca o povo, ou a esquerda. Inclusive, foi neste terreno que tentou negociar a sua salvação até o último momento, sempre na moeda vil da política mercantil.
2) O golpe não significa uma mudança de sentido na história brasileira, mas é uma aceleração no ritmo e no tempo das políticas prevalentes.
É certo, como dizia Dilma, que impeachment sem crime de responsabilidade é golpe. Porém, o golpe não foi provocado por diferenças substantivas de projeto. Foi no terreno da pequena política, que o PT comandou por treze anos, que o jogo virou.
Não há dúvidas que o governo Temer é mais destrutivo que o anterior. Mas suas propostas não traduzem qualquer inflexão em relação às políticas até então praticadas. Por exemplo, o congelamento dos gastos públicos por vinte anos radicaliza a lógica do ajuste estrutural cultivada pelas gestões petistas, assim como a perseguição popular se escora na lei antiterrorista aprovada por Dilma.
O que precipitou o golpe foi o debilitamento da posição petista no lodaçal parlamentar, o que está associado ao esvaziamento da sua funcionalidade política. O chamado “modo lulista” de regulação do conflito social funcionou a contento durante o boom das commodities, mas fez água diante da conjunção de escândalos políticos e crise econômica.
Certamente, os efeitos da crise mundial no Brasil aumentaram a exigência do capital por medidas antipopulares. Porém, não há qualquer indício de que o governo deposto se recusaria a realizá-las. Ao contrário, Dilma implementava o programa do adversário derrotado nas urnas quando caiu.
O certo é que o PT se tornou desnecessário para mediar o aprofundamento do neoliberalismo, ao qual jamais contrariou. Isso porque o campo popular se encontra apassivado e dividido após treze anos de presidência petista. E a mobilização maior, passou para o outro lado.
3) O PT se tornou um fator de imobilismo da política de esquerda no Brasil, que é preciso superar. É necessário valorizar a importância que o partido teve como primeira expressão política autônoma dos trabalhadores brasileiros. Mas reconhecer o esvaziamento da sua razão de ser, a partir do momento em que sucumbiu à política convencional.
Esta autocrítica é fundamental na esquerda. Porque das lições que se tira da experiência recente, depende o alcance da política futura. Quem entende que o golpe foi movido por diferença de projeto, tem como horizonte o reestabelecimento da ordem petista. Os críticos desta ordem precisam dissecá-la impiedosamente.
4) As gestões petistas foram um freio e não um acelerador da onda progressista sulamericana. Isso porque a sua política regional neutralizou, na prática, as iniciativas de potencial radical emanadas da Venezuela. Iniciativas como a ALBA, Telesur e o Banco do Sul teriam outro alcance com uma adesão brasileira.
E o Brasil não aderiu porque o projeto de integração petista não tinha orientação contrahegemônica. Ao contrário, a retórica integracionista disfarçava aspirações de liderança regional. Sob esta lógica, o bolivarianismo foi visto antes como um competidor do que como um parceiro.
A orientação fundamental da política brasileira foi apoiar a expansão regional de empresas nacionais (ou sediadas no Brasil), entendidas como vetores do capitalismo nacional, consolidando uma base material para projetar mundialmente o país. Ou para usar o jargão diplomático, fazer do Brasil um global player.
Esta política instrumentalizou a integração regional em favor da expansão das “campeãs nacionais”. Como estes negócios se baseiam na superexploração do trabalho e na devastação dos recursos naturais, foi esta a lógica da integração liderada pelo Brasil, expressa na IIRSA.
Por outro lado, a integração política foi subordinada ao desígnio do governo brasileiro de atuar como uma espécie de mediador regional: a esquerda responsável, que condena os excessos do chavismo e dialoga com a direita. A criação da UNASUR foi um avanço, mas também uma forma de neutralizar a ALBA.
5. Há uma correspondência entre o alcance e os limites da onda progressista no plano nacional, e a dinâmica da integração regional.
Qual o alcance da onda progressista? Concretizou-se a mudança política: o Pacto de Punto Fijo foi sepultado na Venezuela, e a segregação dos indígenas da política boliviana, foi ultrapassada.
Mas o limite da mudança foi a continuidade macroeconômica: em nenhuma situação se questionou o neoliberalismo. O único caso em que isso foi tentado foi na Venezuela. No entanto, também neste país a tentativa se deu nos marcos do extrativismo, e este limite tem se mostrado fatal.
O alcance e o limite da onda progressista encontra correspondência na dinâmica regional, em que a novidade política (a Unasul), se materializou nos marcos da continuidade econômica (a IIRSA).
6. As presidências petistas ilustram, de maneira cristalina, os limites para a reforma dentro da ordem na América Latina. No plano doméstico, a mágica lulista pretendeu conciliar capital e trabalho: o limite ao avanço popular era o interesse do capital. De modo análogo, pretendeu conciliar soberania e imperialismo no plano regional: o limite da autonomia ambicionada era o interesse dos Estados Unidos.
Os limites desta via ficaram evidentes. Afinal, em um país como o Brasil (ou em um continente como a América Latina), há pouco que os trabalhadores tenham a ceder na relação com o capital, exceto o seu bem mais precioso: a autonomia. No plano econômico, a via reformista reforçou o mito do desenvolvimento econômico, ou seja, a ideia de que o crescimento econômico é a solução para os problemas continentais.
É necessário restituir a densidade histórica da esquerda latino-americana, identificada com a superação da desigualdade e da dependência, mas sequestrada na atualidade por variadas expressões de reformismo conservador. No plano político, subordinar as lutas dentro da ordem (como as eleições), a uma estratégia de superação da ordem. Na esfera teórica, articular horizontes civilizatórios alternativos, como o Bem Viver andino, a uma crítica da sociedade de classes.
É um caminho longo e difícil. Mas parafraseando Salvador Allende, só assim se abrirão, antes cedo do que tarde, as grandes alamedas pelas quais passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor.
* Professor da UNIFESP. Autor do livro: Além do PT. A crise da esquerda brasileira em perspectiva latino-americana. São Paulo. Editora Elefante, 2016.
No dia 11 de abril de 2017, a Fundação Rosa Luxemburgo em parceria com a Editora Elefante promove o debate Para onde vai a esquerda?, que contará com a presença de Fábio Luis Barbosa dos Santos. Acesse mais detalhes do evento.
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil