Pouco mais de 17 anos depois não se trata de mera coincidência o Supremo Tribunal Federal (STF) julgar o Marco Temporal, interpretação estabelecida para jogar areia nas engrenagens constitucionais das demarcações das terras indígenas.
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Solidariedade com os povos indígenas!
16/08/2017
por
Renato Santana

Nesta mesma quarta, o Supremo Tribunal Federal julga o “Marco Temporal”. Joel é acusado do homicídio de um pistoleiro durante emboscada em acampamento do povo Pataxó nas redondezas do Monte Pascoal

“… conscientes de que o Parque Nacional está dentro dos limites de nossa terra, conforme a história de nossos anciãos, decidimos imediatamente RETOMAR o nosso território, neste dia 19 de agosto de 1999, protegidos pela memória dos antepassados, protegidos pelo direito constitucional […] pretendemos transformar o que as autoridades chamam de Parque Nacional do Monte Pascoal em Parque Indígena, terra dos Pataxó, para preservá-lo e recuperá-lo da situação que hoje o governo deixou a nossa terra […]

Vamos celebrar os 500 anos em nossa terra, receberemos os nossos parentes de todo o Brasil aqui, no Monte Pascoal, único local possível para construirmos o futuro com dignidade. […] Mais uma vez pedimos o apoio de toda a sociedade brasileira” (Carta do Povo Pataxó, 1999)

Por Renato Santana,  Cimi

A Marcha Indígena 2000, organizada pelo Movimento de Resistência Indígena, Negra e Popular – Brasil Outros 500, não terminou. Pouco mais de 17 anos depois, nesta quarta-feira, dia 16, não se trata de mera coincidência o Supremo Tribunal Federal (STF) julgar o Marco Temporal, interpretação estabelecida para jogar areia nas engrenagens constitucionais das demarcações das terras indígenas, e Joel Brás Pataxó (na foto ao lado) será submetido pela Justiça federal de Eunápolis (BA) a Júri Popular acusado do homicídio de um pistoleiro durante regresso do povo em retomada a terras tradicionais no extremo sul baiano.

O movimento que levou caravanas de povos indígenas de todo o país para a Conferência dos Povos Indígenas, entre 18 e 22 abril de 2000, em Santa Cruz Cabrália, um contraponto às comemorações do “descobrimento do Brasil”, reafirmou a necessidade destes povos de recuperarem seus territórios tradicionais. Na Bahia, os Pataxó do extremo-sul baiano, Pataxó Hã-Hã-Hãe e Tupinambá iniciaram imensas retomadas já um ano antes, quando se avizinhava os 500 anos – nas terras ocupadas hoje pelos Pataxó, as naus portuguesas se acostaram.

Para além de uma retomada simbólica do Brasil, os povos indígenas, com destaque aos Pataxó, passaram a enfrentar um amálgama de interesses políticos e econômicos que em nada se tratava de mero símbolo da violência colonial; era a sua concretude na virada do século. Joel Brás, nesse momento icônico da história, se levantou como uma das principais lideranças Pataxó e com seu povo retomou áreas tradicionais localizadas na região do Monte Pascoal, município de Itamaraju. Entre 2000 e 2002, o Pataxó passou a ser perseguido por pistoleiros (sofreu inúmeros atentados), polícia, difamado pela mídia e acusações judiciais de roubo, sequestro, cárcere privado, formação de quadrilha e dois homicídios.

Em 2014, Joel tinha sido inocentado de quase todas as acusações, exceto uma. “A primeira acusação de homicídio demorou mais. Houve uma sentença de impronúncia. Por falta de provas, o juiz entendeu que não tinha elementos para acusar Joel da morte de um vaqueiro de uma das fazendas retomadas pelos indígenas. Eram processos sem provas. Joel era um alvo permanente”, explica o advogado do indígena, Luciano Porto. Restou, por fim, este último processo, a ser julgado nesta quarta, dia 16, e que envolve uma tentativa de assassinato de Joel, em 8 de dezembro de 2002.

 

Um pistoleiro na estrada

A Fazenda Oriente incidia sobre a hoje Terra Indígena Barra Velha, identificada pelo Ministério da Justiça em fevereiro de 2008 com 54.748 hectares, naquela altura área contígua ao Parque Nacional Monte Pascoal, este também sobreposto ao território Pataxó. Em novembro de 2002, a fazenda estava ocupada pelos indígenas em retomada cercada de perigos. Tiroteios, emboscadas e ardis programados contra os indígenas contando com participação de policiais eram comuns.

Assaí Pataxó lembra que em certo dia no final do mês de setembro voltava para a retomada com a família num carro. Em outro veículos outros dois Pataxó, irmãos. “Quando passávamos em frente à Fazenda Santo Agostinho, na estrada de acesso à Fazenda Oriente, cerca de 15 homens armados pararam nosso carro e começaram a atirar. Consegui passar. Então cercaram o carro de Cosme, que por azar começou a falhar. O irmão dele, Adeilton, fugiu no meio do mato e Cosme foi preso”, relatou.

Em 8 de novembro, um mês antes de Joel Brás Pataxó viver o momento que o leva ao Júri Popular, os indígenas Lídio Matari, Sebastião e Benedito foram presos por porte ilegal de armas em uma operação que teve como objetivo cumprir o mandado de reintegração de posse da Fazenda Oriente. Um filho de Joel, em outra ocasião, chegou a ser alvejado na perna por um tiro de arma de fogo. “Saímos da retomada e nos dirigimos para um local mais ou menos próximo, mas distante uns 7 ou 8 quilômetros da sede da então Fazenda Oriente”, conta Joel Brás. O indígena explica que montaram acampamento às margens da BR-498, que liga o Parque Monte Pascoal à BR-101.

Era um domingo de manhã ensolarada. As crianças brincavam no acampamento sob o olhar de um adolescente, hoje adulto e testemunha ocular do que estava para acontecer. Todos os adultos estavam fora, em atividades para garantir a subsistência da aldeia. Incluindo Joel, que tinha ido para a casa de farinha. O indígena regressava para a aldeia no momento em que José Moraes, apontado como funcionário de segurança da Fazenda Oriente, no entanto conhecido pistoleiro da região, invadiu o acampamento gritando, atirando para o alto e perguntando: “Cadê o Joel! Eu vim pra ver o Joel!”. Moraes chegou a bater no adolescente, mas este apenas disse que Joel não estava, sem informar para onde tinha ido.

Moraes abordou o acampamento vestido com roupas camufladas típicas do Exército, um rifle trançado nas costas, uma pistola na cintura e uma faca “estilo Rambo” pendurada. Depois de aterrorizar o adolescente e as crianças, e percebendo que não conseguiria a informação, decidiu ir embora. Pouco tempo depois, Joel Brás voltou da casa de farinha. Ao chegar no acampamento se deparou com o desespero deixado por Moraes. O adolescente não sabia quem era o seu algoz, e indicou que o sujeito tinha saído na direção da rodovia. Joel partiu atrás não sem a proteção de uma arma de fogo, que ele mantinha quando precisava se deslocar dada a situação de constantes emboscadas a qual estava submetido.

“Quando eu cheguei na estrada lá estava ele. Quando me viu, logo puxou a arma e apontou pra mim. Foi tudo muito rápido”, lembra Joel. Antes de Moraes atirar, o Pataxó desfere um único tiro, certeiro. O pistoleiro cai morto na beira da estrada. Joel Brás não foge. Aciona a polícia e assume ter agido em legítima defesa. Uma pessoa, que vinha caminhando pela estrada, testemunhou todo o acontecido; outra estava em um ponto de ônibus e também viu todo o desenrolar dos fatos. Desde então Joel passou a responder pelo caso como homicídio, mesmo que todas a provas e testemunhas tenham demonstrado legítima defesa. Mesmo se apresentando às autoridades públicas, Joel chegou a ser preso.

 

A defesa de Joel Brás 

O processo contra o Pataxó é longo. Possui 6 volumes e quase 3 mil páginas. Apenas em 2007 saiu da Justiça Estadual para a Federal, por determinação do Superior Tribunal de Justiça (STJ). “Foi reconhecido não se tratar de um processo de homicídio comum, ou seja, a Justiça já indicou isso por ser um conflito decorrente de disputa por terra indígena. Em novembro de 2009 começa a correr na Subseção Judiciária da Vara Federal de Eunápolis”, explica o advogado Luciano Porto. Enquanto esteve na Justiça Estadual, o Pataxó cumpriu períodos encarcerado.

Também por decisão do STJ, em 2006, Joel passou a cumprir prisão domiciliar na sede da Funai mais perto de sua moradia, um posto avançado na aldeia Barra Velha. “O Joel cumpre pena desde então. Lá se vão 11 anos de pena cumprida. Ou seja, temos todas as provas documentais, materiais e de testemunhas de que foi legítima defesa. José Moraes era pistoleiro, e também temos como comprovar isso. Mesmo com tudo isso Joel sempre esteve disponível à Justiça e cumpre a pena. Defendemos que não era necessário levar ao Júri, mas assim decidiu o juiz. Estamos prontos para enfrentar essa última batalha”, destaca o advogado.

Ainda em 2002 o proprietário da Fazenda Oriente, Mauro Rossoni, sustentou à Justiça que José Moraes não era pistoleiro, mas funcionário de sua fazenda. Luciano Porto explica que durante a instrução do processo o gerente da fazenda e funcionários comprovaram que o sujeito era segurança contratado pelo proprietário. “Ele era proibido de sair da fazenda, vivia armado, era um homem experimentado na arte de defender as propriedades. No dia dos fatos, os funcionários dizem que Moares saiu da sede da fazenda alegando que faria o conserto de uma bomba hidráulica a 500 metros da sede da fazenda, que fica uns 7 km de distância de onde Joel estava”, pontua o advogado.

Para Luciano Porto, “o contexto todo é a luta pela terra. Joel era uma liderança visada. Tanto que de 2002 para cá sua atuação ficou muito prejudicada. Não só quanto às demandas do povo pataxó, mas Joel é um pai de família. Possui 16 filhos, uma porção de netos. O sofrimento dele nesse período é o da família toda também, além do próprio povo”.  Conforme o missionário do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) da equipe Itabuna, Haroldo Heleno, “Joel sob custódia tem seus passos vigiados e limitados, se trata de uma situação insustentável. Isso é muito ruim, ainda mais para um processo com nenhum prova de que ele tenha praticado um crime”.

 

Frente de Lutas e Defesa do Povo Pataxó

O missionário do Cimi lembra do papel desempenhado por Joel na criação da Frente de Lutas e Defesa do Povo Pataxó. “No final da década de 1990 havia a celebração dos 500 anos do descobrimento, como se fosse uma grande festa. Joel se contrapôs a isso. Passou a convencer as demais lideranças das famílias Pataxó para fazer uma luta pelo território. Em abril de 2000 a celebração ufanista e violenta dos governos da Bahia e Federal – violenta porque entrou para a história a truculência da polícia. Em Santa Cruz Cabrália foi o local da grande movimentação. Joel então se destacava nesse período e ajudou a criar a Frente de Lutas e Defesa do Povo Pataxó. Foi o primeiro coordenador. Com isso, ele traz pra si toda a ira e ódio dos invasores do território Pataxó”, explica Haroldo Heleno.

São sete terras indígenas Pataxó no extremo sul da Bahia. Naquele período a luta se concentrava mais em Barra Velha, mas dali por diante passou a envolver cada vez mais indígenas e demandas territoriais. “Até hoje os Pataxó defendem todo um território na região porque foram  incentivados, animados e motivados pelo exemplo de Joel Brás. Hoje tem Comexatiba, Coroa Vermelha. São áreas que seguem a briga com o eucalipto, os latifúndios, a exploração do turismo e a sobreposição de parques”, destaca o missionário, que ainda lembra que o que Joel sofre lideranças como cacique Babau Tupinambá, Aruã Pataxó, Mandy Pataxó e Nailton Pataxó Hã-Hã-Hãe, entre outros, também estão submetidos.

A antropóloga Jurema Machado, professora da Universidade Federal do Recôncavo Baiano, conhece Joel Brás desde 1999 e lembra da importância do movimento em que a liderança estava inserida; também das consequências que acabaram marcando a vida de Joel. “Os Pataxó Hã-Hã-Hãe, com os quais eu iniciava uma relação de pesquisa naquele mesmo ano, também participaram da retomada do Monte Pascoal. E isso desencadeou uma série de retomadas na Reserva Caramuru-Paraguassu. O Monte foi setembro, e lá no Caramuru, mais especificamente a área conhecida hoje como Milagrosa, em novembro do mesmo ano. E acho que aí o poder local com a ajuda inequívoca do judiciário, retoma uma prática muito antiga: transformar indígena em bandido”.

Conforme a antropóloga coletou durante essas quase duas décadas de pesquisa, há farta documentação histórica que atesta o caráter de ‘antiguidade’ deste expediente contra as lideranças indígenas. “São documentos emitidos por juízes, delegados, alguns padres missionários, que via de regra se queixavam ao presidente da província – estou falando de documentos da Bahia do século XIX —  de que em determinada localidade, geralmente um aldeamento extinto cujos índios teimavam em não sair das terras, e os interessados naquelas terras queriam os retirar à força, os índios “roubavam gado, perturbavam a ordem local”, “cometiam crimes de assassinatos”. “Eram uns facínoras!”. Ou seja, a prática dos grandes interessados em roubar as terras é muito colonial. Aliás o colonialismo se atualiza com as mesmas práticas. Parece ambíguo, mas acho que é assim mesmo”, argumenta.

 

Baetinga, Samado, Zabelê, Dona Josefa

 O Programa de Pesquisas sobre Povos Indígenas do Nordeste Brasileiro (Pineb) reuniu, através Fundo de Documentação histórica-manuscrita sobre índios na Bahia (FUNDOCIN), explica a professora Jurema Reunimos, uma série de documentos recolhidos a partir do Arquivo Público do Estado da Bahia, da série Judiciário, onde se recompôs o caso do índio Baetinga, da aldeia de Pedra Branca. “Baetinga era um dos líderes dos Kariri-Sapuyá, que resistiu por quase 30 anos, em meados do século XIX, para não perder as terras do antigo aldeamento de Pedra Branca, extinto pela lei de terras. Pois os poderosos da região não mediram esforços para fazer com a luta dos Kariri-Sapuyá fosse invisibilizada, e que as ações de resistência fossem vistas como crimes cometidos por um indivíduo, no caso Baetinga. Ou seja, se retira completamente do contexto, da luta de um povo, para imputar a um só indivíduo. Essa é a estratégia da criminalização. E acredito que esse ardil se atualiza agora no caso de Joel Brás, de Babau Tupinambá, e tantos outros”, analisa.

 No caso do extremo sul da Bahia, a antropóloga destaca que se trata do “Estado e sua polícia cuidando da propriedade privada. Eu acho muito importante quando a gente analisa a coisa por inteiro, sabe, quando a gente pensa no sul da Bahia como um todo, e articula numa luta só Pataxó Hãhãhãe, Tupinambá e Pataxó. Porque é assim que o capital faz”. Jurema, a todo momento, coloca em diálogo os Pataxó e os Pataxó Hã-Hã-Hãe em suas análises. Lembra de uma conversa com um dos filhos de Samado Santos Pataxó Hã-Hã-Hãe, Diógenes Santos, preso durante a ditadura militar no reformatório Krenak, centro de tortura para indígenas que contestavam poderes locais.

“Ele me contava a perseguição sofrida por Samado pelos fazendeiros invasores da TI Caramuru. Anos 60 e os fazendeiros conseguem mandar preso pra Krenak o Samado e o Diógenes. Samado era teimoso, e quando os fazendeiros achavam que não tinha mais índios naquelas terras, olha as roças de Samado brotando em uma serra qualquer. Aí os fazendeiros iam lá e fogo nas roças, Samado ia pra outro canto. Enfim, parafraseando um colega meu, o Hugo Prudente, pra quem saber andar, andar na terra, andar no território, retomar é isso”, conta Jurema em interface ao contexto que leva Joel a esta situação de criminalização.

 No entanto, para a professora não se trata apenas de enfrentar uma luta contra os fazendeiros locais. “Os Pataxó enfrentam e desafiam o Estado por causa das invasões em seu território dos parques, primeiro de Monte Pascoal e depois do Parque do Descobrimento. A advogada Juliana dos Santos, que é Pataxó de Coroa Vermelha, escreveu um potente trabalho sobre a luta de Dona Josefa e Zabelê. Dona Josefa, nos anos 60 e 70, fazia roça na área do parque do Monte Pascoal porque não se conformava que aquela terra não seria mais dela e que nada ali poderia ser plantado. Pois o IBDF (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Ambiental), que era o órgão que cuidava das áreas de proteção ambiental nessa época, levava a índia pra delegacia. Ou seja…”, afirma.

Em 2003, Jurema passa a fazer parte da Associação Nacional de Ação Indigenista (ANAI), onde permaneceu até 2009. “Nesse momento eu me aproximei de Joel, Marlene (esposa de Joel), e passei a acompanhar isso um pouco mais diretamente. Eu costumo dizer para minha família e colegas na universidade, que chegam pra me questionar sobre o que sai na mídia, “mas ele matou mesmo?”, eu respondo: – eu sento, dou risada, choro, como junto, e troco afeto com eles como eu faço com vocês. Eu entro na casa, eu sento na mesa e bebo café como faço na sua casa, também. E eu não entro na casa de qualquer um!”.

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