A terra como território físico e concreto, de pertencimento, mas também como um espaço de disputa de narrativas e ancestralidade e de construção simbólica de outros olhares. Foi partindo deste norte que aconteceu o "Urgências! Terra", no Goethe Institut de São Paulo
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Na resistência e pedindo passagem
17/03/2017
por
Christiane Gomes

“A maioria das pessoas que estão na luta pela moradia são negras ou indígenas”

Por Christiane Gomes

Urgencias

A terra como território físico e concreto, de pertencimento, mas também como um espaço de disputa de narrativas e ancestralidade e de construção simbólica de outros olhares. Foi partindo deste norte que aconteceu o Urgências! Terra, ação organizada pelo Goethe Institut e que conta, neste novo ciclo de 2017, com a parceria da Fundação Rosa Luxemburgo.

A diversidade dxs convidadxs, que promoveram falas provocadoras para a discussão que viria a seguir, propiciou uma intensa reflexão sobre as mais diferentes visões sobre terra e território. A questão dos imigrantes bolivianos foi abordada por Ruth Camacho, advogada e integrante da Associação dos Comunicadores Bolivianos no Brasil (Ascombolbra), que relatou as dificuldades enfrentadas por eles que, em sua grande maioria, saem de seu país em busca de trabalho, já que a crescente aridez da terra os expulsa de lá. No Brasil, são explorados nas oficinas de costura da cidade de São Paulo em condições subhumanas.

Ruth também compartilhou a imensa dificuldade dos bolivianos em conseguir os documentos que os legalizam em solo brasileiro. Por falta de informação, muitas crianças nascidas no Brasil, que podem ser registradas como cidadãs brasileiras ficam meses, e até anos, sem nenhuma documentação. É neste ponto que surge a necessidade de uma rede de proteção jurídica para ampará-lxs. “Temos uma juventude muito inteligente, que domina as leis, mas não possui a prática. Eles precisam saber que lidamos com pessoas e sentimentos e não objetos. A terra grita por legalizar seus filhos que buscam outros lugares para viver, trabalhar e manter sua cultura”, afirmou.

Situação similar vivem os refugiados árabes e palestinos, que obrigados a fugir de sua terra, mantém o sonho de voltar a viver nela algum dia, como a mãe de Hazan Zarif, brasileiro-palestino, representante do “Movimento Palestina para Todos”, que mesmo há 31 anos no Brasil, nutria o desejo de regresso à Palestina. Hazan montou um panorama geral da limpeza étnica promovida por Israel.

Fruto de um sequestro que representa o maior crime da história da humanidade, milhões de africanxs chegaram ao país e, após a falácia da abolição da escravidão, foram preteridos do trabalho em nome dos imigrantes europeus, em um projeto político de branquear o país e, até hoje, seus descendentes sofrem as consequências. Essa percepção, trazida por Erica Malunguinho, mestra em história da arte e  idealizadora e gestora da Aparelha Luzia, espaço de artes e cultura negra, conhecido como um quilombo urbano, no centro da capital paulista pode ser comprovada com a comprovação de que, em um ambiente com cerca de 60 pessoas, apenas cinco eram negras. Para ela, a discussão de terra, propriedade e território no Brasil precisa ter, necessariamente, um recorte racial. “A maioria das pessoas que estão na luta pela moradia são negras ou indígenas”, apontou.

As comunidades religiosas afro-brasileiras também sofrem com o ataque aos seus espaços e territórios no país, consequência direta do racismo que estrutura a sociedade brasileira. “Nós do candomblé e das religiões de matrizes africanas estamos na resistência e pedindo passagem. Mas estamos sendo feridos de forma agressiva. O país é laico, mas para nossa cultura é imposto limites todo o tempo”, destacou Flávio, que lembrou do episódio recente em que uma criança de 10 anos de idade foi apedrejada, no Rio de Janeiro, por estar com as insígnias do candomblé.

Ainda no que se refere à ancestralidade, Daiara Tukano lembrou que 80% do genoma brasileiro é indígena, mas que o Brasil (assim como os Estados Unidos) tem dificuldade em perceber e aceitar esse traço identitário e identidade é, também, território. “A identidade é o espaço do segredo e cada segredo tem seu lugar e é isso que garante a diversidade. Assim, gosto de me referir aos territórios, sejam eles físicos ou subjetivos. Às vezes isso causa atritos, mas cabe a nós tirar proveito disso para aproveitar da melhor forma”, afirmou com sabedoria indígena.

As diferentes percepções sobre o tema, despertaram novos olhares e reflexões, em um dia repleto de trocas de ideias e desconstruções de conceitos. No se refere à luta por terra e defesa das identidades múltiplas que formam o Brasil, qual seria o melhor caminho: a conciliação ou o enfrentamento? É certo que, em cada momento, um deles se faz mais necessário. Mas os debates deste “Urgências!” levaram a público a questionar suas opiniões e visões com o objetivo de construir novos caminhos, onde o respeito seja a tônica principal. O próximo tema a ser discutido no “Urgências!” será o feminismo.