
As irmãs Verônica (esquerda) e Valéria Carvalho (direita), do Terreiro das Pretas
| Crédito: Bruna Santos / Brasil de Fato
No coração do semiárido nordestino, o verde que cobre quase um milhão de hectares da Área de Proteção Ambiental da Chapada do Araripe (APA Araripe) está ameaçado. A expansão agrícola, com suas monoculturas, impulsiona o desmatamento na região. Em 2024, a unidade de conservação, que abrange os estados do Ceará, Pernambuco e Piauí, foi a terceira mais desmatada do país.
Em meio ao cenário de degradação ambiental decorrente do modo de produção predatório, iniciativas pautadas pela convivência harmônica com a natureza também se fazem presentes no território.
Na estrada Santa Fé, na cidade do Crato (CE), há um espaço guiado pela coletividade e pelos saberes dos territórios, pensado, gerido e mantido por mulheres negras. É o Terreiro das Pretas, das irmãs Valéria Carvalho e Verônica Carvalho. O que começou com o plantio despretensioso de um pé de quiabo se transformou em um quintal afroecológico, no sentido mais profundo da palavra.
“A gente foi morar naquele sítio e, de repente, a gente olhou para aquela terra e começou a fazer alguma coisa. A plantar, a plantar árvores frutíferas, a colocar uma roça, a lembrar do que o nosso pai, especialmente – e principalmente o que os agricultores, que eram sujeitos do nosso trabalho – colocavam para a gente. Então, a gente começou assim”, comenta Verônica.

Os quintais afroecológicos são sistemas produtivos diversificados, implantados em pequenas áreas. A produção de alimentos saudáveis seguem os preceitos da agroecologia, sem aplicação de agrotóxicos, promovendo sustentabilidade, manejo adequado da terra e soberania alimentar. Em sua essência, carregam os saberes afro-brasileiros – herança que as irmãs fazem questão de preservar.
“Se a nossa ancestralidade é uma ancestralidade negra, africana, afro-brasileira, então por que não dar esse crédito a eles? Eu acho que tem alguns termos hoje que são criados, eu não vou nem dizer que é para negar essa herança e essa ancestralidade, mas que é feito para mercado, para acessar projetos, para isso. E a gente não pode deixar que uma cultura assim se dissolva por meio do mercado”, aponta Verônica.
Para as irmãs Carvalho, o grande mestre da construção do quintal foi a própria terra. “A terra vai ensinando qual é o melhor local, como é o melhor jeito. Então, foi esse processo, o nosso processo de aprendizado foi isso”, destaca Verônica.
O aprendizado prático, a partir da observação e convivência com a terra, é compartilhado por Valéria.
“E aí vai procurando saber de onde é essa planta, qual a origem dessa planta, para promover a confluência, como diz Nêgo Bispo. Tudo conflui, tudo conflui. Então, se o quiabo é de origem africana, tem muito a ver com aquilo que a gente faz e fala e promove”, completa Valéria.
Mais do que um pedaço de terra para plantar, o Terreiro das Pretas se tornou um lugar de questionamentos e reflexões políticas. Ali, se reflete coletivamente, com as comunidades ao redor, sobre como o verde da APA Araripe, que completou 28 anos de existência, tem sido tomado pelo agronegócio, pela ausência de fiscalização, pela destinação de água à monocultura e pela lógica do lucro.
Com o passar do tempo, surgiram parcerias e suporte de profissionais especializados, que apoiaram no manejo. Longe de achar que a solução para a crise climática e a proteção da APA Araripe se resume ao quintal, elas apontam que um dos objetivos do espaço é atrair gente para as partilhas, para o aprendizado coletivo, para a organização popular e para a reflexão. “Mas a gente só precisa daquilo para viver. Então, a gente não explora a terra”, pontua Valéria.
O Terreiro das Pretas é um modo de existir. Um território de luta, afeto, criação e transformação. Atualmente, além do quiabo lá do começo, o espaço conta com cisternas, sistema de irrigação, sementes de café, milho, jatobá, maracujá, criação de animais de pequeno porte e até um baobá, a árvore símbolo de resistência e ancestralidade africana.

Era preciso aquilombar-se
O local é morada da família Neves Carvalho há mais de duas décadas, remanescente do Quilombo Saco dos Cansanção, no sertão de Araripina (PE).
Verônica Carvalho é bióloga e assistente social. Valéria Carvalho é pedagoga. Ambas atuam no Cariri cearense na defesa e promoção dos direitos das pessoas negras, com papel essencial na construção das marchas das mulheres negras regional e estadual. Elas também são fundadoras do Grupo de Valorização Negra do Cariri (Grunec).
Apesar de se identificarem como “da cidade”, as irmãs afirmam que, diante da necessidade de retomar direitos e fortalecer identidades, era preciso aquilombar-se.
Além dos títulos que carregam, inclusive o de doutoras Honoris Causa pela Universidade Regional do Cariri, elas trazem a herança viva dos saberes ancestrais e o propósito de inspirar por meio de suas ações. Inspirar, e não ensinar. Esse é o propósito que move o Terreiro das Pretas.
“É inspirar as pessoas a fazerem do mesmo jeito, a cuidar da mãe Gaia, porque a terra é a nossa grande casa. Então, se a gente não cuida da casa da gente, a gente vê o que vai acontecer e o que está acontecendo. Então, tudo naquele terreiro é motivo de reflexão e de celebração”, comenta Verônica.

Não dá para fazer afroecologia em ‘terra de patrão’
Os quintais afroecológicos são considerados tecnologias sociais forjadas, sobretudo, pelas mãos das mulheres. Neles, o trabalho cotidiano se mistura com a vida: tudo que nasce, cresce e volta à terra, se tornando parte de um ciclo de início-meio-início.
A folhagem retirada do arredor da casa vai para o cisqueiro. As fruteiras e os pequenos animais se misturam no mesmo espaço, criando uma dinâmica viva.
“Nesse arredor de casa que está a variedade de fruteiras, variedade de pequenos animais, como a galinha, as aves, em geral – pato, peru, capote – e variedade de fruteiras de todos os tamanhos, de todos os sabores… então é essa diversidade que faz com que esse espaço se torne mais gostoso de estar perto”, explica Regilane Alves, técnica em agropecuária e integrante da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).

A profissional acrescenta que o equilíbrio se manifesta até no invisível: o trabalho silencioso dos micro-organismos que regeneram o solo. As flores também têm papel fundamental, são mais que beleza. Ali, elas também se tornam proteção, atraem polinizadores e afastam pragas. E há um cuidado constante com a água: nada se desperdiça.
“A gente diz que não tem acesso à água, mas estamos debaixo de um manancial de água. E por que o povo do entorno tem dificuldade em acessar a água? A água para essa grande monocultura que vem aí, ao que já está posta, vem de onde? Que tecnologia está sendo usada para levar a água para o agronegócio que vão implantar aqui na nossa chapada? Por que não chega a água para quem dela realmente precisa, uma vez que a água é um bem da humanidade?”, questiona Valéria, ao mencionar que no terreiro o custo-benefício de carro pipa é melhor do que a conta proveniente do Sistema Integrado de Saneamento Rural (Sisar), implantado no município.
De acordo com Regilane Alves, esse sistema afroecológico se fortalece justamente na diversidade. “A agroecologia não se dá com monocultura. Então quanto mais diverso, melhor e mais equilibrado é aquele agroecossistema. É esse sentido que faz também essa proteção daquela área, não faz o desmatamento, pelo contrário, então isso vai auxiliar também na questão das mudanças climáticas”, destaca.
A ferida aberta
A APA Araripe, que abrange os estados do Ceará, Pernambuco e Piauí, tem enfrentado, nos últimos anos, uma intensificação das pressões sobre o território, com projetos patrocinados pelo agronegócio e pelo setor imobiliário.
Em 2024, a área apareceu no ranking como a terceira unidade de conservação mais desmatada do país, de acordo com dados do relatório anual do MapBiomas. Somente em 2024, a região perdeu 5.965 hectares de vegetação. No mesmo período foram contabilizados 652 alertas. Em 2023, o desmatamento foi de 4.636 hectares, figurando na época em quinto lugar no ranking nacional.

“Esses grandes investimentos fazem também muito desmatamento para poder produzir do jeito que eles querem, né? Isso leva ao afastamento das pessoas. As pessoas são obrigadas a sair de suas terras porque eles vão querer uma grande coisa de terra. Então, tira autonomia desses agricultores e dessas agricultoras”, relata Alves.
Ela lembra ainda que o avanço desses projetos compromete o lençol freático e afasta as famílias das práticas agroecológicas.
“A justiça climática se faz quando a gente tem autonomia para plantar, produzir do jeito que a gente quer, com tamanho suficiente para nossa produção.”
Segundo o Coordenador Regional do Instituto Chico Mendes da Biodiversidade (ICMBio), Carlos Augusto de Alencar Pinheiro, embora não haja informações específicas sobre desmatamento nos arredores da Estrada Santa Fé, a região do Crato, incluindo áreas próximas ao quintal afroecológico do Terreiro das Pretas, enfrenta desafios relacionados à supressão de vegetação e à degradação ambiental.
A Chapada do Araripe, local onde a APA é delimitada, desempenha um papel crucial no equilíbrio ambiental do semiárido nordestino. Sua rica biodiversidade inclui espécies endêmicas de fauna e flora, além de ser uma importante fonte de recursos hídricos. Estudos indicam que as fontes naturais da região, como nascentes e cursos d’água, são essenciais para o abastecimento de água e para a manutenção dos ecossistemas locais.

“A atuação de iniciativas como o Terreiro das Pretas, que promovem práticas agroecológicas e valorizam o conhecimento tradicional, é fundamental para mitigar esses impactos e contribuir para a conservação da vegetação nativa”, pontua Pinheiro.
Hoje, a iniciativa se soma a outros projetos de Sistemas Agroflorestais (SAFs) e cadeias produtivas de restauração florestal, que recuperam áreas degradadas, estruturam a produção de sementes e mudas nativas.
Ações como a “Operação Guardiões da Chapada o Araripe”, do ICMBio, também vão ao encontro de medidas para a proteção da área. Segundo o órgão, após a identificação de 1.500 alertas de desmatamento entre 2022 e 2025, foram selecionados 250 focos de fiscalização, com o objetivo de “embargar áreas desmatadas ilegalmente e restaurar a vegetação nativa”.
O pedido das mulheres negras não vem de hoje: olhem os territórios!
O quintal começou com a plantação de quiabo, mas o pedido das irmãs e, sobretudo, das mulheres negras do Cariri para proteger a APA Araripe ecoa há muito mais tempo, antes mesmo que palavras como “crise climática” e “biodiversidade” ganhassem espaço nas pautas públicas.
Em 31 de março de 2015, durante a realização da 1ª Marcha das Mulheres Negras do Cariri, a reivindicação já era uma pauta central: “Pelo acesso à água, à terra, à moradia digna, salário justo, emprego e renda. Pela construção e implementação de desenvolvimento sustentável e social do campo e da cidade, tornando os lugares bons de se viver”, diz trecho do manifesto divulgado pela organização, que inclui o Terreiro das Pretas.
Em 2023, a pauta se manteve, mas de outra forma: “Pela titulação e garantia das terras quilombolas, indígenas, pela reforma agrária e combate ao racismo ambiental”.

O tempo passou, mas a urgência permaneceu. Em 2025, o chamado se renovou. Na última Marcha Regional, as mulheres negras pediram segurança alimentar, justiça climática e ambiental; demarcação de terras indígenas e quilombolas, apoio à agricultura familiar e a proibição de pulverização aérea de agrotóxicos.
“É um tema que é de importância, que é sobre a nossa vida. Então a gente tem tentado ocupar os espaços de debate nas conferências, em reuniões, nos próprios conselhos de meio ambiente nos municípios, para que a gente consiga discutir esse tema com mais inserção e propriedade também”, explica Verônica Isidório, da Frente de Mulheres do Cariri e do Comitê Impulsionador da Marcha das Mulheres Negras no Ceará.
A demanda, porém, vai além da disputa com o agronegócio ou a monocultura. Segundo Isidório, outros braços desse modelo de produção seguem o mesmo caminho: a indústria, com sua produção incessante de resíduos e químicos; e a mineração ilegal, que invade áreas de preservação e ameaça povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais.
Para ela, essas pautas urgentes das mulheres negras do Cariri, também são reivindicações nacionais, que serão levadas à 2ª Marcha Nacional das Mulheres Negras, que será realizada no dia 25 de novembro, em Brasília.

“A gente precisa tratar isso de uma forma muito séria. O debate que se deve fazer na COP30 precisa entrar muito forte na questão do enfrentamento ao racismo ambiental, porque são as comunidades ribeirinhas, as quilombolas indígenas, as comunidades tradicionais e as periferias das grandes cidades, obviamente, onde estão acumuladas a maior parte das pessoas pretas. E parte das pessoas negras nesse país tem sofrido com a questão dessas injustiças a partir do viés ambiental climático no mundo”, aponta.
Ter dentro do problema os caminhos que podem levar à solução: escutar as comunidades, os territórios, cultivar modos de produção que não devastam a natureza, olhar de outra forma para os recursos naturais e, sobretudo, repensar a vida.
“Agora, a felicidade é um projeto. É isso que a gente tenta no Terreiro das Pretas. A plantação é mais essa. A gente planta felicidade, acolhimento, respeito, amor, ação, amoração e ação no amor, entendeu? É isso, a nossa plantação, a nossa produção é essa. É mais essa, é construir consciência”, finaliza Verônica Carvalho.
*Reportagem produzida no âmbito do programa de microbolsas de jornalismo Marcha das Mulheres Negras 2025, promovido pelo Brasil de Fato e pela Fundação Rosa Luxemburgo.
Edited by: Geisa Marques



