| Este artigo também foi publicado no Le Monde Diplomatique Brasil, em uma parceria editorial que busca ampliar o debate sobre justiça climática. Trata-se de uma versão reduzida; o texto completo pode ser lido no livro Energia e Neocolonialismo. A publicação integra a coleção Politizando o Clima, editada pela Fundação Rosa Luxemburgo em parceria com a Editora Funilaria. A série reúne quatro volumes que questionam as soluções climáticas hegemônicas e denunciam os impactos da financeirização da natureza sobre territórios do Sul Global. |
A expansão do capital sobre os territórios, sob a justificativa de “soluções verdes” e “sustentáveis”, revela uma continuidade da lógica extrativista intensiva e extensiva, revestida de discursos ambientais que usa a terra, a água, o Sol, o vento e a biomassa para convertê-los em mercadorias em nome da transição energética. Nessa seara, o setor sucroenergético e os agrocombustíveis, mesmo com sua retórica de modernidade, não apenas mantêm, como ampliam essa dinâmica, convertendo as terras em zonas de extração intensiva, aprofundando desigualdades históricas e intensificando os conflitos diretos com comunidades e agricultores familiares. O agronegócio energético consolidou essa sua posição dominante por meio de políticas de financiamento e mecanismos institucionais, que, embora promovidos como “sustentáveis”, mascaram impactos socioambientais graves. Estudos comprovam os efeitos negativos dessas práticas na saúde humana e nos ecossistemas, além de reforçarem a subordinação da agricultura familiar, transformando-a em mera fornecedora de matéria-prima para o mercado de agrocombustíveis e seus derivados.
Os agrocombustíveis (termo que usaremos para nos referir ao que as indústrias e Estado se referem como “biocombustíveis”, pois ele explicita sua origem agrícola) são considerados “os representantes da primeira geração de combustíveis oriundos da biomassa” (Lizarazo, 2018, p. 356) e, frequentemente, são apresentados como uma solução para fortalecer a agricultura, a soberania energética e alimentar. Entretanto, a sua expansão tem sido marcada por contradições, especialmente em países como Brasil, México, Colômbia, Argentina e Guatemala, que concentram as maiores áreas plantadas de cana-de-açúcar no mundo (Lizarazo, 2018). No Brasil, a produção de etanol, bioeletricidade, biogás e biometano atinge cerca de 17,5 bilhões de litros anuais, sendo que cada 1 hectare de cana-de-açúcar produz aproximadamente 7 mil litros de etanol (IBGE, 2023). Essa expansão gera uma competição crescente com outros usos da terra, não somente em relação à produção de alimentos e à preservação ambiental, mas também em relação a outras formas de geração de energia, como eólica e solar.
Esse cenário tem incrementado os conflitos agrários e redefinido o uso das terras, exigindo uma análise crítica das ações propositivas das organizações sociais e dos movimentos camponeses. A partir dessas premissas, este artigo aborda a relação entre a terra e o setor sucroenergético no estado de São Paulo, trata dos desdobramentos desse cultivo nos territórios e apresenta alternativas propositivas dos povos organizados.
Agronegócio, setor sucroenergético e conflitos socioambientais
No estado de São Paulo, somente em 2023 foram produzidas cerca de 440 milhões de toneladas de cana-de-açúcar destinadas à indústria de etanol, açúcar e biomassa. Como mostra o mapa a seguir, esse plantio situa-se principalmente nas regiões de Ribeirão Preto, Piracicaba, São José do Rio Preto, Araçatuba e Pontal do Paranapanema. A área total ocupada foi de aproximadamente 4,5 milhões de hectares e o valor estimado produzido passou, entre 2019 e 2023, de R$ 29 milhões para R$ 56 milhões.
Figura 1: Mapa da distribuição a produção de cana-de-açúcar nos municípios de São Paulo

Esse período foi marcado pela consolidação da agroenergia influenciada pelo ambientalismo do capital e alicerçada na expropriação de terra e águas, dois fatores indispensáveis para os empreendimentos agroindustriais (Thomaz Junior, 2010). Nesse processo, os agrocombustíveis são contraditoriamente inseridos nas políticas de desenvolvimento rural como oportunidade para fortalecer a agricultura capitalista e alavancar os produtos derivados da cana-de-açúcar, com o respaldo de programas e políticas de Estado relacionados à matriz energética e à política nacional de combustível, tal como o Programa Nacional de Biodiesel (PNPB), de 2004, e a Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio), de 2017.
No Brasil, o regime de acumulação centrado no agronegócio condiciona as relações sociais e as instituições desde a Colônia e perpetua conflitos no elo da monocultura e do meio ambiente. Já no regime militar, as usinas foram transformadas em polos de commodity energética e a adoção de uma política agrária que privilegiava o desenvolvimento do capitalismo voltado para os agrocombustíveis catalisou um ciclo de investimentos em novas usinas e levou ao abandono das pautas em torno da reforma agrária. Com os recursos públicos concentrados no incentivo do agronegócio, eles conseguem desenvolver suas atividades contando com elevadas quantidades de financiamento, anos de carência, e possibilidades de isenção de impostos, enquanto aos camponeses resta parcela mínima.
Exemplo disso é a distribuição do Plano Safra. Nos períodos 2010/2011 e 2022/2023, o agronegócio recebeu respectivamente R$ 90 bilhões e R$ 340 bilhões e a agricultura familiar, R$ 16 bilhões e R$ 71 bilhões (Brasil, 2023). O agronegócio recebeu, em média, cinco a seis vezes mais recursos que a agricultura familiar, evidenciando o tipo de desenvolvimento que o Estado tem priorizado. Esse favorecimento levou à formação de gigantescos grupos empresariais, como o Cosan e a Atvos (antiga Odebrecht Agroindustrial), que controlam toda a cadeia, desde a produção de cana-de-açúcar até rodovias e portos, como nas áreas de concessão estatal do Porto de Santos.
Pela manutenção da concentração fundiária, a dinâmica territorial do capital agroindustrial canavieiro afeta diretamente as formas de organização do trabalho camponês, o que impede o acesso à terra e o desequilíbrio na adoção de políticas públicas e investimentos públicos para o desenvolvimento da agricultura familiar. Além disso, o setor sucroenergético se apresenta ideologicamente como a materialização do ambientalismo do capital, quer dizer, como mercadorias verdes que ajudam na diminuição das emissões de gases de efeito estufa (GEE) e na melhora das condições de vida no campo por meio da geração de empregos (Thomaz Júnior, 2010; Lizarazo, 2018). Mesmo que o efeito ecológico do cercamento das áreas de produção de cana-de-açúcar nos assentamentos de reforma agrária mostrem infertilidade e compactação do solo, processos erosivos, falta de água e perda de biodiversidade em decorrência ao uso de agrotóxicos, promovidos pela monocultura quimificada.

Pesquisadores do Centro de Estudos em Educação, Trabalho, Ambiente e Saúde (CEETAS) evidenciaram que a presença da cana-de-açúcar e das usinas, impulsionada pelo Zoneamento Agroambiental (ZAA), trouxe impactos significativos e contraditórios para a região do Pontal do Paranapanema. A monocultura ocupa mais de 60% de algumas sub-bacias hidrográficas, comprometendo a qualidade e a quantidade dos recursos hídricos. Além disso, 5.028,70 hectares de cana estão a menos de 250 metros de nascentes, e 57.645,55 hectares estão na mesma distância de rios, agravando os riscos de contaminação e assoreamento. A expansão da cana também avança sobre áreas de alta vulnerabilidade de aquíferos, saltando de 3.516,27 hectares em 2002 para 78.865 hectares em 2016, e sobre zonas de amortecimento de Unidades de Conservação, onde o cultivo passou de 24.758,45 hectares em 2002 para 173.812,65 hectares em 2016 (Moroz-Caccia Gouveia, Gouveia, 2020). Paradoxalmente, a produção dos agrocombustíveis é frequentemente apresentada como uma alternativa menos poluente ao petróleo. No entanto, essa narrativa oculta o conjunto de prejuízos socioambientais decorrentes da produção de commodities no Brasil, que afetam todos os biomas brasileiros sob diversas formas: desmatamento, contaminação ambiental e humana, queimadas, processos de desertificação, assoreamento de rios e mananciais, desequilíbrio biológico, dentre outros efeitos.
Ainda que o setor sucroenergético se reinvente em suas narrativas e tecnologias, incluindo iniciativas sociais, ele mantém sua natureza predatória e concentradora, ameaçando a justiça ambiental e a saúde humana, particularmente nos territórios de assentamentos, frequentemente alvo da expansão das grandes corporações do agronegócio. Além disso, as transformações no mundo do trabalho, impulsionadas por tecnologias que aumentam a produtividade canavieira e reforçam a acumulação capitalista à custa da precarização laboral (Thomaz Júnior, 2017; Lizarazo, 2018).
Por um modelo energético popular e soberano
Quem resiste à expansão dos plantios e de infraestrutura promovida pelas corporações frequentemente é acusado de ser contrário ao progresso (Honty, 2008). No entanto, o debate sobre agrocombustíveis ganha relevância quando focado em modelos descentralizados, onde a produção energética é controlada por comunidades e integrada às economias territoriais, transformando a agroenergia em uma ferramenta de desenvolvimento rural e fortalecimento da autonomia territorial. Nesse sentido, em 2009, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) inaugurou as primeiras dez unidades de biodigestores do Projeto Alto Uruguai em Itapiranga (SC), uma iniciativa pioneira que transforma dejetos suínos em energia limpa, fruto de parceria com Eletrosul, Eletrobrás, universidades e prefeituras locais. O projeto beneficiou 5 mil famílias com acesso à energia, criou o primeiro grupo de agricultores geradores de eletricidade no país, e instalou quarenta placas solares em prédios públicos, aliando solução ambiental (tratamento de resíduos) com geração de renda e vislumbrando um modelo de autossuficiência comunitária que se tornou referência nacional na luta por justiça energética, demonstrando como movimentos sociais podem protagonizar alternativas concretas à matriz energética tradicional (MAB, 2009).
Mais recente, o projeto “Alimergia Continuidade”, desenvolvido pela Cooperativa Mista de Produção, Industrialização e Comercialização de Biocombustíveis do Brasil Ltda (Cooperbio) com apoio da Eletrobras, promoveu avanços significativos em sustentabilidade e agroecologia no Médio Alto Uruguai/RS. Realizado em municípios como Seberi e Erval Seco, o projeto implantou vinte agroflorestas em dois anos, incluindo produção consorciada de alimentos, 260 visitas técnicas e integração de agricultores e estudantes em ações de educação ambiental (Corbari, 2023).
Já no Assentamento Genipapo, em Acreúna (GO), a experiência com energia solar tem se mostrado uma alternativa viável e transformadora. A Associação de Moradores do Assentamento Genipapo (Amag) recebeu um sistema de energia solar destinado à agroindústria local, beneficiando diretamente uma panificadora administrada por vinte mulheres da comunidade. Essa iniciativa substituiu os custos da conta de energia e fortaleceu a produção, que é destinada às escolas e aos programas de assistência social do município (Cardoso, 2022). Além disso, no assentamento Maré, em Aliança (PE), o MST e o governo de Pernambuco buscam substituir a monocultura da cana pela produção de alimentos saudáveis, como o arroz agroecológico, cultivado por famílias que antes só conheciam o deserto verde da cana (Stropasolas, 2023).
Fortalecendo essas experiências, o governo federal lançou em 2 de março de 2024 o projeto piloto Cozinha Solidária Sustentável. O projeto prevê a instalação de biodigestores e de painéis solares em sete cozinhas estrategicamente mapeadas pelo Brasil, em Foz do Iguaçu (PR), Brasília (DF), Ananindeua (PA), São Leopoldo (RS), Rio de Janeiro (RJ), Fortaleza (CE) e Boa Vista (RR). Além disso, serão disponibilizados outros equipamentos necessários para garantir um processo de cozimento limpo durante o preparo das refeições, ou seja, utilizando fontes energéticas alternativas.
Diante dos enormes problemas enfrentados pelos camponeses e da destruição da natureza gerada pelo modelo energético dominante, fica evidente que o acesso à energia na agricultura familiar é fundamental para a armazenagem, beneficiamento, agroindustrialização e conservação da produção, fortalecendo a soberania alimentar e energética no campo. É necessário, portanto, diversificar fontes energéticas e colocar em prática políticas públicas que promovam outras fontes de energia, como a solar, eólica e biomassa. Além disso, é urgente visibilizar as denúncias sobre os impactos territoriais do agronegócio energético e suas consequências sobre mulheres e jovens. Estes não só denunciam esses abusos como protagonizam experiências concretas por meio de práticas agroecológicas e modelos energéticos descentralizados, demonstrando ser possível conciliar produção de energia com justiça socioambiental, integrar sistemas energéticos renováveis com produção de alimentos e criação animal, e construir gestões coletivas que transformam a energia de commodity em ferramenta de soberania territorial.
Lisbet Julca Gonza é socióloga e cientista política pela Unila, mestre em Desenvolvimento Territorial e Políticas Públicas pela UFRRJ, doutora em Geografia pela Unesp-Presidente Prudente, pós-doutoranda da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da USP, e integrante do Observatório Internacional de Estudos em Democracia, Desigualdades e Ruralidades no Sul Global. Contribui na coordenação política pedagógica na Escola Popular Rosa Luxemburgo, do MST-SP.
Fabiana Barboza Alves de Anhaia é educadora do campo em Ciências da Natureza pela UFPR, estudante em especialização em “Trabalho associado e educação para além do capital na América Latina” no IFSP-INCRA-PRONERA. Contribui na coordenação política pedagógica na Escola Popular Rosa Luxemburgo, do MST-SP.
Referências Bibliográficas
Brasil. Ministério da Agricultura e Pecuária. Presidente anuncia Plano Safra 2023/2024 com financiamento de R$ 364,22 bilhões. 2023.
Cardoso, Luana. Assentamento goiano recebe sistema de energia solar para panificadora administrada por mulheres. 25 nov. 2022.
Corbari, Marcos Antonio. Cooperbio e Eletrobras concluem ações do projeto ‘Alimergia Continuidade’ no RS. Brasil de Fato. 21 dez. 2023.
Honty, Gerardo. Agrocombustibles y sustentabilidad en América Latina. V Congreso Regional de Ingeniería Química. Montevideo, Uruguay. 5-7 jan. 2008.
Lizarazo, Robinzon P. Mobilidade territorial do trabalho de jovens rurais em territórios do agrohidronegócio de cultivos flexíveis. Palma de azeite nos departamentos de Meta e Casanare (Colômbia) e cana-de-açúcar no Pontal do Paranapanema (São Paulo, Brasil). Tese de doutorado em geografia. Unesp. 2018.
MAB. Atingidos por barragens inauguram biodigestores em SC. 2009.
Moroz-Caccia Gouveia, I. C.; Gouveia, J. M. C. Zoneamento agroambiental para o setor sucroalcooleiro do Estado de São Paulo: considerações e contrapontos. In: Leonice Seolin Dias; Diógenes Rabello; Maurício Dias Marques (orgs.). Cana-de-açúcar: ambiente, trabalho e saúde. 1ed. Tupã. ANAP. 2020, v.1, p.13-36.
Stropasolas, Pedro. MST em PE produz arroz agroecológico e recupera área de monocultivo de cana-de-açúcar. 8 dez. 2023.
Thomaz Júnior, A. O agrohidronegócio no centro das disputas territoriais e de classes no Brasil do século XXI. CAMPO-TERRITÓRIO: Revista de geografia agrária, Maringá, v.5, n.10, p.32-122, ago. 2010.
____________. O trabalho me impõe desafios renovados e me ocupa à autocrítica de uma obra inacabada. Presidente Prudente. Tese de Professor Titular. Unesp, Faculdade de Ciências e Tecnologia. 2017



