Há alguns meses, o Fridays for Future e o sindicato ver.di formaram a aliança #wirfahrenzusammen na Alemanha para saírem juntos à rua por melhores condições de trabalho, melhores salários e uma expansão dos transportes públicos locais.
Em muitas cidades alemãs, já existem grupos de ação que recolhem assinaturas e estabelecem contacto entre os trabalhadores dos transportes públicos e os ativistas do clima.
No Brasil, mais de 80 cidades já têm transportes públicos gratuitos, mas estes estão prestes a ser cancelados em muitas outras regiões – o que levanta a questão do financiamento alternativo e o problema premente da pobreza na mobilidade.
A Federação Europeia dos Trabalhadores dos Transportes reivindica a expansão dos transportes públicos em toda a Europa, a proteção dos trabalhadores contra a violência e melhores condições de trabalho e salários.
Ao mesmo tempo, torna-se evidente que os Estados-Membros europeus não estão utilizando suficientemente o dinheiro do Fundo Europeu de Alívio do Coronavírus para a expansão dos transportes ferroviários e públicos.
Por último, mas não menos importante, há a questão da “mobilidade forçada”: cada vez mais pessoas são obrigadas a sair dos centros das cidades porque já não podem pagar os custos, dependem de carros ou devem se contentar com transportes públicos deficientes. Muitas pessoas na Europa e no Brasil são, portanto, afetadas pela baixa qualidade da mobilidade.
PAINEL INTERNACIONAL
Em dezembro de 2023, o escritório de Bruxelas da Fundação Rosa Luxemburgo realizou o painel Direito à Mobilidade para Todos: Transporte Público Gratuito – Novas Alianças Possíveis? Painel de Discussão Pública.
Participaram do debate Daniel Santini, do escritório de São Paulo da Fundação Rosa Luxemburgo; Cristiane Costa Gonçalves, da Universidade Federal de Minas Gerais, engenheira; Conor Farrell, da Federação Europeia dos Trabalhadores dos Transportes ETF, sindicato, Bruxelas; Judith Dellheim, da Berliner Energietisch, Alemanha; e Rika Müller-Vahl, da #wirfahrenzusammen, Alemanha.
TRANSPORTE PÚBLICO GRATUITO: PANORAMA BRASILEIRO
Em sua intervenção, Daniel Santini, explicou que a tarifa zero nos transportes públicos é muito popular no Brasil e já foi implementada em 87 cidades brasileiras (principalmente cidades de média e pequena dimensão).
Uma referência importante é a cidade de Maricá, no Rio de Janeiro. Cerca de 197.000 habitantes se beneficiam dos transportes públicos com tarifa zero há muitos anos. Em 2022, 26 milhões de pessoas em Maricá foram transportadas gratuitamente nos famosos ônibus vermelhos.
BANDEIRA DE CAMPANHA
Agora, as cidades maiores também estão cada vez mais interessadas no transporte público com tarifa zero, por exemplo, São Paulo, com 11,4 milhões de habitantes, é governada por um prefeito conservador. O prefeito Ricardo Nunes está pensando** em introduzir transportes públicos gratuitos, pois descobriu esta questão como um tema de campanha e espera marcar pontos nas próximas eleições locais.
O seu adversário, Guilherme Boulos, do partido de esquerda PSOL, está bem ancorado no movimento pelo “direito à moradia” e pela “gratuidade do transporte público”, de modo que o prefeito Ricardo Nunes se sente compelido a colocar esse tema na agenda. Até agora, o candidato de esquerda Boulos tem estado à frente nas sondagens eleitorais.
QUEDA NO NÚMERO DE PASSAGEIROS
Daniel Santini descreveu ainda a queda drástica do número de passageiros nos transportes públicos – nas cidades que não aplicam a tarifa zero. Em São Paulo, por exemplo, foram transportados 3 bilhões de passageiros no sistema de ônibus em 2013 – quase dez anos depois (2022), esse número caiu para apenas 2 bilhões de passageiros.
Ao mesmo tempo, o número de carros registrados está aumentando: em 2013 havia 45 milhões (dois carros por dez habitantes), em 2023 haverá 61 milhões de carros (cinco carros por dez habitantes). As razões para o aumento do transporte privado motorizado e para a diminuição do número de passageiros dos transportes públicos residem na qualidade cada vez mais deficiente dos transportes públicos.
É como um círculo vicioso. O número de passageiros diminui, a arrecadação cai, o preço das tarifas aumenta ou o atendimento é reduzido, o que, invariavelmente, leva a uma nova diminuição de passageiros.
MOBILIDADE GARANTE OUTROS DIREITOS
A mobilidade é um direito humano e a sua realização é uma condição prévia para o exercício de outros direitos básicos. A questão da aplicação da tarifa zero é frequentemente apresentada como uma “questão técnica” – no entanto, não se trata de uma questão técnica, mas sim de uma questão política, ou seja, de uma decisão política.
Algumas cidades, por exemplo, poderiam disponibilizar dois a três por cento do seu orçamento para o financiamento integral dos transportes públicos ou também socializaram o sistema, podendo assim poupar custos. É claro que os custos externos do transporte privado motorizado teriam que ser incluídos no cálculo global: a mobilidade baseada no automóvel gera poluição, mortes no trânsito e congestionamento – uma situação que afeta tanto os usuários de carros como os de transportes públicos.
A gratuitidade dos transportes públicos traria muitos benefícios: a desigualdade social seria reduzida, a economia local seria estimulada e a proteção do clima seria promovida.
Daniel Santini concluiu descrevendo como a exigência de tarifas zero para os transportes públicos poderia também ser uma oportunidade para forjar novas alianças entre os trabalhadores, o movimento ambientalista e a sociedade civil, em geral – no espírito de uma nova política social que combata a pobreza e o racismo.
EXPERIÊNCIA MINEIRA
Cristiane Costa Gonçalves é planejadora de transportes na cidade de Mariana. A cidade mineira está implementando transportes públicos com tarifa zero. Durante o painel realizado em Bruxelas, a especialista brasileira explicou os sucessos e os desafios da medida.
A cidade de Mariana tem 33.000 carros para uma população de cerca de 60.000 habitantes, ou seja, há um carro para cada dois habitantes. O transporte com tarifa zero foi implementado em 2022. Segundo ela, o programa foi tão bem recebido que hoje são 400.000 passageiros que podem ser transportados por mês.
Desde a introdução dos transportes públicos gratuitos, a procura triplicou – a Câmara Municipal aumentou o número de linhas, alargou as linhas existentes e modernizou a frota de veículos. O aumento do número de passageiros deve-se sobretudo ao fato de terem sido ligados aos transportes públicos bairros e distritos que anteriormente não eram servidos e que eram literalmente “deixados para trás”.
PESQUISA DE OPINIÃO
Graças à introdução da tarifa zero, a administração da cidade tem agora também acesso aos dados relevantes dos fornecedores e pode avaliar onde o serviço é particularmente bem recebido. Antes da introdução da tarifa zero, os cidadãos foram envolvidos a fim de descobrir exatamente quais eram as suas necessidades e onde era necessário introduzir melhorias.
No âmbito do processo de implementação, a Câmara Municipal combinou os dados relativos ao volume de passageiros com os dados socioeconômicos e verificou que o número de passageiros aumentou de forma particularmente acentuada nas zonas onde as pessoas são mais afetadas pela pobreza e dependem de apoios estatais.
Foi realizada uma pesquisa com 3.000 cidadãos, com resultados muito satisfatórios: 92% dos entrevistados estão satisfeitos com os transportes públicos a tarifa zero, 56% não têm outra opção que não seja o transporte público para assegurar a sua mobilidade e 31% têm outras opções, mas continuam a preferir os transportes públicos porque são oferecidos a tarifa zero.
Isto demonstra que a mudança do transporte privado motorizado para o transporte público ocorre efetivamente, e que tal se deve à introdução do transporte público a tarifa zero. Este efeito foi particularmente forte nas estradas que anteriormente tinham atraído uma atenção negativa devido às tarifas muito elevadas. No entanto, há que referir que 60% dos entrevistados criticam a superlotação dos veículos, 40% consideram que é necessário melhorar o conforto e 20% pensam o mesmo da segurança.
CÁLCULO DE CUSTOS
Na relação entre a administração municipal e os prestadores, a tarifa zero tem a vantagem de os dados estarem agora abertos e de os prestadores já não puderem simplesmente deixar de operar uma linha por não ser suficientemente “rentável”.
No entanto, a tarifa zero também não é suficiente para garantir que todos possam usufruir do seu direito à mobilidade. Um dos problemas é, por exemplo, o método de cálculo dos custos dos transportes públicos, que, infelizmente, continua a basear-se no sistema IPK (Índice de Passageiros por Quilômetro), ou seja, o “índice de passageiros por quilômetro”.
Infelizmente, este índice leva a um incentivo desvantajoso para que os prestadores de serviços encham demasiado os seus veículos com o maior número possível de passageiros, a fim de gerarem custos mais elevados, que podem depois reclamar.
Este sistema deveria ser abolido, uma vez que torna os transportes públicos menos atrativos e convenientes. Há também falta de especialistas qualificados que possam implementar transportes públicos a custo zero no município. E por último, mas não menos importante, os serviços de transportes públicos precisam simplesmente de ser alargados para acompanhar o aumento da procura, conclui Cristiane Costa Gonçalves.
PANORAMA EUROPEU
Conor Farrell, responsável pela política de transportes públicos urbanos da Federação Europeia dos Trabalhadores dos Transportes (ETF), sublinhou, logo no início, que os desafios que os trabalhadores dos transportes públicos enfrentam são semelhantes em todo o mundo – seja na Europa, na América Latina ou na Índia, por exemplo.
Um dos principais problemas é a privatização das linhas de metrô, que está ocorrendo com a ajuda de parcerias público-privadas. Este fato torna ainda mais importante a solidariedade internacional entre os trabalhadores, tal como foi expresso neste painel entre a Europa e o Brasil.
Os dados impressionantes que Cristiane Costa Gonçalves acabou de explicar mostram que a mudança para os transportes públicos é definitivamente possível – como também se reflete na discussão sobre o bilhete alemão (49 euros por mês para os transportes públicos em toda a Alemanha). A Federação Europeia dos Trabalhadores dos Transportes (ETF) representa um milhão de trabalhadores do sector dos transportes públicos e mais de cinco milhões de trabalhadores dos transportes de 38 países europeus.
No evento organizado pela ETF, em Bruxelas, foram discutidos os atuais desafios dos transportes públicos: em primeiro lugar, a escassez gritante de trabalhadores qualificados, evidente em todos os países europeus – desde a falta de condutores de elétricos até aos condutores de metrô.
Muitos trabalhadores vão se aposentar até 2030 e coloca-se a questão de saber como preencher esses postos de trabalho. A expansão dos transportes públicos com uma frequência mais elevada só pode ser bem-sucedida se os trabalhadores qualificados necessários também estiverem disponíveis.
Além disso, desde a pandemia da COVID-19, tem-se registrado uma escassez de trabalhadores qualificados para as linhas existentes e para a frequência existente. Por conseguinte, é necessário melhorar as condições de trabalho, pagar um bom salário e assegurar um equilíbrio satisfatório entre a vida profissional e a vida privada, a fim de atrair um número suficiente de trabalhadores para os transportes públicos.
TRANSIÇÃO ECOLÓGICA
O segundo desafio é a transição ecológica (transição verde), que faz parte do Pacto Ecológico Europeu. A Comissão Europeia estabeleceu o objetivo de que 100% de todos os ônibus recém-adquiridos sejam veículos com emissões zero até 2030. Para 2021, esta taxa é atualmente de apenas 15%. Por conseguinte, é necessário um investimento considerável neste domínio.
A transferência modal do transporte privado motorizado para os transportes públicos exige, portanto, que os transportes públicos sejam econômicos, acessíveis, fiáveis e disponibilizados em intervalos frequentes. Para tal, são também necessários investimentos consideráveis – no entanto, os sindicatos receiam que os salários possam ser reduzidos se os transportes públicos forem introduzidos à tarifa zero, uma vez que, de outro modo, o financiamento não poderia ser assegurado. Assim, é urgente discutir também a questão do financiamento.
O Dia Mundial dos Transportes Sustentáveis foi celebrado a 24 de novembro de 2023, quando uma aliança da Federação Internacional dos Trabalhadores dos Transportes (ITF), da C40, do Greenpeace e de outras ONGs reafirmou as suas exigências de transportes públicos bem desenvolvidos e em mãos públicas.
POR UMA MOBILIDADE SOCIAL E ECOLÓGICA
Judith Dellheim, da aliança da sociedade civil Berliner Energietisch, sublinhou na sua intervenção que uma vida digna só é possível se o direito a uma mobilidade social e ecologicamente sustentável for concretizado.
Em muitas regiões do mundo, já estão sendo implementados transportes públicos gratuitos, por exemplo, para pessoas pobres ou crianças. Isto mostra que é possível introduzir tarifas zero. No entanto, os transportes públicos são subsidiados em todo o lado, uma vez que as receitas da venda de bilhetes apenas cobrem parte dos custos.
O exemplo do Brasil mostra que é possível forjar alianças amplas e estáveis a favor dos transportes públicos com tarifa zero. Para tal, é necessário que os sindicatos, os movimentos sociais e os partidos de esquerda se unam.
O exemplo da PLANKA.nu da Suécia (fundada em 2001) mostra como uma aliança deste tipo pode mesmo tornar-se uma espécie de “think tank” para as questões da tarifa zero, do planejamento urbano e da proteção do clima.
Juntamente com organizações de defesa dos interesses dos refugiados, a Planka.nu fornece bilhetes de transporte público aos imigrantes e assume também o pagamento das multas resultantes das inspeções dos bilhetes.
INTRODUÇÃO DA TARIFA ZERO
O processo de introdução de tarifas zero é também crucial: os exemplos de Tallinn (Estônia), Dunquerque (França) e de alguns municípios menores da República Checa e da Eslováquia mostram que as tarifas zero começam frequentemente com o alargamento do grupo de pessoas que a elas têm direito: primeiro para as pessoas com deficiência, depois para os jovens, pensionistas, etc.
Quase todos os exemplos conhecidos mostram também que os automobilistas só estão dispostos a mudar para os transportes públicos se os impostos e as taxas de estacionamento forem correspondentemente elevados e se os transportes públicos também pouparem tempo.
No que diz respeito à luta contra a pobreza em termos de mobilidade, Judith Dellheim sublinhou que esta questão também pode, naturalmente, ser abordada pela direita política: por exemplo, se as tarifas zero só forem introduzidas em centros urbanos onde só vivem pessoas ricas, ou se as tarifas zero só se aplicarem a pessoas que tenham o passaporte correto e forem acompanhadas de perfis raciais (ver o exemplo de Riga).
Tendo em conta as próximas eleições para o Parlamento Europeu, é evidente que o pilar europeu dos direitos sociais deve ser reforçado para que o direito à mobilidade seja uma realidade para todos. Deve ficar claro que os Fundos Estruturais Europeus (FEDER e Fundo de Coesão) devem ser utilizados para a expansão dos transportes públicos e os subsídios que prejudicam o clima devem ser cancelados para libertar fundos para os transportes públicos. Os legisladores ao nível europeu devem apresentar um programa abrangente para a expansão de transportes públicos bem financiados e acessíveis a todos – e este programa deve depois ser posto à discussão num debate à escala europeia.
ATIVISMO NA ALEMANHA
Rika Müller-Vahl, coordenadora da aliança da sociedade civil #wirfahrenzusammen (Fridays for Future e o sindicato ver.di), sublinhou logo no início que centenas de ativistas na Alemanha estão ativos em mais de 60 cidades para recolher assinaturas para a expansão dos transportes públicos.
Cerca de 80.000 trabalhadores dos transportes públicos na Alemanha e a sua aliança visam apoiá-los na sua luta por melhores condições de trabalho e salários dignos. O objetivo é criar uma ampla base social para esta luta.
Os transportes públicos na Alemanha têm sido subfinanciados durante anos – por isso, as exigências conjuntas dos ativistas do clima de Fridays for Future e do sindicato ver.di são investir mais nos transportes públicos e garantir boas condições de trabalho.
O movimento climático precisa da chamada “viragem laboral” como perspectiva a longo prazo – ou seja, as preocupações dos trabalhadores devem refletir-se nas exigências do movimento climático.
Claro que nem sempre é fácil criar essas alianças e, por exemplo, abordar os condutores de autocarros como ativistas do clima. É importante criar confiança mútua neste domínio. Afinal de contas, a atitude cética em relação ao movimento climático também aumentou nos últimos meses – e o exemplo da lei do aquecimento na Alemanha fez com que muitas pessoas se voltassem contra a proteção do clima, uma vez que lhes impõe um maior encargo financeiro.
O problema é que a política de proteção do clima está associada ao medo do declínio social. Isto torna ainda mais importante a recolha de assinaturas para os trabalhadores dos transportes públicos – só hoje foram recolhidas 35.000 assinaturas na Alemanha.
No entanto, não se trata apenas do número de assinaturas, mas do efeito de mobilização que esta aliança tem para a proteção do clima e para um transporte público bem desenvolvido.
*Manuela Kropp é Gestora de Projetos na Fundação Rosa Luxemburgo em Bruxelas e mediou o painel Direito à Mobilidade para Todos: Transporte Público Gratuito – Novas Alianças Possíveis?
** A apresentação aconteceu antes de o prefeito anunciar o início do programa Domingão Tarifa Zero, com a adoção do passe livre na cidade somente nos domingos. O programa teve início em 17 de dezembro.