Roda de conversa analisa perspectivas do pensamento conservador, uso do discurso do medo e roupagem jovem com que são apresentadas ideias há muito desgastadas. Ressurgimento de discursos abertamente racistas e de ódio acontecem no Brasil e na Alemanha, mas, mais que novidade, representam tentativa de resgate de um passado violento e reação a avanços
Por Daniel Santini
Na Alemanha, a AfD (Alternative für Deutschland, ou Alternativa para Alemanha), partido de direita ancorado em um discurso de ódio contra imigrantes, despontou em terceiro lugar nas últimas eleições para o Parlamento. No Brasil, um candidato de extrema direita machista com discurso raivoso, inicialmente tomado como piada, passou a ser levado a sério e hoje figura em pesquisas como alguém no páreo na disputa das eleições para presidência em 2018. Com uma roupagem jovem e investimento pesado em novas linguagens, grupos conservadores ganham espaço na internet e conseguem pautar e influenciar o debate público. Como entender o fenômeno? É uma nova direita que se organiza? Existe o risco de sistemas políticos há muito superados, como o nazismo, o fascismo e o apartheid, voltarem?
Com o objetivo de discutir as perspectivas e limites da ascensão de grupos reacionários à esfera pública, a Fundação Rosa Luxemburgo organizou no último dia 4 de dezembro o debate A política do medo da Nova Direita – Tendências no Brasil e na Alemanha. O encontro aconteceu na sede da organização, em São Paulo, e contou com a participação do psicanalista e professor Christian Dunker, da escritora, cientista social e jornalista Bianca Santana e da antropóloga alemã Rosa Asendorpf, com mediação do jornalista e diretor da Fundação Rosa Luxemburgo no Brasil Gerhard Dilger. A roda de conversa contou com a participação do público e foi marcada pela conclusão de que a direita que se apresenta como nova é, na verdade, conservadora e antiga.
“Tem muita mudança na direita, mas talvez para voltar para o mesmo lugar de antes”, pondera a cientista social Bianca Santana, que falou sobre suas experiências como mulher negra em uma sociedade ainda racista e resistente a mudanças. Ela acredita que a nova onda de conservadorismo é, na verdade, uma reação aos avanços recentes, que foram insuficientes para alterar estruturalmente a sociedade, mas concretos e incomodos para quem quer que tudo permaneça como está. “Tem algo muito profundo no racismo brasileiro que às vezes a gente nem se dá conta”.
Luto mal resolvido
Como psicanalista, Dunker propôs uma reflexão sobre como a sociedade lidou com o fim de regimes ditatoriais violentos para analisar o contexto atual de volta de ideias autoritárias ancoradas em militarização radical e centralização de poder. Trata-se, no entender do professor, de um luto mal resolvido. “Quando estive na Alemanha, me espantou a forma como se falava da experiência do nazismo”, explica. “Dizem: ‘foi um erro, mas agora mudamos nossas leis e não vai acontecer de novo’. É um discurso simplificador, sem muita narrativa, sem muitos detalhes, com baixos teores de afeto. É como se, de fato, a coisa tivesse sido resolvida”.
“Estive na África do Sul logo depois do fim do Apartheid e encontrei um discurso semelhante. Vamos falar do assunto por um ano, organizar uma Comissão da Verdade, e depois acabou. Como psicanalista, isso me chamou a atenção. Quando a gente dá pela falta de luto, de um trabalho narrativo, a gente teme pela repetição. E de fato temos agora novas gerações que estão falando da experiência de outra maneira. Os últimos depoimentos de quem viveu aquilo estão desaparecendo e isso só vai existir por meio de memória, por meio de transmissão. E estamos vivendo o efeito da falta de transmissão, da falta do comunitário”, pondera.
Dunker apontou limites e disse não acreditar que a extrema direita consiga mais do que 20% a 30% nem no Brasil e nem em outras partes do planeta, mas defendeu que é preciso estar atento à maneira como a velha nova direita se apresenta. “É um retorno, mas algo novo, modificado daquela experiência”.
Kontrakultur e a direita hipster
A antropóloga alemã Rosa Asendorpf fez uma apresentação sobre o crescimento da AfD e de outros grupos que se valem de discursos de ódio para ganhar espaço no debate público de seu país. Uma das novidades é a presença de jovens engajados com discursos reacionários. São organizações que contam com financiamento para apresentar ideias agressivas em uma linguagem moderna, se valendo inclusive da internet para isso. Ela citou o grupo Kontrakultur (contracultura em português) como um exemplo de uma direita hipster, que atua não só no campo da política, mas fala também em ação, educação, cultura e esporte. “Exatamente como no nazismo”, lembra.
“A base da nova direita na Alemanha é centrada em uma cultura de ódio contra refugiados, com uso de estereótipos. Estrangeiros são apresentados como criminosos e mulçumanos como perigosos, existe um racismo disfarçado”, explica. Se valendo do discurso de medo, a AfD não só entrou pela primeira vez no Parlamento Alemão obtendo 94 assentos e se consolidando como terceiro partido mais votado, como também ganhou espaço nas Assembleias Legislativas de vários Estados.
“É uma soma de insatisfação com os demais partidos, visão pessimista, medos e pouco interesse em mudanças climáticas e meio ambiente”, aponta a antropóloga, para contextualizar em seguida. “O crescimento parece grave, mas é necessário relativizar, já que há muitos alemãos contra esses grupos”.
Além do ódio aos imigrantes, o partido também adota uma postura bastante conservadora e intolerante em termos morais, não aceitando uniões homoafetivas e nem protagonismo da mulher, seguindo um modelo essencialmente heterossexual e patriarcal. Junto à representação institucional, também cresceram na Alemanha manifestações nas ruas e mobilizações sociais contra imigrantes.
O grupo de maior destaque é o PEGIDA (Patriotische Europäer gegen die Islamisierung des Abendlandes, ou Patriotas Europeus contra a Islamização do Ocidente). “É uma visão bem essencialista, nacionalista e conservadora, que usa muitos estereótipos e linguagem simplificada. Muitos grupos da direita radical, incluindo skinheads, têm se unido às manifestações e trabalham juntos”, destaca.
Nas ruas e na internet
Assim como na Alemanha, grupos abertamente de extrema-direita pegaram carona em manifestações conservadoras no Brasil recentemente. Não custa lembrar que gente saudosa da Ditadura ajudou a engrossar as mobilizações que culminaram no golpe parlamentar contra a presidenta Dilma Rousseff. Tanto o psicanalista Christian Dunker quanto a cientista social Bianca Santana defendem que, para entender como a direita saiu do armário, é preciso analisar também a falta de alternativas apresentadas pela esquerda durante o período em que o PT esteve no poder.
“Estamos só defendendo o social. É muito pouco para uma esquerda que queira se apresentar como minimamente potente e afirmativa. Como vamos neutralizar essa reversão da pauta comportamental?”, questiona Dunker, lembrando que, contra a lógica autoritária, não há remédio melhor que fortalecer a democracia.
“Vivemos um estado de conflito que requer novas mediações. Quando o PT fechou os debates dentro dos diretórios, exterminou isso. Era um partido de debate e quando chegou ao poder, fez de tudo para terminar o debate. Atacou a formação política. Intelectuais, artistas, academia, imprensa, judiciário, todos que deveriam cuidar da mediação de conflitos começaram a tomar partido. É o que a direita precisa”, argumenta.
Para Bianca Santana, o partido “abriu mão não só da pauta econômica, mas também da comunicação e tecnologia. É preciso lembrar que veículos de comunicação construíram as narrativas que resultam no golpe”, aponta, chamando a atenção hoje para o uso de perfis fakes e robôs para tentar manipular o debate público. “São algorítimos e a nova direita tem manejado para parecer maior e mais forte. Se a gente não perceber, vamos ter a sensação de que está perdendo, mas não está tudo perdido, pelo contrário. Tem uma disputa e a gente tem que se colocar nessa disputa. Nem tudo está perdido”.
Dunker, que já foi vítima de perseguições de ódio na internet, também defendeu que é preciso criar espaços de resistência virtual e considerar a mudança na relação das pessoas com a comunicação. “Existe uma massa global de pessoas que nunca tinham participado de nada do mundo político, e, de repente, entram em um espaço em que têm uma nova experiência identitária, uma experiência que requer que se diga algo o tempo todo”, aponta.
“Nos comentários, existe uma nova relação com a palavra. O cara que diz coisas violentas, pode ser um bobo ao vivo. Ele está fazendo pirotecnia para criar relevância em um mar de irrelevância. Quando ele aumenta a voltagem, pode brincar, mas não tem noção que tem outro que vai tomar essa palavra e instrumentalizar para gerar um caldeirão de ódio. É anonimato sobre anonimato, que gera uma surdez, uma massa de ódio refratária”.
Para o psicoanalista, não basta ignorar esse ódio. É preciso tentar sempre reagir, se não para dialogar com quem não quer conversa e está só provocando, mais bem para apresentar argumentos para quem mais estiver acompanhando a conversa. “A gente tem que responder a comentários de uma forma nova. Não proselitista, não como o esclarecedor, o intelectual. A gente tem que entrar em uma conversa mais miúda com as pessoas nesse novo universo”.
Le Monde Diplomatique
Durante o evento, foram distribuídos exemplares da edição O jogo oculto da nova direita, organizada em novembro do Le Monde Diplomatique Brasil. O Le Monde também divulgou vídeo no qual analisa a gênese do Movimento Brasil Livre e suas ideias reacionárias, no qual as conclusões são parecidas com as dos debatedores. Apesar da roupagem jovem, as ideias do grupo não são exatamente novas.
Fotos: Verena Glass