Convidada pela Boitempo Editorial, em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo, Angela esteve em SP e RJ para a realização de conferências públicas e para agendas políticas com movimentos de mulheres negras, organizações negras e periféricas, movimentos populares e parlamentares negras.
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Uma grande voz insurgente ecoou no eixo Rio/SP
30/10/2019
por
Christiane Gomes

Pela primeira vez na região, Angela Davis participa de agendas públicas e encontros políticos que inspiraram milhares de pessoas

 

 


Por Christiane Gomes

Filósofa, escritora, pesquisadora; Angela Davis é uma daquelas figuras icônicas que dispensa grandes apresentações e transcende fronteiras. Em décadas de ativismo, consegue articular diversas pautas que, em comum, têm a luta antirracista, anticapitalista, feminista, do abolicionismo penal e da defesa radical da democracia e da liberdade. Após anos de muita expectativa, Angela pisou em terras paulistanas e cariocas (ela já esteve no Brasil em algumas cidades baianas e também em Goiânia) e foi recebida com enorme entusiasmo, inspirando (e encantando) milhares de pessoas que acompanharam as atividades presencialmente e pelas transmissões na internet.

Convidada pela Boitempo Editorial, em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo, Angela esteve em SP e RJ para a realização de conferências públicas, que marcaram o lançamento de sua autobiografia, e também para agendas políticas com movimentos de mulheres negras, organizações negras e periféricas, movimentos populares e parlamentares negras.

Angela se mostrou extremamente interessada em contribuir nas ações de resistência no Brasil. Em diversos momentos, declarou solidariedade às pautas do feminismo negro e do abolicionismo penal no país, valorizando as lutas de ativistas e intelectuais brasileiras. Por outro lado, reforçou a importância de que vozes do feminismo negro brasileiro, como de Lélia Gonzalez, sejam mais conhecidas nos Estados Unidos. A liberdade do ex-presidente Lula, o questionamento da prisão de Preta Ferreira (dirigente do Movimento Sem-Teto do Centro que estava presa injustamente desde junho passado) e a cobrança de justiça por Marielle Franco – bem a valorização de seu trabalho – foram temas constantes nas falas de Angela nos mais distintos espaços por onde passou.

Maratona

A “Semana Davis” teve início em 19 de outubro, na conferência de encerramento do seminário Democracia em Colapso, organizado pela Boitempo Editorial e Sesc São Paulo. Em um teatro sem nenhuma cadeira vazia, ela falou de sua trajetória pessoal, refletiu sobre as principais correntes do pensamento feminista atual e narrou a contribuição da luta das mulheres negras na construção de sociedades mais justas e na consolidação da democracia. Ela criticou a ideia dominante nos Estados Unidos de que o país merece representar todos os países das Américas. “De fato, se houvesse um país para representar todos os povos dessa região, deveria ser o Brasil e não os EUA”, afirmou.

Sob o olhar de Torge Löding, diretor da FRL no Brasil, Angela Davis recebe o boné LGBTQI do MST, no encontro da ENFF

O dia seguinte (20) foi dedicado a um encontro com organizações de mulheres negras, do movimento negro, Movimento Sem Terra, e militantes de outros movimentos sociais na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF). Neste espaço, Angela destacou que, mais que falar, gostaria de ouvir sobre as ações e formas de organização destes movimentos. Depois de mais de duas horas de troca, ela plantou uma árvore no Bosque da Solidariedade, um processo de “reflorestamento” da ENFF que convida visitantes a plantar espécies nativas.

 

No fim do dia, Angela solicitou um encontro com Preta Ferreira, que esteve impedida de participar do evento na ENFF, na cidade de Guararema (SP), por questões judiciais. Após detenção de quase quatro meses em um processo considerado por advogados defensores de direitos humanos como arbitrária, Preta foi solta através de um habeas corpus, mas ainda sofre restrições de mobilidade.

 

Na noite de segunda, 21, o frio não impediu que a área externa do auditório Ibirapuera recebesse mais de 15 mil pessoas para a última conferência de Angela Davis em São Paulo. A presença massiva de pessoas negras, vindas até de outros estados do Brasil, comprovou a capacidade de Angela Davis de mobilizar corações e mentes. A mediação da noite – que contou com a participação da jornalista e escritora Bianca Santana, da pesquisadora e responsável pelo prefácio de “Uma Autobiografia”, Raquel Barreto e da tradutora Raquel de Souza – ficou a cargo desta coordenadora de projetos da Fundação Rosa Luxemburgo.  “Nossas lutas estão profundamente conectadas. Os governos nacionais e locais no Brasil têm uma conexão profunda e direta com as forças militares e de segurança dentro do regime de Israel e eles importam essas tecnologias, a fim de utilizar nossos corpos como campo para testes, de forma a reprimir os movimentos sociais brasileiros e assassinar pessoas negras e pobres. Continuaremos a internalizar nossa resistência popular e a conectar nossa luta para encerrar a militarização e opressão racista, das favelas do Rio de Janeiro até a Palestina. Juntos nos comprometeremos a dar continuidade à luta que Marielle visualizou para o mundo, uma luta para que liberdade, justiça e igualdade beneficiem todas”.

 

Angela Davis entre a tradutora Raquel Luciana Souza e Christiane Gomes, coordenadora de projetos da FRL na Conferência do Ibirapuera, em SP

Rio de Janeiro

Na terça (22), Angela Davis seguiu para o Rio de Janeiro, onde primeiro se encontrou com lideranças de movimentos de mulheres negras em roda de conversa organizada pelo Instituto Marielle Franco em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo. A mesa, mediada pela irmã de Marielle, Anielle Franco, contou também com as contribuições de Gina Dent, professora de estudos feministas da Universidade de Santa Cruz, na Califórnia (EUA), que acompanhou Davis em sua viagem, e da mãe e do pai de Marielle, Marinete e Antonio Franco. Na atividade, o mesmo desejo de Angela: ouvir a ação das mulheres negras no Brasil, dentre elas a Ouvidora-geral da Defensoria Pública do Estado da Bahia e pré-candidata à prefeitura de Salvador, Vilma Reis.

Para aprofundar o tema da relação de mulheres negras e institucionalidades, que ganha cada vez mais espaço e visibilidade em um marcado legado de Marielle Franco, a noite foi dedicada a um encontro especial entre Davis e um grupo de parlamentares negras: Aurea Carolina e Andreia de Jesus (MG), Monica Francisco, Renata Souza, Dani Monteiro e Talíria Petrone (RJ), Erica Malunguinho (SP), e Jô Cavalcanti (PE). As parlamentares tiveram a oportunidade de compartilhar as experiências de suas mandatas, organizadas de forma próxima aos movimentos sociais e populares.

Acompanhando tudo de forma muito atenta, Angela destacou a importância da ação das mulheres negras na construção de outras miradas de mundo.

Ainda na capital carioca, a conferência de Angela aconteceu na abertura do 12º Festival de Cinema Negro, Zozimo Bulbul, no Cine Odeon. Um telão na Cinelândia transmitiu as falas de Davis que contou com comentários da escritora Conceição Evaristo. Nesta noite, recebeu a medalha Tiradentes, maior honraria do Estado do Rio, entregue pela deputada estadual Renata Souza e Luyara Franco, filha de Marielle Franco, cuja figura e exemplo de vida e ação política esteve presente durante todo o tempo nas falas de Angela. “Eu me sinto profundamente honrada de estar aqui, na cidade de Marielle Franco, um lugar que por décadas aguardei para visitar. A cidade do carnaval, do Pão de Açúcar. Mas que eu também aprendi sobre as favelas e desde muito jovem me identifiquei com a história das pessoas que vivem nesses lugares. E agora, poder acompanhar o legado que Marielle deixou para todo esse povo é uma honra”.

As reflexões e contribuições trazidas por Angela Davis ainda ecoam em um momento onde o contexto político no Brasil (e no mundo) desafia todas as pessoas que defendem a democracia e a liberdade. Ao questionar qual é o tipo de igualdade que queremos (afinal, qual nossa referência de igualdade? a do homem branco, capitalista, rico e opressor?); ao defender que falar de capitalismo é tratar de racismo, pois ele é estruturante no sistema; e a democracia é muito mais do que inclusão; entre diversos outros pensamentos compartilhados nestes dias, Davis provoca aquela inquietação que inspira a seguir.

Acesse abaixo alguns links de reportagens sobre a vinda de Angela Davis a SP e RJ e vídeos com a íntegra de suas conferências:

Brasil de Fato

O Globo

UOL