O mercado de carbono representa um perigo ao converter a natureza em mercadoria e pode agravar a crise climática
Mercado de carbono: o que está em jogo?
03/09/2024
por

Fabrina Furtado*

O Projeto de Lei que regulamenta o mercado de carbono no Brasil deverá ser votado na primeira quinzena de setembro, segundo afirmou a senadora Leila Barros (PDT/DF) durante reunião realizada pela Comissão do Meio Ambiente no Senado no dia 21 de agosto deste ano.[1] Após idas e vindas do Projeto entre o Senado, a Câmara e o executivo, entende-se que já existe consenso em torno do texto e condições para que o mesmo seja votado.

O que está em jogo é o futuro da política climática no Brasil, a preservação dos direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais e um aprofundamento do processo de transformação da natureza em negócio e ativo financeiro, o que pode intensificar a crise climática em vez de solucioná-la.

Neste artigo, buscaremos explicar esse projeto de lei (PL), contextualizá-lo e indicar algumas possíveis implicações para a política climática e para os territórios, dando continuidade ao trabalho realizado pela Fundação Rosa Luxemburgo o que chamamos de “financeirização da natureza”[2].

O que é o PL 182/2024?

Trata-se do Projeto de Lei (PL) 182/2024, iniciativa do Deputado Federal Jaime Martins (PSD/MG), que institui o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE) e altera as Leis nºs 12.187, de 29 de dezembro de 2009, 12.651, de 25 de maio de 2012 (Código Florestal), 6.385, de 7 de dezembro de 1976, 11.033, de 21 de dezembro de 2004 e 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos).

O PL que regulamenta o mercado de carbono no Brasil chegou no Senado como PL 2148/15, aprovado na Câmara por 301 votos a favor e 81 votos contrários em 21/12/2023, sob relatoria do deputado Aliel Machado (PV-PR). Já havia sido, no entanto, aprovado em outubro de 2013 pelo Senado como o PL 412/22, iniciativa do Senador Chiquinho Feitosa (DEM/CE). O conflito em torno da sua autoria, e portanto da definição da instância definidora, tem sido uma das questões que vem atrasando a votação do PL. 

De acordo com algumas organizações que acompanham o tema, o texto da Câmara conseguiu ser ainda pior do que o do Senado, desconsiderando debate realizado previamente e incluindo artigos que distorcem um mecanismo[3], já distorcido na sua lógica.

O tema volta à centralidade da agenda política por dois motivos. Primeiramente, em decorrência dos acordos internacionais sobre clima, mais especificamente a regulamentação do artigo 6 do Acordo de Paris da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC, sigla em inglês), de 2015. Foi influenciado também pela eleição do governo Lula que, mesmo antes de assumir a presidência, retomou o protagonismo no debate climático, afirmando, de forma contundente, que vai implementar o mercado de carbono no Brasil até a COP-30 a ser realizada em Belém do Pará em novembro de 2025.

Origem do mercado de carbono e seu funcionamento

Criado no contexto do Protocolo de Quioto, acordo internacional da UNFCCC, de 1997, o mercado de carbono entrou em vigor em 2005 e se estabeleceu como principal mecanismo para cumprimento das metas de redução de emissões com o objetivo de tornar o enfrentamento da crise climática mais barato e lucrativo.

No lugar de se reduzir as emissões para atingir a meta estabelecida, torna-se possível comprar créditos de carbono gerados por outras empresas cujas emissões são inferiores às metas fixadas. Surge, portanto, o sistema cap & trade (meta e comércio) e o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), este último contemplando projetos que estariam reduzindo ou removendo CO² da atmosfera, como usinas hidrelétricas e eólicas. Desde então, o mercado de carbono se estabeleceu no mundo como um mercado regulado, permitindo o cumprimento de metas obrigatórias, como é o caso do Protocolo de Quioto, mas também instrumentos regionais como o Esquema Europeu de Comércio de Emissões de Carbono (EU ETS); e, de forma voluntária, gerando créditos para obtenção de lucros e de “selos verdes”. Setores específicos também geraram seus mecanismos como o Esquema de Redução e Compensação de Emissões da Aviação Internacional (CORSIA), da Associação Internacional de Aviação Civil (ICAO), que exige que empresas aéreas adquiram créditos de carbono para compensar parte de suas emissões.

Problemas e críticas ao mercado de carbono   

São mecanismos que fracassaram: não reduziram as emissões, já que não enfrentaram as causas, e, pelo contrário, legitimaram a compra do direito de continuar emitindo ou investindo em projetos geradores de conflitos ambientais; criaram novos mecanismos de acumulação e fortaleceram a imagem de empresas causadoras da mudança climática e de conflitos e crimes ambientais. Não tardou muito até começarem a surgir denúncias de fraudes e corrupção pela geração de créditos de carbono fantasmas, além de outros problemas [4].

Intensificaram a financeirização da natureza, ou seja, a transformação de coisas em ativos financeiros, a crescente influência de atores, instituições, mercados e pensamentos financeiros sobre a percepção e abordagem da sociedade no que diz respeito à natureza, além da incorporação de justificativas ditas ambientais por parte do capital financeiro aos seus procedimentos. Deslegitima os regimes regulatórios compulsórios, privatizando e transferindo a política climática para o “mercado”.

A ilusão do Acordo de Paris

No entanto, em contexto de aprofundamento da mudança climática, o Acordo de Paris veio para renovar a ilusão criada em torno deste mercado. Assinado durante a 21a COP realizada em dezembro de 2015, criou um regime internacional de clima, que passou a reger metas voluntárias de redução de emissões de gases de efeito estufa a partir de 01 de janeiro de 2020.

Estabeleceu a possibilidade de garantir “um equilíbrio entre emissões antrópicas por fontes e remoções por sumidouros”; linguagem que deu origem ao conceito de “zero emissões líquidas”: calcula-se o total das emissões, reduz onde é possível e balancear o restante das emissões através de uma “compensação”. Para possibilitar essa compensação, o Acordo de Paris estabeleceu, novamente, o mercado de carbono como instrumento central, tendo, além do cap & trade, o Mecanismo de Desenvolvimento Sustentável (MDS), substituindo o MDL.

Debate nacional sobre o mercado de carbono

No Brasil, muitas discussões têm ocorrido em torno da regulamentação do mercado brasileiro de Redução de Emissões (MBRE), previsto já na Política Nacional de Mudança do Clima (Lei Federal Nº 12.187/2010). Para além dos debates no governo, setores como os reunidos no Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS), envolvendo empresas como a Vale S.A, a Bayer e a Shell, vêm, há anos, promovendo eventos, publicações e plataformas para avançar com o mercado de carbono no Brasil. Mas nada como o que estamos vivenciando no momento.

O PL 182/2024 cria um limite de emissões de gases para as empresas, permitindo, como faz o mercado de carbono, que aquelas que mais emitem, possam compensar as suas emissões com a compra de títulos. A proposta estabelece um mercado regulado de títulos de compensação e geração de créditos por emissões de gases de efeito estufa, vinculado ao Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), que será desenvolvido em cinco fases ao longo de seis anos.

Dizem que assim vão criar “mecanismos para incentivar, orientar e auxiliar os agentes econômicos a se conduzir de forma coerente com essa necessidade global, pela inibição de emissões de gases de efeito estufa nos processos produtivos ou, quando não for possível a inibição de novas emissões, pela compensação”[5].

Deixam de fora deste argumento o fracasso dos mecanismos até hoje, a continuação, intensificação e legitimação de atividades e empresas que geram a crise climática, e os riscos envolvidos na ampliação de mecanismos de mercado, na financeirização da natureza e na lógica da compensação.

Isenções ao setor agropecuário e suas implicações

Interessante é que, nesse processo, a Frente Parlamentar Agropecuária – que governa pelo seu poder econômico e força política – conseguiu excluir suas plantações e seus rebanhos, a produção primária agropecuária, da regulamentação prevista pelo PL 182/2024. É sempre importante lembrar que o desmatamento e as queimadas relacionados ao agronegócio, além de outras atividades do setor da agropecuária, são os principais responsáveis pelas emissões de CO² no Brasil, seguido do setor de energia[6].

Além disso, a exclusão de qualquer setor do sistema não deveria ocorrer no contexto de uma lei e sim através de uma regulamentação, após análise aprofundada e democraticamente realizada, das características de cada setor e a evolução do SBCE. No entanto, o que mais importante considerar aqui é a nossa “democracia restringida”, em decorrência do poder de quase-governo que o agronegócio tem nesse país, e como isso representa mais uma manobra da bancada ruralista de passar o agro como setor que contribui para o enfrentamento à mudança climática, e não o contrário.

Apesar de o mercado de carbono, em tese, representar para o Agro uma oportunidade para compensar suas emissões e lucrar com o mercado, os representantes do setor não mediram esforços para evitar que os instrumentos previstos na regulamentação do mercado de carbono produzissem qualquer efeito sobre o seu funcionamento. A experiência com mecanismos similares têm demonstrado que tentativas de regulamentá-los apenas consolidam o status de corrupção e exploração, pois em vez de reduzir os riscos, os amplificam e os ocultam, ao mesmo tempo em que reforçam diferentes crimes socioambientais.

Como o problema está na essência, na própria lógica da privatização, da mercantilização e financeirização da política, os mecanismos regulatórios utilizados pelas empresas e pelos órgãos reguladores podem criar uma ilusão de que tudo está sob controle, quando sabemos que não está. Ou seja, por motivos técnicos e lógicos, o mercado de carbono é inerentemente não regulamentável.

No entanto, é interessante compreender essa manobra do agro, conquistada através do “argumento” de que não existe tecnologia para medir as emissões da agropecuária. Para “descarbonizar”, evitar os efeitos negativos dos agrotóxicos ou os transgênicos existe, mas não para isso?

Ao mesmo tempo, querem continuar vendendo créditos pelo mercado voluntário, através inclusive de aplicativos e processos de digitalização, em terras griladas e de povos e comunidades tradicionais ou de reservas legais, sem cumprir metas. Inclusive porque de acordo com o PL, créditos gerados pelo mercado voluntário podem vir a ser comercializados dentro do próprio mercado regulado.

São diversos os exemplos de geração de créditos fantasmas e de sobreposição de terras e conflitos com povos indígenas e comunidades tradicionais desses projetos[7]. Não foi a toa que em junho deste ano a polícia federal deflagrou a Operação Greenwashing para investigar a venda irregular de créditos de carbono envolvendo a grilagem de terras públicas, fraudes documentais e exploração ilegal de recursos naturais na Amazônia Legal[8].  

Desafios e rejeições ao REDD+ e Seus mecanismos

Recentemente, várias notas de repúdio e/ou recomendação têm surgido ultimamente em relação aos projetos de Redução de Emissões do Desmatamento e Degradação Ambiental (REDD) e suas diferentes “inovações” que estão surgindo – o último é o Manejo Florestal Aprimorado (IFM, sigla em inglês) – um dos mecanismos a partir dos quais créditos de carbono estão sendo tão vendidos, incluído no PL do mercado de carbono.

Um bom exemplo é a recomendação do MPF do Amazonas de suspensão de todas “as operações, contratos e tratativas em andamento no tema crédito de carbono / REDD+” que incidem sobre territórios indígenas e tradicionais no estado e “a suspensão da comercialização de créditos carbono no Brasil ou no exterior oriundos de territórios indígenas e tradicionais no estado do Amazonas, com ou sem regularização fundiária definitiva”[9]. Outro exemplo é o de lideranças indígenas e tradicionais de vários países que denominam o REDD+ de projeto da Morte[10].

Vale ressaltar que como forma de “responder” a essas críticas, o governo e seus aliados, em particular grandes organizações conservacionistas e corporações que abraçam o discurso da sustentabilidade, além dos projetos privados de REDD+ contemplados no PL 182/2024, estão, também os programas jurisdicionais de REDD+, ou seja, aqueles realizados diretamente pelo poder público, em território sob a sua jurisdição.

Os exemplos já existentes de programas jurisdicionais nos mostram, no entanto, que o desmatamento não foi reduzido e conflitos continuam ocorrendo com povos e comunidades tradicionais[11].

Aliás, REDD+ é incluído no PL de forma ainda mais confusa, com proposta de sistemas de contabilização que devem, caso o PL vire lei, resultar em múltiplas contagens do produto teoricamente criado – a redução das emissões –  e o que no jargão técnico é chamado de não adicionalidade.

Isso significa que créditos, do mesmo território, podem ser contabilizados mais de uma vez e que projetos que não reduzem as emissões, sejam considerados e, portanto, fortalecidos, como, por exemplo, a manutenção de–reserva legal e APP, uma obrigação legal e não iniciativa para reduzir as emissões. Até os defensores de REDD+ estão propondo a exclusão dos artigos sobre o tema do PL, além de questionamentos em torno das infrações e penalidades e a repartição de benefícios de projetos de crédito de carbono de povos indígenas e povos e comunidades tradicionais[12].

O papel da Comissão Nacional de REDD+ no PL 182/2024

Como forma de melhorar o acompanhamento e evitar os riscos associados – como a dupla contagem – o PL 182/2024 incorpora contribuições  da Comissão Nacional de REDD+ (Conaredd), retomada em 2023 no governo Lula. No entanto, com o objetivo de coordenar, acompanhar, monitorar e revisar a Estratégia Nacional para REDD+, composta por diversos órgãos do estado; representante da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil; do Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais; e de duas organizações com “atuação na área socioambiental, indicado pela sociedade civil” a Comissão não anda nada bem, e ainda conta com a participação, em seus GTs (de salvaguardas, por exemplo), de empresas que desenvolvem projetos de carbono, algumas das quais envolvidas em escândalos já identificados, como é o caso da Carbonext. Logo, como representantes da “sociedade civil” constam organizações conservacionistas, defensoras de REDD.

O que está em jogo?

O histórico de mais de vinte e cinco anos de fracasso do mercado de carbono e mais de 15 anos de fracasso do REDD+, restam-nos outros caminhos de luta, resistência e enfrentamentos. Caminhos essenciais para garantir que essa nova corrida por terra e território, acompanhada da intensificação dos mecanismos de mercado e da lógica de compensação do capitalismo extrativista, não se tornem definitivos.[2] 

Comecemos [3] por compreender que não se trata de preocupações com o meio ambiente, com o clima e muito menos com as florestas e seus povos. E pelo o que de fato está por trás dos discursos ambientais dos agentes dominantes e o que de fato está em jogo…

Todos que participam, pesquisam ou são afetados pelo mercado de carbono sabem que se trata de um paraíso de saqueadores; uma fonte de financiamento e legitimação do capitalismo extrativista. E por mais importante que seja a difusão dos escândalos relacionados ao mercado voluntário, dos “cowboys do carbono”, os apelos por “reforma” e “regulamentação” vão apenas aprofundar um sistema que é caracterizado, na sua raiz, pela exploração, expropriação e por crimes socioambientais.

Mecanismo que deslegitima as lutas por reforma agrária e regulamentação fundiária, por acesso à políticas públicas, à justiça climática e contra o racismo ambiental daqueles que são mais afetados pela mudança climática e que estão na linha de frente da preservação e valorização dos comuns. É sobre isso que devemos estar discutindo.


[1]           Ver: https://epbr.com.br/mercado-de-carbono-deve-ser-votado-no-inicio-de-setembro-diz-senadora/?utm_source=social&utm_medium=mensagem

[2]           Ver: https://rosalux.org.br/wp-content/uploads/2024/03/em-nome-do-clima-2.pdf

[3]           Ver: https://www.oc.eco.br/wp-content/uploads/2024/04/OC-nota-PL182-2024.pdf

[4]           Ver: https://www.europol.europa.eu/media-press/newsroom/news/carbon-credit-fraud-causes-more-5-billion-euros-damage-for-european-taxpayer; https://www.researchgate.net/publication/240636745_Regulation_as_Corruption_in_the_Carbon_Offset_Markets.

E mais recentemente: https://www.theguardian.com/environment/2023/jan/18/revealed-forest-carbon-offsets-biggest-provider-worthless-verra-aoe

[5]           https://www.camara.leg.br/noticias/1029000-deputados-analisam-projeto-que-regulamenta-o-mercado-de-carbono-no-brasil-acompanhe/

[6]           Ver: https://plataforma.seeg.eco.br/

[7]           Ver: https://rosalux.org.br/wp-content/uploads/2024/03/em-nome-do-clima-2.pdf

[8]           Ver: https://www.gov.br/pf/pt-br/assuntos/noticias/2024/06/pf-deflagra-operacao-greenwashing-para-investigar-venda-irregular-de-creditos-de-carbono

[9]           https://www.mpf.mp.br/am/sala-de-imprensa/docs/2024.08Recomendacao01.2024_suspensogeralREDDemPCTsnoestadoAM.pdf

[10]   https://www.wrm.org.uy/pt/alertas-de-acao/assine-em-solidariedade-nao-ao-redd-declaracao-do-encontro-na-amazonia-sobre-projetos-de-carbon o

[11]   Ver: https://www.plataformadh.org.br/wp-content/uploads/2015/08/economia_verde_relatorio.pdf; https://rosalux.org.br/livro/redd-early-movers-rem-no-acre-brasil/

[12]   https://www.oc.eco.br/wp-content/uploads/2024/04/OC-nota-PL182-2024.pdf https://inesc.org.br/wp-content/uploads/2023/12/01-rt_mercado_carbono_inesc-v2.pdf?x69356

[13]   Ver: https://www.wrm.org.uy/pt/publicacoes/15-anos-de-REDD#:~:text=Esta%20publica%C3%A7%C3%A3o%20re%C3%BAne%2011%20artigos,todo%20o%20mundo%20desde%202007.


* Fabrina Furtado é  professora do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (UFRRJ/CPDA)

Imagem: Canva