O relatório Em Nome do Clima mapeou 107 projetos de Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD)
Projetos de venda de créditos de carbono acirram conflitos fundiários
18/03/2024
por
Rute Pina*

Imagem de wirestock no Freepik

José Francisco Nascimento, morador da comunidade Terra Firme de Baixo, no município de Cruzeiro do Sul (AC), era uma criança quando ouviu falar pela primeira vez do Projeto de Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação florestal (REDD), o “Projeto de Valparaíso”, utilizando o nome do rio onde vive. A comunidade onde Chico vive é um ex-seringal. As famílias estão no local há mais de 100 anos.

“Eu tinha 13 anos quando fizeram a primeira reunião sobre o projeto [de REDD]. Meu pai estava participando dessa reunião, que era para falar como o projeto ia funcionar. Os que estavam presentes disseram que eles tinham pedido para assinar uma ata de presença apenas. [No entanto,] para criar o projeto, eles usaram essa ata com o nome das pessoas, como se elas estivessem de acordo”, conta o, também, presidente da Associação de Seringueiros e Ribeirinhos, revelando problemas já de início.

Os proponentes do projeto, segundo relato de Chico, prometeram à comunidade cursos de atividades agrícolas, como plantio de mandioca, milho e graviola, além do fornecimento de maquinário para o arado da terra e infraestrutura para a comunidade. Promessas que não foram cumpridas depois da criação do projeto. 

“Há três anos, as coisas começaram a mudar. Começaram a empatar as pessoas e a implantar o que eles chamam de contrato de comodato. As pessoas ficaram ‘aperreadas’. Como vamos viver aqui sem poder plantar?”, questiona o agricultor. 

CONTRATO DE COMODATO

Fabrina Furtado explica que, para garantir a venda dos créditos de carbono, as famílias foram proibidas de plantar e utilizar madeiras para melhoria de suas casas, por exemplo. O contrato de comodato é uma afirmação de que um dos proponentes do Projeto, a família Lopes, que até hoje não mostrou nenhum documento de terra para as famílias, é dono e empresta a terra para as famílias, como uma concessão. 

O projeto de REDD envolve uma área de 28.096 hectares, mas documento do INCRA, solicitado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) que assessora as comunidades da região, só reconhece 3.850,8256 hectares. No entanto, o Projeto de Valparaíso, que envolve outros dois proponentes, a CarbonCo LLC e Freitas International Group LLC já vendeu créditos para diversas empresas internacionais.

EM NOME DO CLIMA

O relatório Em Nome do Clima – Mapeamento Crítico: transição energética e financeirização da natureza mapeou 107 projetos de Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD), como o projeto Valparaíso. Destes, 24 já venderam o crédito e outros estão em processo de validação e processo de registro. 

Elisangela Soldateli Paim e Fabrina Furtado coordenadoras do relatório Em Nome do Clima: Mapeamento Crítico - créditos de carbono
Elisangela Soldateli Paim e Fabrina Furtado coordenadoras do relatório Em Nome do Clima: Mapeamento Crítico

A pesquisa mapeou os projetos através das certificadoras de crédito de carbono. São três no país: Verified Carbon Standard (VCS) e o Climate, Community & Biodiversity Standards (CCB), ambos administrados pela Verra, e o Cercarbono.

O estudo foi realizado pela Fundação Rosa Luxemburgo em parceria com o Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

CRÉDITOS DE CARBONO

“Vimos um grande desconhecimento sobre o assunto nas diversas comunidades que visitamos. As comunidades não sabem nem o que é carbono, quanto mais o que é o mercado de carbono ou REDD. Estão envolvidas em projetos sobre os quais não foram informados e não participaram de um processo de consulta livre, prévia e informada”, pontua a Fabrina Furtado, uma das coordenadoras do relatório.

O estudo foi divulgado em março e aborda os impactos da transição energética e da financeirização da natureza, respectivamente projetos de energia renovável e projetos de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD).

CONFLITOS FUNDIÁRIOS

Dos 20 projetos certificados pela Cercabono, 19 estão em terras indígenas. Para Furtado, o dado explicita a intensificação do conflito fundiário que ocorre por causa dos empreendimentos, tanto em territórios regularizados, onde as comunidades têm títulos ou têm o direito territorial garantido, ou nos que estão em processo de regularização.

“No caso da comunidade de Terra Firme de Baixo, eles não tinham ameaças, viviam no seu território, praticavam o seu modo tradicional de ser e agora vivem com insegurança. Alguns já deixaram a terra e os outros se sentem ameaçados e/ou assediados; falam que reuniões são realizadas com armas na mesa, por exemplo. Vivem nessa constante insegurança”, denuncia a pesquisadora.

São projetos que não reduzem o desmatamento, porque não são essas comunidades as responsáveis pelo desmatamento. Neste processo, eles passam a incorporar a ideia que eles desmatam. Esses projetos responsabilizam comunidades ribeirinhas e indígenas, criminalizando a prática tradicional porque não é brocar [“roçar”] que vai causar mudança climática. Com isso, oculta os verdadeiros responsáveis deste processo”, explica.

CORRIDA POR TERRA E TERRITÓRIO

Em 2013, quando esteve nesta região pela primeira vez, Fabrina recorda que foram identificados apenas 10 projetos no país. Ou seja, um aumento de 1070% em comparação aos dados atuais.

“O que vemos nesse processo é uma nova corrida por terra e território, agora em nome do clima. Essas corporações, sejam de energia ou as que compram projetos de REDD, agora ganham duplamente. Elas não ocultam mais os efeitos do desmatamento, mas dizem que podem compensar essa degradação, investindo em outro tipo de projeto.”

Os projetos de REDD e o processo de regulação do mercado de carbono têm sido discutidos e pautados pelo setor privado. No caso do REDD no Brasil, por exemplo, as agências de cooperação da Alemanha têm tido papel fundamental no apoio ao REDD Early Movers (REM) no Acre e no Mato Grosso, por exemplo, que “premia” os estados “pioneiros” em REDD. O Fundo Amazônia também conta com apoio da Alemanha. Além disso, encontramos empresas alemãs comprando crédito de carbono de projetos voluntários de REDD.  

PANORAMA INTERNACIONAL

David Williams, coordenador do Programa Justiça Climática Internacional da Fundação Rosa Luxemburgo, tem se debruçado no panorama internacional sobre o tema. Ele explica que há um contexto internacional e nacional favorável à intensificação e à expansão de políticas e projetos de REDD e de transição energética.

Para ele, os fóruns internacionais e conferências sobre o clima, arena de debate e de formulação legislativa para o tema, têm apresentado soluções baseadas no mercado. E o Sul global continua a ser entendido como fronteira a ser explorada, mas agora em torno de um consenso: a “salvação” da humanidade através da “descarbonização”.

“O REDD+ não vai resolver o problema da dívida climática, apenas vai manter um status quo. Ele ignora aspectos sociais e culturais e também não contém nenhum aspecto de direitos humanos. É um problema muito grande quando falamos em mercado de carbono”, conclui.

* Rute Pina é jornalista. Esta reportagem faz parte do projeto do programa energia e clima para América Latina da Fundação Rosa Luxemburgo.