por Katarine Flor*
A falta de acesso a direitos básicos – como a alimentação de qualidade – é uma das facetas do genocídio da população negra. Esta é a análise de Adriana Rodrigues, uma das autoras do livro Agroecologia e educação popular ações e reflexões de enfrentamento ao racismo. A publicação foi editada pela Fundação Rosa Luxemburgo em parceria com o Instituto de Referência Negra Peregum.
“Qual é a qualidade da alimentação que a população negra consegue acessar? São industrializados, mais acessíveis economicamente. A população negra não tem acesso a uma alimentação orgânica e agroecológica”, pontua.
Insegurança alimentar no Brasil
A fome tem cor. No Brasil, um em cada cinco lares (20,6%) chefiados por pessoas negras enfrenta insegurança alimentar, ou seja, passam fome, os dados são do relatório da Rede Penssan.
Rodrigues, coordenadora de projetos no Instituto de Referência Negra Peregum, destaca que a falta de acesso a uma alimentação saudável contribui para que a população negra no Brasil apresente taxas mais altas de diabete, hipertensão, doença renal crônica e obesidade, quando comparada à população branca.
O Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto (Elsa-Brasil) revela que 48% dos negros têm hipertensão, 27% diabete e 11% doença renal crônica. Segundo o estudo, essas condições estão relacionadas a fatores socioeconômicos e discriminação racial, impactando negativamente a alimentação e a saúde dessas populações.
Produzindo Alimentos, Mas Sem Acesso
Adriana Rodrigues, mestre em história social e doutoranda pela UNICAMP, evidencia uma contradição marcante: se por um lado, agricultores negros garantem a alimentação do país, por outro, suas próprias comunidades sofrem com a insegurança alimentar.
No Brasil, a agricultura familiar é responsável por 70% dos alimentos consumidos. De acordo com o último Censo de 2022, 66% dos agricultores brasileiros são negros e, durante a pandemia, mais de 65% das pessoas em situação de insegurança alimentar eram negras.
Racismo Ambiental
Aline Guarizo, coordenadora de projetos da Peregum e uma das organizadoras do livro Agroecologia e educação popular: ações e reflexões de enfrentamento ao racismo, destaca a estreita relação entre questões ambientais e raciais. “Quando abordamos o racismo sob essa perspectiva ambiental, percebemos que ambas estão profundamente interligadas.”
Guarizo ressalta que o racismo ambiental amplifica as disparidades entre as populações, especialmente quando se trata dos impactos das mudanças climáticas. Esses impactos são mais severos para as comunidades que não contribuíram para a crise climática, excluídas dos locais menos degradados das cidades e, historicamente, foram privadas do acesso à terra e, consequentemente, da soberania alimentar.
:: Assista a Websérie Racismo Ambiental: Terra, Territórios, Tecnologias
Ela enfatiza a importância e o impacto da educação popular para fortalecer a participação das pessoas na resolução desses complexos problemas que afetam diretamente a qualidade de vida de muitas comunidades.
Alternativas vêm da população
Na outra ponta, Carla Bueno Chahin, integrante do setor de Produção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra destaca as tecnologias que se constituem a partir da população, da organização coletiva. Um exemplo disso são as cozinhas comunitárias, populares, solidárias. “São espaços constituídos dentro do tecido social, em processo de resistência, para combater a fome nos territórios”, conta. “Elas se consolidam especialmente [onde está] a maior concentração de fome, nas áreas urbanas, como tecnologias sociais”.
As cerca de 2,6 mil cozinhas solidárias em funcionamento no Brasil, de maneira e em lugares diferentes, fazem chegar alimento saudável, no formato de refeições, para pessoas vulnerabilizadas e em insegurança alimentar. “O alimento tem esse papel. Chegando na cozinha e sendo preparado por essas cozinheiras, a maioria mulheres, é que ele realiza a função social da terra, um tema tão caro e importante para nós, do MST”, afirma ela.
Ações comunitárias
Nesse processo de ações coletivas, ganham destaque as hortas urbanas agroecológicas como as cultivadas pela Uneafro na periferia de São Paulo. O projeto promove encontros, articulações e empoderamento pessoal e coletivo sobre temas como: agroecologia, soberania alimentar e combate ao racismo.
Outra alternativa popular em construção para eliminar desertos alimentares – áreas das cidades onde não estão disponíveis alimentos frescos e de qualidade – são os sacolões populares associados a essas cozinhas solidárias. “Um espaço subsidiado, que possa abastecer as famílias e seus lares, acessando produtos da reforma agrária, alimento saudável, produzido sem agrotóxicos, de maneira agroecológica. É uma maneira também da gente chegar nas periferias”.
Na cidade de São Paulo, o primeiro sacolão popular do MST foi criado em fevereiro de 2024, com a Pastoral do Povo da Rua.
Existem alternativas e elas vêm da população.
* Katarine Flor é coordenadora de comunicação na Fundação Rosa Luxemburgo