Em seminário organizado pela Fundação Rosa Luxemburgo em Santiago, organizações de Argentina, Brasil, Chile e Uruguai discutem como construir alianças diante das ameaças dos acordos de livre-comércio
Por Jorge Pereira Filho
Pouco mais de uma década após o fracasso das negociações na Alca, os ventos dos acordos de livre-comércio já podem ser sentidos novamente nas latitudes do Mercosul. Um passo decisivo nessa direção foi dado pelo presidente argentino, Mauricio Macri, que, instalado na Casa Rosada no final de 2015, reafirmou o desejo de acelerar as negociações de um tratado de ‘livre comércio’ entre o Mercosul e a União Europeia. Em março de 2016, Macri recebeu o presidente norte-americano, Barack Obama, e anunciou a montagem de grupos de trabalho para estudar um acordo bilateral entre os dois países.
A sinalização de Buenos Aires foi bem recebida pelos governos do Brasil, Paraguai e Uruguai, o que reavivou a agenda multilateral. Negociadores do Mercosul e da União Europeia vão apresentar novamente suas ofertas para o acordo em meados de maio – tentarão, assim, avançar nas tratativas que já duram 17 anos. O que se especula é que, sem a resistência da Argentina dos tempos de Cristina e Nestor Kirchner, o TLC entre os dois blocos só não sairá se os europeus (em especial, os franceses), receosos dos impactos desse acordo para a pequena agricultura, não melhorarem sua oferta para a abertura de seu mercado agrícola.
A retomada das negociações atende ao chamado de forças políticas e econômicas conservadoras no Mercosul favoráveis à liberalização comercial. Para que não pairem dúvidas: no Brasil, a inserção do país em tratados multilaterais foi uma das pré-condições impostas pelo PSDB para apoiar um eventual governo de Michel Temer; além disso, esse foi um tema presente no programa dos adversários de Dilma Rousseff na campanha de 2014.
Desde o fim das negociações da Área de Livre-Comércio das Américas (Alca), o Mercosul tem priorizado as negociações Sul-Sul no que diz respeito a acordos internacionais de comércio. Com as grandes potências econômicas ocidentais, o locus privilegiado das negociações seria a Organização Mundial do Comércio (OMC), cujas negociações também se encontram paralisadas.
A mudança de ambiente político nas duas principais economias do bloco, com a ascensão de Macri na Argentina e a crise de Dilma Rousseff no Brasil, indica que se intensificará a pressão para que o Mercosul ingresse em outra agenda, ou seja, aquela que vem sendo capitaneada por Estados Unidos e União Europeia. Na realidade, trata-se de uma agenda que está em curso desde a débaclé da Alca e já envolve outros países da região, como Chile, Colômbia, Equador e Peru, que possuem tratados de livre-comércio assinados com norte-americanos ou europeus.
Para discutir esse cenário e os desafios que são colocados para as organizações da sociedade civil, a Fundação Rosa Luxemburgo organizou, entre os dias 24 e 26 de abril, um seminário em Santiago, no Chile, com cerca de 40 ativistas locais, da Argentina, do Brasil, do Paraguai, do Uruguai e de países europeus. O encontro procurou analisar essa nova conjuntura dos acordos de livre-comércio que estão sendo negociados com os países da região, destacando também a necessidade de as organizações sociais progressistas somarem forças na construção de uma jornada de lutas comum em oposição aos TLCs.
TPP: a democracia sob custódia
O seminário destacou, entre outros aspectos, as ações da plataforma “Chile Mejor sin TPP”, aliança de diversas organizações que procura mobilizar a sociedade local para barrar o Acordo de Associação Transpacífico (TPP, na sigla em inglês). Assinado pelos presidentes de doze países banhados pelos Oceano Pacífico em fevereiro de 2016, o tratado reúne Chile, México e Peru da América Latina e três nações das sete economias mais poderosas do planeta (Estados Unidos, Japão e Canadá).
Negociado em segredo durante cinco anos, o acordo com mais de 6 mil páginas (veja parte do texto em espanhol) abrange uma série de temas que extrapolam o comércio e institui uma espécie de arquitetura institucional supraestatal – com significativos impactos nas Constituições nacionais. Apenas representantes do setor empresarial, em especial lobistas de transnacionais, participaram das negociações, que não contaram com a participação de outros setores da sociedade, nem do Legislativo.
“Por experiencia, sabemos que podemos vencer”, dicen expertos
Javier Couso: “El mercado entierra la democracia”
O TPP ainda precisa da aprovação dos Congressos das nações signatárias para entrar em vigor. Pelo modelo de negociação adotado, nenhum termo poderá ser rediscutido. “Os legisladores estão limitados a votar ‘sim’ ou ‘não’ para ratificar o TPP, assim não podem introduzir modificações”, explicou Lucía Sepúlveda, responsável pela área de sementes e transgênicos da Red de Acción en Plaguicidas RAP-Chile, além de porta-voz da campanha “Chile Mejor sin TPP”. A ativista participou de um debate sobre o tema realizado por representantes de organizações sociais em Santiago, no Chile, no dia 27 de abril, promovido pela Fundação Rosa Luxemburgo, em parceria com o Instituto de Ciencias Alejandro Lipschutz (Ical) e o Observatorio Latinoamericano de Conflictos Ambientales (Olca) (leia mais aqui).
Estabelecendo uma zona de livre-comércio que responde por 40% do comércio mundial, o TPP impede que os governos nacionais tenham autonomia para suas compras governamentais, adota parâmetros dos Estados Unidos para a questão de direitos autorais, amplia a duração das patentes farmacêuticas, dificultando o acesso a medicamentos, subordina a legislação ambiental a interesses econômicos, ameaça a liberdade de expressão, entre outros aspectos.
Não é só. O acordo cria também um painel de arbitragem internacional que permite a empresas e investidores processarem Estados quando se sentirem lesados. Se um país signatário, por exemplo, decide reestatizar um serviço privatizado (como a geração de energia), a empresa em questão pode reivindicar, em tal painel de arbitragem, o pagamento de indenização pelos lucros que deixará de ter com a operação.
Esse mecanismo, chamado de ISDS (Investor-State Dispute Settlement), se sobrepõe à soberania nacional e coloca a democracia sob custódia, definindo limites para a capacidade de um povo definir suas próprias leis. “Com isso, o próprio papel do Parlamento se descaracterizaria porque as leis que aprovariam seriam examinadas pelas grandes corporações, prejudicando diretamente os movimentos sociais que exigimos leis justas”, avalia Lucía Sepúlveda, acrescentando que a assinatura do TPP pelo Chile, ao não consultar os povos indígenas, já desrespeitou a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
TTIP e TiSA: mega-acordos em negociação
Além do TPP, há outros dois mega-acordos que os Estados Unidos estão promovendo em escala global com abrangência similar. Trata-se do Acordo sobre Comércio e Serviços (TISA) e do Tratado Transatlântico de Comércio e Investimentos (TTIP). Essas iniciativas são consideradas exemplos da “nova geração” de acordos de livre-comércio porque seus termos extrapolam consideravelmente aquilo que era negociado em espaços multilaterais, como a OMC.
As discussões sobre o TISA se iniciaram em 2012, também secretamente, com o objetivo de ampliar as políticas de liberalização do setor de serviços, em especial de compras públicas. Em linhas gerais, seu objetivo é estabelecer uma série de diretrizes que proporcionam aos investidores estrangeiros acesso aos mercados nacionais em condições semelhantes dos fornecedores locais, reduzindo a possibilidade do Estado de regular, adquirir ou prestar serviços. O escopo de áreas envolvidas é bastante vago e abrange atividades públicas que vão desde fornecimento de energia, distribuição de água e telecomunicações, chegando até educação, saúde e transportes. Atualmente, cinquenta países participam das conversas (na América Latina, são Chile, Colômbia, Costa Rica, México, Panamá, Paraguai e Peru). Essas nações respondem pela expressiva soma de quase 70% do comércio mundial de serviços.
Parte do conteúdo das negociações veio a público por meio de um vazamento de documentos obtidos pelo Wikileaks. Entre as cláusulas que afrontam os regimes democráticos, está a de que os governos deverão anunciar previamente e submeter à discussão todas as regras e normas que pretendem aplicar, permitindo assim que as transnacionais e os grupos de investimento internacionais tenham possibilidade de contra-argumentar. Para Javier Couso, eurodeputado espanhol pela Izquierda Unida, que participou das atividades promovidas no Chile pela Fundação Rosa Luxemburgo, o pano de fundo desses tratados é o desejo dos investidores de se autorregularem: “eles não descansam, sempre conspiram para alcançar esse ideal de governança enquadrada pela globalização, que significa um ataque ao Estado-Nação, ou seja, à soberania nacional para decidir as normas que os povos querem estabelecer democraticamente”.
O Tratado Transatlântico de Comércio e Investimentos (TTIP) também se insere nesses marcos. Trata-se de um acordo negociado entre o governo dos Estados Unidos e a Comissão Europeia desde junho de 2013. No momento, apenas representantes das transnacionais têm acesso ao conteúdo em discussão. No início deste mês, o Greenpeace teve acesso à parte desses documentos e analisou que há quatro aspectos principais que provocam maior preocupação: as políticas de proteção ambiental são ignoradas; o acordo prejudicará a implementação de medidas contra o aquecimento global; será eliminado o princípio europeu de precaução (por meio do qual pode-se impedir a circulação de produtos que oferecem risco à saúde humana, animal ou ao meio ambiente); abre-se a porta para um poder maior das corporações. “O TTIP é um tratado vampiro e por isso querem escondê-lo, porque se ganhar a luz pública as pessoas saberão o quanto serão prejudicadas. Lobistas, que representam as transnacionais, negociaram 95% de suas decisões”, afirma Javier Couso.
O eurodeputado espanhol acrescentou que o acordo entre União Europeia e Mercosul também está sendo negociado sob o desconhecimento do Parlamento europeu. Em especial, três aspectos chamam a atenção nessas tratativas com os países sul-americanos, levando em conta o histórico das negociações europeias. Em troca de ampliar a venda de produtos agrícolas no mercado europeu, o Mercosul negocia a abertura do setor federal de compras governamentais, reduzindo a possibilidade de utilizá-las em políticas públicas. Além disso, uma eventual redução de tarifas para produtos industrializados importados da Europa reforçaria a tendência de reprimarização da economia, em especial no caso brasileiro, maior parque industrial do Mercosul, aprofundando um modelo econômico lastreado em commodities com severas repercussões sócio-ambientais. A agenda europeia nas negociações de TLCs inclui ainda, entre outros aspectos, acordos ainda mais agressivos em relação à propriedade intelectual, prejudicando por exemplo a quebra de patentes de medicamentos. Esses são alguns dos elementos que levaram o Alto-Representante Geral do Mercosul, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, a considerar o acordo com a União Europeia como “uma desgraça”.
Resistência a partir dos povos
Essa ofensiva das corporações sobre os Estados nacionais tem despertado resistência nos mais diversos territórios. Na Europa, uma ampla aliança de cidades que se declararam “livres do TTIP” está se constituindo para rechaçar a negociação do acordo. Até o momento, mais de 1.200 localidades europeias (municípios e regiões) já aprovaram moções contra a aplicação do tratado. Em outubro de 2015, a Iniciativa Auto-Organizada Cidadania Europeia (ECI) entregou ao presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, mais de 3 milhões de assinaturas exigindo transparência nas discussões do acordo.
Na América do Sul, o Uruguai deu o exemplo recente mais contundente de resistência à agenda dos tratados de livre-comércio, ao abandonar as negociações do TISA em 2015. Não se tratou de um processo simples. Inicialmente, o governo – primeiro de José Mujica e, depois, de Tabaré Vázquez – participava das discussões. Um processo popular massivo, que incluiu um dia nacional de paralisação, pressionou o Estado a submeter o tema ao plenário da Frente Ampla – conjunto de organizações que apoiam o governo uruguaio. O resultado foi uma votação expressiva de 117 delegados rechaçando a participação do país no acordo (houve apenas 22 votos favoráveis).
As organizações presentes no encontro promovido pela Fundação Rosa Luxemburgo refletiram que experiências como essas e a Campanha contra a Alca constituem um referencial poderoso para que se construa novamente no continente uma aliança contra a agenda de livre-comércio. Nas palavras de Luciana Ghiotto, da Attac-Argentina: “O trabalho que devemos levar adiante implica um esforço de difusão e tradução das informações técnicas a uma linguagem que possa ser acessível por todas as organizações sociais. Nesse esforço vamos consolidando as alianças, construindo novas e rearticulando as existentes, atualmente adormecidas, da Campanha contra a Alca. Hoje está colocado o desafio de enfrentar a hercúlea tarefa de organizamos”.
Fotos: Chile mejor sin TPP (2), Isabel Díaz Medina, Gerhard Dilger (2)