Cristina Marins[1]
Josué Medeiros[2]
O final do primeiro ano de governo Lula permite a elaboração de um balanço sobre duas dimensões fundamentais que marcam a atual gestão. A primeira delas, institucional, se desdobra a partir de um contexto de sucessivos ataques à democracia perpetrados pelo ex-presidente Bolsonaro e pela tentativa de golpe de Estado de 08 de janeiro de 2023.
A segunda dimensão, econômica, se relaciona ao modo como a gestão bolsonarista manipulou o orçamento e as políticas sociais na tentativa de reeleger o líder de extrema-direita. Em ambas as esferas, o governo deixa um saldo moderadamente positivo para grande parte das esquerdas.
Na dimensão institucional, o governo Lula avançou para restabelecer uma dinâmica de normalidade democrática. Neste sentido, cumpre papel de destaque a retomada, pelo atual chefe do executivo, do diálogo com governadores e prefeitos.
Se esta atitude de Lula estabelece um contraste marcado com o comportamento de Bolsonaro que, em diversas ocasiões, atacou outros mandatários e buscou inviabilizar suas gestões, o mesmo vale para a renovada relação da presidência com o Supremo Tribunal Federal (STF), antes alvo de mobilizações bolsonaristas.
No plano global, o Brasil retomou um lugar de protagonismo e de diálogo com o conjunto da comunidade internacional. Por outro lado, a relação institucional segue conturbada com o Congresso Federal, cuja maioria conservadora vem impondo derrotas ao governo (como no caso do Marco Temporal) e disputando o controle do orçamento via as emendas parlamentares
Na economia, os indicadores são positivos, já que o país registrou crescimento acima do previsto (na casa dos 3%) no começo de 2023, inflação controlada, geração de emprego, crescimento da renda dos trabalhadores, aumento real do salário-mínimo, entre outros. Tem ocorrido, neste contexto, um necessário e qualificado debate sobre a opção do ministro da fazenda, Fernando Haddad, pelo déficit zero no orçamento em 2024.
Economistas progressistas alertam para o risco de asfixiar políticas públicas e políticas sociais decisivas para que o governo Lula avance na redução das desigualdades e na promoção dos direitos e do bem-estar para o conjunto da população. É justamente este conjunto da população diretamente afetado pela agenda social do governo federal que vem sendo, em grande parte, negligenciado nos balanços deste final de 2023.
Em que pese o mantra repetido pelo presidente Lula de que “derrotamos os bolsonaristas nas urnas, mas ainda não os derrotamos na sociedade”, pouco tem se falado sobre como os brasileiros estão sentindo, elaborando e atuando neste cenário de normalização institucional e início de retomada econômica.
Nosso objetivo aqui é tentar contribuir com reflexões nesta direção. Fazemos isto a partir de experiência de pesquisa qualitativa realizada por nós ao longo dos últimos meses, com destaque a uma rodada de grupos focais que reuniu trabalhadores que exercem diversas modalidades de trabalho por conta própria (e, portanto, sem acesso a proteções sociais vinculadas ao emprego assalariado) – chamados, daqui em diante, de trabalhadores sem direitos.
O estudo Trabalho por Conta Própria Demandas por Direitos e Imaginário Político. O estudo foi realizado pela Fundação Lauro Campos e Marielle Franco e pela Fundação Rosa Luxemburgo a partir de grupos focais ocorreram na cidade de São Paulo em junho de 2023. O relatório pode ser acessado aqui!
ALÉM DA POLARIZAÇÃO: INFORMAÇÃO E POLITIZAÇÃO
Pesquisas quantitativas divulgadas nos últimos meses, indicam uma continuidade da polarização política que divide os eleitores, majoritariamente, entre aqueles que se consideram petistas ou bolsonaristas. Pesquisa do Instituto Datafolha com campo realizado em 05 de dezembro de 2023 atesta que o cenário segue idêntico aquele verificado um ano antes, logo após o processo eleitoral. Vistos a frio, estes números sugerem que nem a normalidade democrática e nem o crescimento econômico arrefeceram a divisão política na sociedade brasileira. Entretanto, pesquisas qualitativas baseadas em diálogo mais consistente sobre as percepções e valores das pessoas apresentam nuances deste cenário.
Tabela 1 – Polarização Política – Datafolha
Data da pesquisa | Petistas | Bolsonaristas | Centro |
Dezembro 2022 | 32% | 25% | 20% |
Dezembro 2023 | 30% | 25% | 21% |
O primeiro aspecto que destacamos, a partir de nossos dados de campo, tem a ver com um sentimento que atravessa um setor amplo do eleitorado e que, nas ciências sociais, se convencionou chamar de antissistema, antipolítica ou antiestablishment. Nossa pesquisa qualitativa revelou que, entre trabalhadoras e trabalhadores de diversos setores da economia informal brasileira, é onipresente a ideia de que o sistema político é inerente e irreversivelmente corrupto, tendo o poder de contaminar ou expelir aqueles que ingressam na política.
A suspeição direcionada aos atores e instituições políticas, a ideia de que o sistema político é restrito a pequenos grupos interessados em benefícios particulares e que o aparelho institucional está dominado por elites desconectadas das necessidades da população foi manifestada por participantes de ideologias políticas diversas.
De modo semelhante, a percepção de que os atores políticos são desonestos e ludibriam os eleitores é quase unânime entre as trabalhadoras e trabalhadores por conta própria ouvidos nos grupos focais. Muitos são os depoimentos que indicam desesperança em relação à capacidade do poder público de promover justiça social. Paradoxalmente, é unânime entre os trabalhadores dos diferentes segmentos pesquisados a ideia de que cabe ao poder público garantir saúde, educação e segurança para toda a população.
Outro ponto que vale ser destacado por oferecer uma chave de leitura às pesquisas quantitativas diz respeito aos eleitores que recusam alinhamento com os polos de poder que dominam o cenário político brasileiro. Neste sentido, trabalhadores que, em nossa pesquisa de campo, se declararam “de centro”, o fizeram menos por se considerarem moderados em relação aos projetos hoje postos, mas por entenderem que “ser de centro” traduz uma posição de neutralidade em relação às agendas e aos atores políticos de esquerda ou direita.
Para diversos dos trabalhadores que ouvimos “centro” remete à ideia de não ter posição fixa no debate, podendo votar em políticos de qualquer espectro ideológico, desde que apresentem propostas que julgam positivas.
Em que pese o fato de nossa pesquisa não haver pré-determinado um perfil de voto e, por esta razão, ouvir tanto eleitores claramente identificados com agendas políticas de direita e de esquerda, quanto aqueles que se declaram neutros, é importante registrar que, nos diversos grupos focais, verificou-se que o cenário de polarização se reflete no modo como nossos interlocutores percebem e discutem política.
Assim, trabalhadoras e trabalhadores ouvidos por nós, discorreram sobre dificuldades de debater política no espaço público, sobre relações rompidas como decorrência de debates acirrados e sobre o receio de sofrer agressões por defenderem determinadas posições políticas. Por outro lado, a pesquisa também revela que o cenário de polarização produziu um efeito de aproximar trabalhadoras e trabalhadores do debate político, despertando interesse de indivíduos que passaram a prestar atenção no noticiário, a checar múltiplas fontes de informação para evitar a armadilha das notícias falsas, além de ouvir pontos de vista diversos para então elaborar seus próprios posicionamentos políticos.
O que estamos encontrando no campo é uma população ávida por informação sobre tudo que impacta suas vidas, inclusive sobre a política institucional. Dado que uma parcela significativa do consumo destas informações e do debate sobre o tema tem a mediação das plataformas de redes sociais, o papel dos algoritmos vem sendo decisivo nas subjetividades políticas das brasileiras e dos brasileiros – e isto é repercutido também no modo como trabalhadores sem direitos se relacionam com as garantias e proteções (ou a ausência delas) no cotidiano do trabalho.
DEMANDAS POR DIREITOS
Em que pese o sentimento antissistema que segue forte, com uma rejeição à política institucional bastante consolidada, o campo nos mostra também que, em seus cotidianos, trabalhadores sem direito estão mais preocupadas em buscar meios de garantir dignidade e bem-estar para si e para seus familiares e menos pautadas pelo conflito político institucional. Isto não quer dizer, contudo, que não haja uma demanda consolidada por direitos e proteção social.
Os trabalhadores dos diversos setores da economia popular, incluindo transporte, limpeza, cuidados pessoais e comércio, foram unânimes em expressar preocupação com a vulnerabilidade que experimentam no dia a dia do trabalho, em especial por se perceberem constantemente sujeitos a situações que dificultam ou impedem que trabalhem e garantam suas rendas. Isto inclui situações de doença (próprias ou de familiares fundamentais para a rede de cuidados que viabiliza o trabalho por contra própria); acidentes, danos ou perdas de instrumentos de trabalho.
Mas ainda que reconheçam a importância da proteção social e dos direitos trabalhistas, em sua grande maioria, as trabalhadoras e trabalhadores ouvidos não pretendem negociar o que consideram conquistas do trabalho por conta própria, principalmente a liberdade de gerir o próprio horário e a ausência de um patrão. Contrastando o cotidiano do trabalho por conta própria com experiências pregressas de trabalho assalariado – muitas das quais marcadas por baixas remunerações, difíceis relações com superiores hierárquicos, longas jornadas de trabalho e, em certos casos, também abusos e humilhações – a maioria das trabalhadoras e trabalhadores declaram preferência por sua atual situação laboral à possibilidade de um emprego formal regulado pela Consolidação das Leis Trabalhistas.
O ingresso em modalidades de trabalho por conta própria é frequentemente apresentado como projeto associado a melhora nas condições de vida – algo verificado, inclusive, em situações nas quais os trabalhadores apontam que o trabalho por conta própria foi produto de demissão inesperada. Flexibilidade de horário, ganhos financeiros superiores aos disponíveis no mercado de trabalho formal e a não submissão à figura de um superior hierárquico são centrais para a percepção positiva do trabalho por conta própria.
O recorte de gênero produz um relato mais complexo sobre a entrada e a permanência no mercado de trabalho informal. As mulheres, em grande medida, associam esse processo à ausência de políticas públicas de amparo à maternidade e à desigual divisão do trabalho de cuidado dos filhos dentro da família. Mães relatam incompatibilidade entre a necessidade do cuidado das crianças pequenas e a rotina do trabalho assalariado formal, já que não conseguem escolas de horário integral e precisam cuidar dos filhos quando ficam doentes e durante o período de férias escolares, por exemplo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: APROFUNDAR E TERRITORIALIZAR O DIÁLOGO
Se podemos dizer que há um balanço positivo do primeiro ano do governo Lula, em especial no que diz respeito à reconstrução da democracia, ainda há muito a ser feito no âmbito social. Neste sentido, é urgente e fundamental a construção de uma agenda política a partir da escuta daqueles que vivem nas periferias das grandes cidades e que vivenciam as vulnerabilidades sociais e econômicas de modo mais intenso. Esta é a situação de uma parte significativa das trabalhadoras e trabalhadores sem direitos que hoje são maioria no país e que tem sido negligenciada no primeiro ano de governo.
É necessário, portanto, trabalhar por um novo caminho que aprofunde o diálogo com esta população com base em suas próprias elaborações e experiências de vida, moradia e trabalho. Nossas pesquisas mostram que, além de uma demanda consolidada por direitos universais – em especial, saúde, educação e segurança – trabalhadoras e trabalhadores sem-direito reivindicam o acesso a proteções trabalhistas desvinculadas do emprego assalariado.
A subjetividade laboral que associa o trabalho por conta própria a ideia de liberdade, mas, ao mesmo tempo, reconhece a vulnerabilidade como preocupação central apresenta, de nosso ponto de vista, abre um vasto campo de atuação para esquerda, que deve investir em uma agenda de direitos para além daqueles associados ao assalariamento. Assim, as demandas por direitos previdenciários voltados aos trabalhadores da economia popular, as reivindicações por linhas de financiamento que baixem os custos do trabalho e lhes permitam realizar investimentos e a demanda urgente pela ampliação de políticas públicas de amparo a maternidade deveriam ser eixos prioritários do governo atento a garantir condições de vida digna aos trabalhadores sem-direito.
A demanda pela proteção social das e dos informais, autônomos e microempreendedores tem um enorme potencial de organização e mobilização. Embora acreditem com força que cada indivíduo tem total condições de progredir sozinho, valorizando a meritocracia individualista, em sua grande maioria as trabalhadoras e trabalhadores não rechaçam a ideia de se organizar coletivamente pelos seus direitos. Há, sem dúvida, um enorme ceticismo e mesmo receio de se organizar e agir. Mas, convenhamos, é um ceticismo justificado, dado o distanciamento que de parte da esquerda da vida cotidiana desse segmento.
Consideramos importante salientar que nossas pesquisas revelam a existência de fortes laços de solidariedade entre trabalhadores e em suas comunidades locais. Por exemplo, motoristas e entregadores contam como se ajudam mutuamente através do uso de aplicativos de trocas de mensagens. Já as trabalhadoras dos segmentos de beleza e alimentação revelam como a família e as redes de relações vicinais formam uma rede de apoio fundamental para suas atividades laborais. Reconhecer estes laços de solidariedade e redes de apoio, buscar reforçá-los e ampliar seu campo de atuação é central para a reconstrução da ação coletiva entre trabalhadores e trabalhadoras atuantes em contextos periféricos. Isso é possível, desde que as esquerdas consigam territorializar suas ações e aceitar, de fato, o protagonismo popular na formulação de soluções.
[1] Cristina Marins é antropóloga e pesquisadora do IESP/UERJ. Atualmente se dedica a escrita de seu próximo livro, “Hyperconnected and Hoping for the Best: how social media transformed informal work in Brazil”, financiado pela Fundação Wenner-Gren.
[2] Josué Medeiros é cientista político, professor da UFRJ e do PPGCS/UFRRJ. Coordenador do Observatório Político e Eleitoral (OPEL) e do Núcleo de Estudos Sobre a Democracia Brasileira (NUDEB).