Brasil: o difícil caminho da democracia

O professor e autor do livro O colapso da democracia no Brasil, Luis Felipe Miguel, analisa os ataques aos prédios dos Três Poderes da República Brasileira, em 8 de janeiro de 2023, em Brasília. Ele reflete sobre como o país chegou a esta situação.
22/03/2023
por
Luis Felipe Miguel*

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Brasilia (DF) 08/01/2023 - Golpistas invadem prédios públicos na praça dos Três Poderes. Foto: Joedson Alves/Agencia Brasil
Brasilia (DF) 08/01/2023 – Golpistas invadem prédios públicos na praça dos Três Poderes. Foto: Joedson Alves/Agencia Brasil

Quando os vândalos invadiram as sedes dos três poderes da República, no dia 8 de janeiro de 2023, uma semana após a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, confirmou-se o que muitos já temiam: o novo governo não teria vida fácil e a extrema-direita, derrotada nas urnas mas ainda forte, não desistiria de seu projeto de tumultuar a retomada da democracia no Brasil. Protegidos pela omissão ou pela cumplicidade de boa parte das forças de segurança, os entusiastas do ex-presidente Jair Bolsonaro acreditavam que estavam desferindo um golpe de Estado.

Seus mentores, muitos dos quais na ocasião estavam fora do país, também imaginavam que o ataque às sedes dos poderes podia ser o estopim para que voltassem ao poder. Nas semanas que se seguiram, foram revelados vários outros projetos de golpe, discutidos dentro do governo nos últimos meses de 2022, que tinham como objetivo anular as eleições de outubro e impedir a posse de Lula na presidência.

Não só projetos. Ações terroristas, como a sabotagem a torres de transmissão de energia elétrica, têm sido perpetradas por bolsonaristas, influenciados pelo clima de cruzada patriótica que seus líderes promovem. Uma vez que o governo Lula é apresentado como o mal absoluto (“comunista”, “contra a família”, “corrupto” etc.), tudo o que se fizer contra ele estaria moralmente justificado.

COMO O BRASIL CHEGOU A ESTE PONTO?

É importante entender como o Brasil chegou a este ponto. Durante algum tempo, o país foi considerado um exemplo razoavelmente bem sucedido de transição democrática. Depois de mais de 20 anos de ditadura empresarial-militar, em 1985 os civis retornaram ao poder e, pouco depois, foi promulgada uma Constituição que abraçava de maneira quase perfeita o ordenamento democrático liberal e, além disso, incorporava avanços importantes no campo dos direitos sociais. Quando o principal partido da esquerda, o Partido dos Trabalhadores (PT), chegou ao governo, após vencer as eleições de 2002, o Brasil mostrou ser capaz de passar no teste da alternância do poder. E as políticas sociais do PT no governo representaram o esforço – insuficiente, talvez, mas não irrelevante – de resgatar a dívida social herdada da ditadura.

Brasília (DF), 08/01/2023 - Golpistas escalam a cúpula do Senado. Foto: Joedson Alves/Agencia Brasil
Brasília (DF), 08/01/2023 – Golpistas escalam a cúpula do Senado. Foto: Joedson Alves/Agencia Brasil

A história do retrocesso é conhecida. Apesar de sua inesgotável prudência e vontade de evitar qualquer embate, o PT colocou em marcha mudanças que afetavam interesses de setores das classes dominantes. A economia brasileira é pouco dinâmica, dependente em grande medida de commodities cuja competitividade nos mercados internacionais se liga à baixa remuneração da mão de obra. As políticas de transferência de renda permitiram que trabalhadores em situação precária tivessem melhor condição de barganha diante dos patrões. E a política de valorização real do salário mínimo favoreceu aqueles integrados no mercado de trabalho formal.

As classes médias também se sentiram ameaçadas. Perderam vantagens materiais, com o encarecimento da mão de obra que lhe servia, a preço vil, nos setores de serviços pessoais e do emprego doméstico. Perderam vantagens comparativas, com o acesso dos mais pobres a espaços antes exclusivos, como o ensino superior. E perderam vantagens simbólicas, sobretudo o sentimento de distinção que a distância social em relação aos mais pobres fornecia e que, na história do Brasil, é tão central na mobilização política destas camadas.

JOGO POLÍTICO TRADICIONAL

O caminho que o PT escolheu, de enfrentamento mínimo com os grupos dominantes, implicava em se acomodar ao jogo político tradicional, baseado no toma-lá-dá-cá com parlamentares. No modelo que a ciência política brasileira chama de “presidencialismo de coalizão”, o governo garante apoio no Congresso em troca de concessão de cargos e verbas públicas. A moralidade do acerto é, para dizer o mínimo, duvidosa, o que permite que a oposição de direita mobilize o tema da corrupção para fustigar o governo, apresentando como desvio da esquerda aquilo que, no entanto, corresponde às suas próprias práticas.

O combate à corrupção foi uma das bandeiras do “antipetismo” – a oposição visceral aos governos do PT, que unificava a direita brasileira. Aliado a ele, outro eixo de pânico moral: o risco de “dissolução da família”, dado pela maior visibilidade das agendas feminista e de direitos da população LGBT. E, por fim, o discurso meritocrático, que condenava as políticas sociais como promotoras da preguiça dos mais pobres e inimigas do progresso. Quando o PT ganhou a quarta eleição presidencial seguida, no final de 2014, muitos desses setores desanimaram do processo eleitoral e passaram a cogitar uma virada de mesa. O golpe de 2016, que depôs a presidente Dilma Rousseff por meio de um impeachment sem base legal, foi o resultado.

TRAGÉDIA DA DEMOCRACIA BRASILEIRA

A extrema-direita era coadjuvante do retrocesso – mas acabou ganhando as ruas, com seu discurso mais radical, e atropelando seus parceiros mais tradicionais. Jair Bolsonaro, um ex-militar, deputado por muitos mandatos, com histórico de declarações agressivas em favor da ditadura e contra os direitos humanos, soube capitalizar o sentimento antissistema, difuso em muitos setores da população. Em passos sucessivos, ele unificou, em torno de si mesmo, os diferentes setores da direita: saudosistas do regime militar, cristãos reacionários e fundamentalistas de mercado, sem falar em monarquistas, simpatizantes neonazistas e supremacistas brancos. A tragédia da democracia brasileira pode ser resumida nisso: levados a escolher entre o neofascista Bolsonaro e um representante da esquerda moderada, a burguesia, os grandes meios de comunicação e vastos setores médios ficaram com Bolsonaro.

Os quatro anos de governo Bolsonaro foram uma tragédia social e política, agravada pela pandemia do novo coronavírus – tratada com descaso pelas autoridades e com deboche pelo presidente. Privatização desenfreada, subfinanciamento dos serviços públicos, aumento da miséria, estímulo à violência política, destruição dos órgãos dedicados a questões como proteção ambiental ou combate ao racismo, aparelhamento do Estado por grupos criminosos… O país foi devastado e, agora, a tarefa de reconstrução é gigantesca.

POR QUE OS RETROCESSOS FORAM TÃO RÁPIDOS E PROFUNDOS?

É de se perguntar por que, depois de tantos anos de redemocratização e de governos populares, os retrocessos foram tão rápidos e profundos. Há três vias de explicação, complementares. Entendê-las, extrair delas as necessárias lições, é o desafio para que a nova etapa da democracia brasileira seja mais sólida e mais duradoura.

  1. Excesso de confiança na ordem liberal. O PT se adaptou ao jogo político institucional, parecendo acreditar que ele sempre funcionaria de acordo com suas regras ostensivas. Para se manter no poder, bastava ganhar a maioria dos votos – o que seria propiciado pelas políticas sociais em benefício das massas empobrecidas. Quando a direita endureceu seus métodos, com a omissão ou a cumplicidade ativa das próprias instituições que deveriam zelar pela observância das regras, depondo uma presidente eleita e instrumentalizando o Judiciário para perseguir seus adversários, a capacidade de resposta era quase nula. Em suma: sem recuperação da capacidade de mobilização e de pressão extra-institucional, a fim de incidir na correlação de forças na sociedade, qualquer progresso será incerto.
  2. Carência de educação política. Como decorrência de sua opção preferencial pelo apaziguamento dos grupos dominantes, o PT preferiu adotar um discurso que negava ou negligenciava o conflito de classes. Os beneficiados por suas políticas eram incentivados a se ver não como trabalhadores que ganhavam dignidade, mas como uma “nova classe média”. Muitos eleitores que haviam optado pelo PT mudaram de posição por não terem condições de entender o que estava em jogo e por serem guiados por informações falsas, frequentemente visíveis. Sem educação política, a base se torna mera beneficiária de programas governamentais, em vez de participante de um projeto de mudança.
  3. Cobertura insuficiente dos direitos e das liberdades. Mesmo com avanços, o Brasil estava longe de universalizar o acesso às garantias previstas na Constituição. Para a população das periferias, para os mais pobres, para negros e indígenas, a presença do Estado toma a forma quase sempre da repressão contra eles, raras de vezes de suporte e assistência. São pessoas para quem a democracia é um slogan vazio e que, portanto, não se sentem motivadas a lutar por ela.

O presidente Lula se mostra ciente disto. Em seu discurso de posse, afirmou: “A democracia será defendida pelo povo na medida em que garantir a todos e a todas os direitos inscritos na Constituição”. É este o desafio múltiplo do novo governo, de cuja resposta depende o futuro democrático do Brasil: conter a sanha da extrema-direita, recuperar o Estado, restaurar a Constituição e expandir sua vigência para todos os grupos sociais.

Cerimônia de posse do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva no Palácio do Planalto Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Cerimônia de posse do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva no Palácio do Planalto Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
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Der schwere Weg der Demokratie
* Luis Felipe Miguel (Rio de Janeiro, 1967) é autor do livro O colapso da democracia no Brasil, editado pela Fundação Rosa Luxemburgo e pela Expressão Popular. Ele é doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor titular livre do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê). É pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). É autor, entre outros, dos livros Democracia e representação: territórios em disputa (Editora Unesp, 2014), Consenso e conflito na democracia contemporânea (Editora Unesp, 2017) e Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória (Boitempo, 2018).