Atlas dos Sistemas Alimentares do Cone Sul

Este Atlas mostra as consequências das injustiças sistêmicas que comprometem o direito à alimentação das comunidades mais marginalizadas nos países do Cone Sul. E apresenta possíveis saídas para a situação.
25/08/2022
por
Jorge Pereira Filho e Patrícia Lizarraga*
Documento disponível em espanhol

Vivemos tempos de angústia, com crises sucessivas, cada vez mais globais e intensas, que nos afetam em amplos espectros da vida social, e vivemos também um tempo de negação, de ocultação sistemática das alternativas existentes. O surgimento da fome em escala colossal no início do século XXI é sintomático dessa dualidade paralisante.

No ano em que a crise sanitária desencadeada pela Covid-19 devastou o mundo, 118 milhões de pessoas passaram a viver com fome aguda. Se fosse um país, esse contingente de homens e mulheres famintos seria o 12º mais populoso do planeta, com mais pessoas que Egito, Alemanha ou Reino Unido. Esses números, apresentados pela Organização Mundial das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), em seu relatório divulgado em 2021, dão uma visão geral da imensa calamidade em que vivemos.

Uma realidade que só vai piorar com os efeitos da guerra na Europa. No mundo, os preços dos alimentos atingiram máximos históricos em março – abril de 2022, afetando ainda mais países e populações que enfrentam enormes dificuldades devido aos efeitos da pandemia.

Esta terceira crise global de preços de alimentos em quinze anos foi alimentada pelas falhas persistentes e fragilidades subjacentes nas quais nossos sistemas alimentares se baseiam, como dependência de importações e especulação abusiva de commodities.

Neste cenário produzimos o Atlas dos Sistemas Alimentares do Cone Sul. Um contexto de aprofundamento das crises desencadeadas por um modelo econômico neoliberal incapaz de alimentar adequadamente a população, um sistema agrícola construído por megacorporações globais, baseado no mercado financeiro e no uso cada vez mais intenso de novas tecnologias, com o objetivo de extrair mais lucros em cada operação, sem que os custos sociais e ambientais sejam um problema para eles. 

Diante da impossibilidade de desenvolver economias agrárias soberanas no Cone Sul, as consequências das injustiças sistêmicas que comprometem o direito à alimentação das comunidades mais marginais são cada vez mais sentidas.  É o que demonstramos ao longo da primeira parte do Atlas, quando apresentamos as principais razões pelas quais uma região como a formada por Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai, amplamente abastecida de recursos naturais, com vastas terras agrícolas, não consegue fornecer alimentos em qualidade e quantidade suficientes para suas populações. Como se não bastasse, esses países estão presos a um sistema produtivo que destrói as florestas, polui os rios e expulsa as pessoas do campo, violando os direitos dos povos nativos.

Este Atlas também tenta apresentar possíveis saídas para a situação que enfrentamos. Ao longo dos anos, organizações populares, camponesas e indígenas da região construíram práticas solidárias de resistência e experiências sociais que apontam para outras formas de organização e reprodução da vida.

Durante a pandemia, surgiram e foram reforçados esquemas solidários de abastecimento alimentar, com a criação de redes de distribuição de alimentos saudáveis ​​a preços justos a setores da população.

Nasceram novas formas de resistência contra a captura corporativa da oferta de alimentos e nutrição por meio de refeitórios populares, cozinhas e hortas comunitárias, circuitos de comercialização mais soberanos e, sobretudo, a firme decisão de não especular sobre os preços dos alimentos. Várias dessas experiências de abastecimento já existem há muitos anos em cada um dos países, promovidas por cooperativas e organizações camponesas e articuladas com organizações urbanas. A pandemia tornou visível algo que a concentração de uma indústria oligopolista não revelava há muito tempo: que são os sistemas de produção camponês e popular que alimentam o povo, propondo alternativas para um sistema alimentar soberano.

A partir da Fundação Rosa Luxemburgo, em uma ação conjunta entre os escritórios de Buenos Aires e São Paulo, nos propusemos a olhar não apenas de forma articulada para os cinco países do Cone Sul, mas também estimular a aproximação e a troca de experiências transformadoras experiências. 

FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO

A Fundação é uma organização alemã ligada ao partido Die Linke (A Esquerda) que atua na região apoiando a formação política e os processos sociais com escritórios na África, América, Ásia, Europa e Oriente Médio.

Buscamos contribuir para a construção de uma sociedade mais democrática e igualitária, promovendo oficinas, seminários, pesquisa, reflexão e debate sobre alternativas ao capitalismo. Uma de nossas linhas de trabalho é justamente a soberania alimentar, acompanhando movimentos camponeses, ONGs e especialistas em todos os países onde atuamos.

Assim, o que buscamos mostrar é que o modelo do agronegócio não é a única forma de produzir alimentos. Por isso, apresentamos diversas estratégias de produção e abastecimento de alimentos promovidas a partir de um modelo baseado na soberania alimentar e agroecologia. Sistemas de produção que, da semente ao prato, procuram acima de tudo produzir alimentos saudáveis, soberanos a um preço justo, enquadrados em processos de solidariedade transformadora. Experiências que, além de buscarem o fortalecimento da soberania alimentar, sejam inspiração para políticas públicas que busquem garantir uma vida digna no campo e nas cidades e, sobretudo, o direito inalienável de que toda a população possa se alimentar de forma saudável. 

*Jorge Pereira Filho é coordenador de projetos da Fundação Rosa Luxemburgo – Brasil e Paraguai

*Patrícia Lizarraga é coordenadora de projetos da Fundação Rosa Luxemburgo – Cone Sul