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Evgeny Morozov e Francesca Bria são dois nomes essenciais nos círculos e movimentos que se propõem a pensar as interações entre tecnologia e sociedade de uma perspectiva crítica.
13/10/2020
por
FRL

PREFÁCIO

Evgeny Morozov e Francesca Bria são dois nomes essenciais nos círculos e movimentos que se propõem a pensar as interações entre tecnologia e sociedade de uma perspectiva crítica.
Bielo-russo, Morozov tornou-se conhecido por seus textos contrários à ideologia do Vale do Silício e às mensagens propagadas pelos evangelistas das Big Techs, modificando o modo como percebemos a influência das grandes empresas de tecnologia. Bria, italiana, tornou-se a voz mais importante do movimento de “datos comunes” ao liderar a Diretoria de Inovação Digital da cidade de Barcelona e capitanear o projeto decode, que objetiva criar um arranjo de governança comum dos dados pessoais dos cidadãos da capital da Catalunha.

A cidade inteligente – Tecnologias urbanas e democracia


Evgeny Morozov, Francesca Bria
(traduzido por Humberto do Amaral)

Ubu Editora
São Paulo, São Paulo, 2019
Páginas 192

ISBN 978 85 7126 046 7

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Aqui, Morozov e Bria propõem uma contranarrativa sobre as “smart cities”, um dos termos mais utilizados na última década na legitimação de projetos que envolvem a contratação de soluções tecnológicas pelo poder público.
Sabemos bem como é a narrativa corporativa sobre as “smart cities”, pois ela está em toda parte. Diante da “revolução digital” e do novo mundo dos dados, descritos por essa narrativa, as cidades podem agora se tornar mais limpas, seguras e funcionais por meio do uso de sensores, dispositivos responsivos e microcomputadores capazes de se comunicar pela internet. Nesse cenário de “Internet das Coisas”, bueiros seriam acoplados com sensores capazes de detectar níveis de chuva e de capacidade de escoamento. Sistemas de iluminação seriam responsivos à presença humana, promovendo eficiência energética e racionalização de recursos. Lixeiras poderiam identificar o tipo de material a ser reciclado, reprogramando sistemas de coleta seletiva. Estações de metrô poderiam contar com câmeras para detectar a posse de arma por passageiros, além de situações de perigo. Para cada uma dessas inovações, claro, governos podem contar com empresas de tecnologia.

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Como argumentado por Morozov e Bria, o “smart” (de “smart cities”) se refere a qualquer utilização avançada de tecnologia nas cidades com o objetivo de otimizar o uso de recursos, produzir novos recursos, modificar o comportamento dos usuários ou promover outros tipos de ganho em termos de flexibilidade, segurança e sustentabilidade.
Porém, o fenômeno que realmente importa é a economia política por trás desse uso da tecnologia. Para Morozov e Bria, só faz sentido iniciar uma discussão sobre cidades inteligentes se tivermos consciência da agenda neoliberal que ampara esse movimento e da estratégia de descentralização da governança nas cidades, que depende dessa crescente privatização de serviços públicos e de novas camadas de intermediação intensivas em dados.
Por essa razão, os autores iniciam o ensaio com uma explicação sobre como o discurso de austeridade é mobilizado em favor de uma pauta de descentralização e de privatização dos serviços públicos. Ao mesmo tempo, eles argumentam que gestores públicos são profundamente ignorantes quanto à existência do “extrativismo de dados” e às formas de monetização de dados pessoais a partir de infraestruturas, sensores e dispositivos utilizados no contexto de projetos de “smart cities”.
Após a crítica, o que os autores buscam é uma agenda municipalista em torno de “cidades rebeldes” e de “soberania tecnológica”. O desafio é enorme. Eles sabem que nem mesmo grandes coalizões de cidades seriam capazes de fazer frente ao poder de análise de dados de Google, ibm, Cisco e outras grandes empresas.
Por isso, defendem um conjunto de “intervenções pragmáticas” que podem suscitar boas discussões no Brasil.
Entre as intervenções em projetos de cidades inteligentes destacam-se quatro. A primeira é a possibilidade
de que contratos com empresas privadas deem ênfase ao software livre e a alternativas open source, garantindo
que os códigos sejam reutilizados, auditados e aproveitados pela comunidade. A segunda é a demonstração de que o interesse local é de fato atingido por esses projetos, evitando processos de captura por parte de agentes decisórios no nível executivo. A terceira é a possibilidade de múltiplas experimentações em escalas menores, permitindo que projetos que não gerem valor aos cidadãos sejam descartados. A quarta – e mais ousada – é a criação de regimes de governança coletiva de dados sobre pessoas, ambientes, objetos conectados, transporte e sistemas de energia. No limite, o que se defende nesse quarto ponto é a mudança do regime de propriedade dos dados, criando mecanismos jurídicos, econômicos e de governança para fortalecer o controle coletivo aos “bens comuns digitais” gerados pelos próprios cidadãos.
A ideia de governança coletiva de dados (os data commons) pode parecer distante ou utópica, mas é precisamente o que está sendo experimentado em alguns projetos-piloto como o decode, de Barcelona, financiado pela Comissão Europeia. Trata-se de uma plataforma em tecnologia blockchain que permite o registro das deliberações dos cidadãos com relação ao modo como os dados podem ser utilizados, em que condições podem ser compartilhados pelos controladores e com quais “limites de acesso”. A ideia é pensar em “nossos dados”, isto é, nos dados pessoais como recurso coletivo.
Evidentemente, a governança coletiva de dados é complexa. Como notado por Elinor Ostrom, Prêmio Nobel de Economia, a constituição de regras de governança de recursos comuns é mais problemática em grandes grupos e pode ser dificultada quando não há delimitação precisa sobre a natureza do recurso e as possibilidades de limitação de acesso, o que é justamente o caso de dados pessoais, recursos não rivais que podem ser facilmente duplicados e reutilizados. Um dos grandes debates hoje – sem resposta fácil – é a possibilidade de transposição das experiências da governança de recursos naturais para o campo dos recursos digitais, em especial dados pessoais capturados no contexto de intermediações da vida urbana.
Morozov e Bria fazem uma aposta firme e politizada nesse sentido, defendendo também a utilização de apis (interfaces de programação de aplicativos) abertas, arranjos de compartilhamento compulsório de dados e o incentivo a modelos cooperativos de provisão de serviços. Todas essas alternativas integram uma abordagem distinta sobre as cidades inteligentes. Essa é a contranarrativa.
O Brasil possui uma forte tradição de software livre e de políticas de dados abertos, oriundos de diferentes movimentos sociais e de experiências políticas e governamentais.
Ao mesmo tempo, é notável no país o movimento pela defesa de direitos digitais, que resultou no Marco Civil da Internet e na nova Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (lgpdp). O ensaio que você tem em mãos possui o potencial de aproximação dessas duas agendas, sugerindo que os direitos digitais – em especial a questão da titularidade dos dados – sejam pensados em uma estratégia de “infraestrutura comum” e de políticas abertas e locais.
Em tempos de intensificação do discurso de crise e austeridade no Brasil e de guinadas abruptas de pautas do governo federal, o ensaio de Morozov e Bria oferece inspiração para repensar as cidades e construir alianças entre movimentos sociais, tecnólogos, organizações políticas e cidadãos. Como escreveu um intelectual baiano que muito pensou nas cidades, “o mundo é formado não apenas pelo que já existe, mas pelo que pode efetivamente existir”.