Cidades sem identidade e espaços de utopia

A motorização não é algo isolado, mas sim parte de um modelo de urbanismo integral, em que, conectados pelas avenidas, estão shoppings, lanchonetes rápidas, postos de gasolina, condomínios fechados com segurança máxima e concessionárias de automóveis.
01/03/2016
por
Daniel Santini

No mesmo ritmo em que surgem projetos “extraterrestres” que destroem e modificando bairros inteiros, aparecem movimentações de resistência.

Remoção de casas no morro da Providência, no Rio, para a construção de um teleférico

Por Daniel Santini*

Existe hoje praticamente um carro licenciado para cada três moradores do Rio de Janeiro, cidade brasileira escolhida como sede das próximas Olimpíadas. Em julho de 2014, data do último levantamento oficial feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população do município era de 6.453.682 habitantes, e o número de carros registrados pelo Departamento Nacional de Trânsito era de 1.865.456, uma média de 28,9 carros para cada 100 moradores.

Em 2010, a proporção era de cerca de um carro para cada quatro moradores (população de 6.320.446 e frota de 15.65.385, com média de 24,7 carros para cada 100 moradores). O aumento da concentração de automóveis por habitantes está relacionado à história do urbanismo da cidade. Nas últimas décadas bairros foram rasgados por avenidas e nem a orla escapou. Tanto quem desembarca no Aeroporto Internacional do Galeão, quanto no Aeroporto de Santos Dumont, se depara com um conjunto de pistas que muitas vezes isolam e dificultam o acesso às praias para quem não tem carro.

As pistas que cercam o Aterro do Flamengo talvez sejam o principal exemplo; para chegar ao mar, o pedestre precisa obrigatoriamente utilizar altas passarelas, o que muitas vezes significa andar mais. Não dá para arriscar. Mesmo sendo um trecho que atravessa áreas com alto fluxo de pessoas caminhando, o limite de velocidade do conjunto de pistas é de 90 km por hora e não são raros os atropelamentos fatais.

A motorização não é algo isolado, mas sim parte de um modelo de urbanismo integral em que a diversidade é suprimida e dá lugar a um padrão de cidade global, em que, conectados pelas avenidas, estão shoppings, lanchonetes rápidas, postos de gasolina, condomínios fechados com segurança máxima e concessionárias de automóveis.

Não custa lembrar que, no Rio de Janeiro, a ampliação da infraestrutura voltada para transporte individual nas últimas décadas, que incluiu megaprojetos como a construção da Ponte Rio-Niterói, veio acompanhada de políticas de exclusão, como a remoção de favelas.

 

Modelo “extraterrestre”

Para Sandra Quintela, do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS), a reconfiguração das cidades é a expressão de um modelo de desenvolvimento “extraterrestre”, que parece imposto de cima para baixo sem nenhuma participação popular. “É o capitalismo destruindo a alma da cidade. Tudo fica limpo, pintadinho, mas sem gente”, comenta. Ela lista os megaempreendimentos realizados no Rio de Janeiro para a Copa do Mundo e as Olimpíadas acompanhados de remoções de moradores como um exemplo direto da descaracterização de bairros e modos de vida. Não faltam exemplos. Em meio ao monitoramento de políticas urbanas, o PACs tem acompanhado a situação dos pescadores do município e feito denúncias graves sobre os impactos da atuação da siderúrgica alemã Thyssen Krupp na Baía de Sepetiba. Muitos já não conseguem mais tirar seu sustento do mar, cada vez mais poluído.

A motorização e as modificações que resultam na reconfiguração das cidades estão relacionadas a um modelo de desenvolvimento baseado em consumo e posse. Em todo o Brasil as modificações seguem um padrão, com processos marcados pela ausência de participação popular, em que as identidades locais são suprimidas e qualquer chance de diversidade, eliminada. “Nada é discutido, tudo é imposto. Mesmo quando falam em participação popular, os mapas que são apresentados parecem ter sido feitos para que ninguém entenda”, reclama Maura Cristina, do Movimento Sem Teto da Bahia, referindo-se ao processo de revisão do Plano Diretor de Salvador, outra capital turística do Brasil.

O MSTB atua em defesa do direito à moradia, organizando ocupações de prédios ociosos e denunciando a desigualdade na cidade. Segundo Maura, os grandes eventos agravaram a situação no Brasil. “A cidade [Salvador] já está vendida desde a Copa do Mundo e precisam apenas legitimar os processos. Bairros inteiros são transformados e ignoram as históricas das pessoas, onde elas nasceram, vivem, trabalham. O povo não importa no fim”. Sob o pretexto de se tornarem cidades globais, as capitais estão cada vez mais parecidas, com seus arranha-céus, viadutos, pontes, avenidas e shoppings particulares. Sobra asfalto, falta vida.

 

Qualidade de vida e horizontes

No Rio de Janeiro, a motorização decorrente do crescimento da concentração de carros na cidade tem impacto direto na qualidade de vida dos moradores. O agravamento da poluição e o aumento de atropelamentos e colisões no trânsito estão entre os sintomas da deterioração da cidade. Dados do Instituto Estadual do Ambiente apontam, por exemplo, um crescimento da concentração de material particulado inalável de até 10 microgramas por metro cúbico de ar (MP10), fator relacionado a doenças respiratórias graves e outros males. Se em 2010 não houve nenhum alerta de ultrapassagem do valor mínimo estabelecido como seguro no Brasil na região metropolitana da cidade, em 2014 foram 14. Cabe destacar que o limite brasileiro é de 150 microgramas por metro cúbico, enquanto o padrão recomendado pela Organização Mundial de Saúde aponta um limite de 50 microgramas por metro cúbico. E que, desde os anos 2000, todas as medições feitas na cidade apontam uma concentração de poluentes acima do limite indicado pela OMS.

??????????????????????Artigo publicado originalmente em alemão no dossiê:
Jogos impostos – Olimpiadas no Rio de Janeiro
(Spiele von oben – Olympia in Rio de Janeiro)

Publicação feita por iz3w (Informationszentrum 3. Welt), em cooperação com Kooperation Brasilien (KoBra)
Edição 353, Março/ Abril 2016

 

No trânsito o total de mortos e feridos saltou, segundo dados do Instituto de Segurança Pública, de 20.461 em 2010 para 22.362 em 2014, tendo atingido um ápice de 23.303 em 2012. A promulgação da Lei Seca, legislação que prevê punições mais sérias para quem for flagrado dirigindo alcoolizado, está relacionada à redução do índice desde o pico. Em 2014, 573 pessoas morreram em colisões e atropelamentos, uma média de três a cada dois dias.

Se os limites do atual modelo de desenvolvimento urbano da cidade param nos congestionamentos, é pelo trânsito também que a esquerda pode começar a se reinventar e contrapor cidades sem identidade com espaços de utopia, em que diferentes modos de vida sejam possíveis. São Paulo, maior cidade do Brasil, tem feito experimentos neste sentido, com medidas de incentivo ao deslocamento de pedestres e bicicletas; sendo a mais importante a redução de limites de velocidade dos automóveis, que resultou em uma queda automática do número de mortos e feridos no trânsito.

A cidade é governada por Fernando Haddad (PT), ex-ministro do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que enfrenta críticas tanto dos setores mais conservadores quanto dos mais progressistas. A direita, indignada, reclama das restrições ao transporte individual, da abertura de ciclovias e da priorização ao transporte público, marcada pela criação de novas faixas exclusivas de ônibus. Na esquerda, muitos questionam a profundidade das mudanças apresentadas até agora e a manutenção da estrutura desigual e gentrificada da cidade, reduzindo as iniciativas à mera maquiagem, um verniz progressista em uma cidade cada vez mais entregue ao capital.

Em um cenário delicado, em que não só no Brasil, mas nos países vizinhos, políticos conservadores ganham espaço, Haddad se equilibra entre as tentativas de não desagradar a burguesia paulistana, uma das mais influentes do país, e avançar mais nas mudanças esboçadas. A falta de um projeto urbano nacional que vá além do desenvolvimentismo puro e simples atrapalha.

 

Política em trânsito

A delicada situação do prefeito da maior cidade do Brasil não deixa de ser uma metáfora da situação política do país. Em meio a graves denúncias de corrupção e ações judiciais, o PT e a presidenta Dilma Rousseff procuram manter a direção do país mesmo sem demonstrar uma proposta clara que vá além do desenvolvimentismo baseado na urbanização crescente, esvaziamento do campo e produção de produtos primários para exportação. Na composição política em meio a alianças para tentar criar uma coalizão para governar, Dilma colocou como Ministro das Cidades, pasta responsável por estabelecer a política urbana nacional, o antecessor de Haddad, o ex-prefeito Gilberto Kassab, do conservador partido PSD.

O fato de a pasta ser usada como moeda de troca é reflexo da pobreza e falta de clareza na discussão de alternativas para cidades. O modelo globalizado é tido como natural tanto pela situação quanto pela oposição, com políticos de diferentes correntes apresentando propostas comuns de privatização de áreas públicas, desapropriações de centros históricos e megaprojetos de reconfiguração espacial sem participação popular.

No mesmo ritmo em que surgem projetos “extraterrestres” que destroem e modificando bairros inteiros, aparecem movimentações de resistência. No Recife, frente à ideia de substituir uma área do porto da orla por prédios gigantes, nasceu o Ocupe Estelita, mobilização que ganhou destaque e suporte nacional por sua proposta alternativa ao “moderno” complexo comercial e habitacional. Talvez seja a partir desta resistência organizada por movimentos sociais e afetados por tais projetos, com suas perspectivas alternativas ao tal “progresso”, que a esquerda possa se reinventar em meio à crise do progressismo na América do Sul.

Espaço para novas utopias existe. Mesmo com tanto asfalto cobrindo tudo.

 

* Daniel Santini é especialista em jornalismo internacional e atua como coordenador de projetos no escritório da Fundação Rosa Luxemburgo em São Paulo.
Foto: Luiz Baltar