Nilza Valéria*
Quando criança, eu esperava ansiosa pelos dias em que íamos passear na praia ou em parques. Se ameaçasse chover, junto a meus irmãos e primos desenhávamos, com graveto, um sol no chão de terra batida do quintal. Fazíamos uma dança em torno do desenho e evocávamos a Deus para que o sol surgisse no céu e pudéssemos ir passear e brincar.
Alguém havia dito que era assim que os povos originários faziam para ter dias ensolarados. Somos uma família mestiça e, desde 1888, uma família que assumiu a fé protestante. E os elementos do sagrado dos indígenas brasileiros apareciam nas brincadeiras juvenis que fazíamos na década de 70 e 80.
Nesses anos, entre 70 e 80, os evangélicos brasileiros – como a minha família – somavam 5 ou 6% da população. O catolicismo romano era dominante, não somente em números absolutos, mas também na cultura religiosa de um país que absorveu elementos da espiritualidade indígena e dos negros – escravizados por 400 anos – que encontraram formas der resistir ao açoite evocando a presença da ancestralidade africana, em rituais de fé.
O domínio da Igreja de Roma, inclusive, fazia com que os adeptos das religiões de matriz africana fossem contabilizados no contingente de católicos romanos. O Estado não reconhecia a expressão religiosa de matriz africana e as expressões dos indígenas se tornaram folclóricas. Como crianças dançando em torno do sol rabiscado no chão, emitindo sons, como se fossem os personagens desnudos da National Geographic.
Na minha infância, os passeios nunca eram aos domingos. Eram aos sábados e feriados, pois o domingo era dia de ir à igreja. Para um grupo minoritário, que eram os evangélicos na época, ir à igreja era fundamental. Bem como, ter elementos que se distinguiam dos católicos – que já assimilavam ter um pertencimento não praticante. Com isso, havia um rigor imposto aos crentes – de fazer diferença tanto na vida pessoal, quanto comunitária. É o testemunho – o bom comportamento, a compostura, a cordialidade, a moral ilibada – que marcará a distinção e delimitará os espaços dos evangélicos.
Crescimento de evangélicos no Brasil
A partir dos anos 90, o número de católicos começou a diminuir cerca de 10% por década. Em 1991, os católicos eram 83% dos brasileiros. Os evangélicos saltaram para 9%. Em 2000, os católicos chegaram a 73%. E os evangélicos, 15% da população. Os de outras religiões – inclusive se desvinculando dos católicos – eram 3.5% e cresce os que se declaram sem religião: pouco mais de 7%.
As crianças da década de 90 já não brincam mais com o Deus do sol ou da chuva. A transição religiosa que se iniciou foi, lentamente, transformando as bases da cultura popular que sustenta o modo de vida do brasileiro.
Entre 2000 e 2010,se dá o crescimento dos evangélicos brasileiros, sendo – inclusive – o segmento que mais cresceu. Em 2000, eram 15.4% da população. Em 2010, o número foi para 22.2%, mais de 42 milhões de pessoas. Apesar de ainda não terem sido divulgados os dados sobre religiosidade coletados em 2022, a estimativa é que 30% dos brasileiros tenham se declarado evangélicos, pelo menos.
O fato, independente do número, é que o crescimento de evangélicos no Brasil já provocou mudanças significativas na cultura, fazendo inferências no modo de vida e na maneira dos brasileiros se relacionarem. Inclusive, na política.
Que o Brasil é um país religioso – não há dúvidas. O catolicismo português que chegou aqui se fundiu com os elementos indígenas e negros – as brincadeiras infantis não me deixam mentir – e deram espaço para uma mescla de dogmas, ritos e superstições. No meio desse caldo, o protestantismo europeu, popularizado nos Estados Unidos, chega pequeno e cresce. Interfere no modo de vida, mas não muda, ainda, o fato de o Brasil continuar sendo um país de maioria católica, apesar do declínio acentuado da população católica.
Bancada Evangélica
É nos anos 90 que se começa a falar da Bancada Evangélica no Congresso Nacional. Deputados eleitos que se declaram evangélicos, alguns deles assumindo o espaço público para a defesa de princípios e interesses de seus pertencimentos religiosos. Ainda que muito barulhenta, a chamada Bancada Evangélica está distante de representar a multiplicidade do pensamento e da cultura dos evangélicos, que, nem de longe, são um único grupo coeso em práticas e posicionamentos.
Compreender a diversidade denominada como evangélicos é essencial para interagir com as transformações que se estabelecem na cultura e, claro, no espaço público e político. Por isso, há afirmações necessárias, sendo a primeira que nenhuma pessoa é somente evangélica. Ser crente faz parte da identidade de uma pessoa, é o seu direito de ter crença – e isso não é limitante.
Eu, por exemplo, sou uma mulher negra – o que impacta profundamente a forma que existo e pratico a minha profissão, a maternidade, me atravessa como consumidora e, óbvio, a minha fé como protestante. Ainda que a Bíblia seja o livro comum a todos os evangélicos – e católicos – as minhas múltiplas identidades dão pesos distintos ao que leio e como vivencio meus princípios.
Outra afirmação que, precisa ser desfeita e não feita, é a de que os evangélicos são manipulados. As esquerdas e o campo progressista necessita parar com a leitura simplista e infantil que crentes não são donos de sua própria história. E, que evangélicos – por exemplo – fazem o que o pastor manda. Essa certeza é tão arrogante que não consegue perceber a negativa da autonomia aos pobres. Sim, aos pobres. É entre os pobres e negros, sobretudo mulheres pretas – que se dá o crescimento evangélico no Brasil.
Não por ser o povo que tem necessidade e encontra na igreja o que o Estado não dá. É mais do que acolhimento, é mais que pertencimento. Instrumentalizar essa crença é negar a própria humanidade de quem se declara crente. É negar histórias pessoais, é negar superações, é diminuir conquistas coletivas, comunitárias.
A Bancada Evangélica defende interesses pontuais, além de não representar a totalidade dos 30% dos que se declaram evangélicos no Brasil. A conta é fácil de fazer: não há, sequer, um terço do número total de deputados e senadores que se declaram como evangélicos. Daí temos a terceira afirmativa: é dentro do período de estabilidade democrática que se dá o arranque do crescimento dos evangélicos no Brasil, pontuando de 1992 até 2016. A fé evangélica é uma fé que necessita da democracia, é a fé da escolha. Destrinchar essa certeza é provocar os crentes a se comprometer com os valores democráticos, com a garantia dos direitos constitucionais e internacionais, além da construção de um país mais justo, mais igualitário, mais sustentável e menos violento.
Pautas Conservadoras
Fazem parecer que as pautas conservadoras são exclusivas dos evangélicos, no Brasil. Como temos visto, graças ao mundo globalizado e acessível na palma da mão, essas pautas não são – sequer – exclusivas do Brasil. Nem de grupos religiosos. Debates sobre gênero, aborto, aquecimento global, drogas, migração e armamento, por exemplos, dividem as mais diversas sociedades, sendo debates complexos para além da religiosidade.
Em países – ou sociedades – pós-cristãs persiste a divisão entre conservadores e não conservadores, liberais e não liberais. Faz sentido dizer que a onda reacionária que varreu, recentemente, a Holanda se deu por causa dos evangélicos? Há anos os templos protestantes por lá viraram outras coisas, até bares. E Milei, na Argentina, quem sustenta seu voto? Os evangélicos seguem sendo minoria no país vizinho.
Em 2017, criamos a Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, um movimento surgido quando a democracia sofreu um golpe, interrompendo o mandato da presidente Dilma Rousseff. Naquele momento, a Bancada Evangélica foi superdimensionada – tanto pelos seus integrantes quanto pela imprensa – anunciando que a deposição de Dilma era a vontade do povo de Deus.
A Frente surge como uma reação de que ninguém, nem nada, pode falar em nome dos evangélicos. Como já foi dito, esse pertencimento é repleto de variáveis. Massificar esse grupo serve para atender a interesses espúrios – como foi no caso do impeachment de Dilma. Consolidado o golpe, coube ao movimento promover diálogos sobre a importância da democracia, inclusive destacando nos textos bíblicos a orientação sobre decisões compartilhadas por todos ao ser instituída a igreja primeira. Também se destacou uma intrínseca relação entre os direitos constitucionais, os direitos humanos, a dignidade dos mais pobres e vulneráveis e o Deus encarnado.
A pandemia da Covid-19 foi um novo desafio para o movimento. Assim como na campanha eleitoral que elegeu Bolsonaro presidente do Brasil, a estratégia de uso das redes sociais e o envio de conteúdos falsos (fake news) em grupos de mensagens de milhares de igrejas, gerando desinformação. Vale ressaltar que as mensagens que fomentaram a desinformação e o descrédito nas ciências não foram exclusividade dos grupos de igrejas. Do mesmo modo que temas como aborto, drogas, gênero e armas dividem a sociedade, as posições quanto a uso de máscaras, vacina e cuidados sanitários geraram torcidas. Nesse caso é a Ciência que está no centro do debate, não a fé. É o Governo Bolsonaro, avesso ao desenvolvimento que a Ciência pode promover na dignidade humana, promovendo a morte.
Nesse contexto surge, produzido pela Frente de Evangélicos, o programa de rádio Papo de Crente, para cooperar com o processo civilizatório – onde vacinas e medidas sanitárias são essenciais para a manutenção da vida. O programa, um meio de fazer formação social e política para quem o ouve, pode apontar caminhos para ampliar o diálogo com 30% dos brasileiros. Isso está dito no relatório analítico de seis grupos focais realizados com evangélicos – ouvintes e não ouvintes do programa.O relatório, que pode ser acessado em https://www.opelbrasil.com/_files/ugd/f93c11_a99b38f1131542bdafb4b20d30bdc3ee.pdf confirma as certezas aqui expostas e sobretudo que estamos falando de pessoas, essencialmente humanas, atravessadas pela dinâmica da vida – assim como você que leu até aqui.
*Nilza Valéria coordenadora da Frente Evangélica pelo Estado de Direito.