Da Geografia da fome à Soberania Alimentar

No artigo, a historiadora Denise de Sordi discute o projeto das Cozinhas Solidárias e o direito à alimentação no campo e na cidade a partir do pensamento do geógrafo Josué de Castro
13/09/2023
por
Denise De Sordi

Cozinhas Solidárias e o Direito à Alimentação no campo e na cidade

Cozinha Solidária na Sé, São Paulo – MTST

No aniversário de 50 anos da morte do pernambucano Josué de Castro, somam-se rememorações em torno da atuação deste geógrafo, escritor, sociólogo e político engajado com o combate à fome no Brasil. Nos últimos quatro anos, sua obra foi instrumento de ação para acadêmicos, militantes e por todos que se mobilizam na defesa da democracia e de uma sociedade mais justa.

Houve a retomada intensa do uso de sua imagem, de sua história e do simbolismo de seu célebre livro Geografia da Fome, publicado em 1946, sem o qual, a denúncia da fome, muito provavelmente, demoraria mais para ser tomada como um dos elementos centrais das questões sociais brasileiras. Com o subtítulo o dilema brasileiro: pão ou aço, o autor investigou os rumos do desenvolvimento econômico no Brasil daquele período.

Josué de Castro apresentou a perspectiva pioneira de que a fome é um produto da forma pela qual as sociedades são organizadas, mais especificamente, das ações e escolhas daqueles que organizam determinada sociedade. O geógrafo contribuiu para a abertura de debates sobre as questões sociais brasileiras de forma ampliada, considerando não só a disponibilidade de alimentos, mas de terra, renda, condições habitacionais e vida.

Tais debates, confluíram com a agitação social da classe trabalhadora que lutava por melhores condições de vida. E desaguaram na progressiva conquista de mínimos existenciais garantidos pelo Estado – ainda que em meio a um cenário de antagonismos e conflitos sociais demarcados pelo quadro social do pós-guerra. 

ECONOMIA DA FOME E O INTERESSE DAS MINORIAS

O autor sublinhou a fome como um tabu que ainda não havia sido desvendado. E a identificou como temática configurada “ao lado dos preconceitos morais”, com tratamento ligado aos “interesses econômicos das minorias dominantes. Isso pela a produção, a distribuição e o consumo dos produtos alimentares serem vistos como fenômenos exclusivamente econômicos, e não como fatos intimamente ligados aos interesses da saúde pública”.

Os quinze anos de estudos que compuseram o livro Geografia da fome o permitiram não só comprovar seu ponto, como também tomar o próprio Brasil como o “verdadeiro laboratório de pesquisa social deste problema”. Neste laboratório, tal como indicou o autor, abundam exemplos de recursos e hábitos alimentares que se tornam modelos para se pensar a persistência da fome em toda a parte, mesmo naquelas onde não falta o alimento, mas sim as condições para adquiri-lo.

Se a fome não é natural, mas decorrente de fenômenos sociais que estruturam as sociedades, não é exagero estender o símbolo do autor e sua obra para a leitura de um chamado à ação. Este movimento permite notar que, no Brasil do século XXI, o caráter laboratorial evidencia problemas e conflitos sociais muito próximos daqueles que marcaram a escrita do livro – que, sim, foram minorados desde a redemocratização do país em 1988, mas nunca sanados, pois são parte estruturante das particularidades do capitalismo no país.

Tais problemas se agudizaram a partir de políticas ultraneoliberais, configurando um ciclo de espalhamento da pobreza e da fome que caracteriza os anos entre 2016 e 2022. Neste cenário, não só a evocação do autor é um chamado à ação, mas também foi a própria ação de movimentos sociais campesinos e urbanos historicamente consolidados que tem nos oferecido uma perspectiva de mudança de horizonte social. 

A ação mobilizadora e popular dos movimentos sociais urbanos e campesinos demarca estes anos, sendo responsável não só por segurar o que ainda restava da democracia brasileira sob o governo de Jair M. Bolsonaro (Partido Liberal, PL), mas também por evocar a memória e experiências sociais que delineiam a expressão mais severa da pobreza: a fome. Enquanto condição vivida, a fome impulsionou a elaboração de uma nova gramática social de disputa do espaço público, composta de panelas vazias, ossos, bandeiras e gritos de ordem amalgamados pela Solidariedade Social enquanto um valor de mundo e projeto de sociedade.

COZINHAS SOLIDÁRIAS E O COMBATE À FOME

Cozinhas Solidárias, geridas pelos movimentos sociais, emergiram como uma das formas de organização popular e de defesa da Soberania Alimentar, sob o argumento de que estavam “fazendo o que o governo não faz”. As ações contaram com o acúmulo de experiências das lutas e mobilizações populares e com a formulação de engenharias de urgência desenvolvidas frente ao cenário onde 33,1 milhões de trabalhadores estavam em condição de fome, mais acentuadamente, entre os anos de 2021 e 2022.

Apesar da prática de distribuição de alimentos ser recorrente na história brasileira, o surgimento das Cozinhas Solidárias é uma novidade no processo histórico de formulação dos programas e políticas de combate à fome no país por sua abrangência, regularidade, capacidade de territorialização e construção de redes entre o campo e a cidade.

O projeto tem origem na ação homônima do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e inspirou a formulação da lei, da autoria do deputado Guilherme Boulos (Partido Socialismo e Liberdade, PSOL), que instituiu o Programa Nacional Cozinha Solidária (PNCS), no interior do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), sendo este último, também uma conquista dos movimentos sociais campesinos.       

A novidade do projeto do MTST foi ter criado as condições para que os movimentos urbanos e campesinos unissem parte importante de suas pautas na chave da Soberania Alimentar –  tomando o termo a partir de sua concepção forjada na década de 1990 pelos movimentos sociais organizados na Via Campesina – e em referência à necessidade de se integrar o circuito da produção e distribuição de alimentos no debate sobre Segurança Alimentar e Nutricional.

A EMERGÊNCIA DA FOME E O CHAMADO À AÇÃO

O projeto das Cozinhas Solidárias surge a partir do cenário de fome, extremado no retrato dilacerante do “garimpo dos ossos”  que se espalhou pelo país, quando com centenas de famílias de trabalhadores reviraram caçambas de lixo e de descartes de açougues, até então direcionados à produção de ração animal, para se alimentarem.

Na ocasião, militantes de movimentos sociais urbanos e campesinos conseguiram transformar o que foi criado “à quente”, na emergência da condição de fome, em uma nova forma de mobilização, colocando em prática o princípio da Soberania Alimentar.  Compreendendo, portanto, que a alimentação é um ato político e que assim deve ser disputada em sua totalidade, através da criação de formas de valorização da produção campesina, de abastecimento e consumo diretos que priorizem a capacidade de reprodução da vida.   

Os trabalhadores do campo e das cidades foram duramente afetados pelo ciclo de desmanche mencionado. Este processo rapidamente se tornou palpável para os movimentos sociais. O empobrecimento atingiu mais rapidamente a parcela de trabalhadores que, nos governos petistas, entre 2003 e meados de 2015, foram beneficiados por políticas de garantia de mínimos existenciais e de acesso aos Direitos Sociais.

A GEOGRAFIA DA FOME PERSISTE

Diante da desregulamentação do trabalho promovida por Michel Temer (presidente entre 2016 e 2018 pelo MDB) e ao apagão do conjunto de políticas de combate à pobreza e à fome promovido pelo governo de Bolsonaro (entre 2018 e 2022), o horizonte de expectativas por algum tipo de mobilidade social, se esvaiu, dando lugar ao retorno da pobreza e da fome.

Entre 2021 e 2022, de acordo com dados da Rede Brasileira de Pesquisa sem Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), o alerta de que “a geografia da fome persiste” indicou que mais da metade da população brasileira (58,7%, contra 36,7% em 2018) convivia com algum grau de insegurança alimentar, atingindo 60% dos domicílios das áreas rurais e 21,8% dos pequenos agricultores familiares. Tais números indicam não só a corrosão de patamares de sobrevivência, mas também a qualidade da democracia no país no período.

Os movimentos sociais, por seu contato direto com a realidade, compreenderam esse último elemento muito mais rapidamente que todos nós. Nas cidades, notaram o empobrecimento acelerado no interior de territórios considerados periféricos, com o surgimento incomum da população em situação de rua – característica das regiões centrais das grandes cidades brasileiras – nas periferias, o aumento das filas de distribuição de alimentos e do desemprego no interior das ocupações urbanas.

CAMPO E CIDADE POR SEGURANÇA ALIMENTAR

Cozinha Solidária do Jd. Damasceno, na Zona Norte de São Paulo  - Foto: MTST
Cozinha Solidária do Jd. Damasceno, na Zona Norte de São Paulo – Foto: MTST

Ainda em 2021, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) iniciou campanhas para a distribuição de cestas básicas, mas os trabalhadores não tinham recursos para cozinhar os alimentos – um botijão de gás chegou a R$ 160,00, ou 13,2% do salário mínimo do período. Assim, de forma lastreada na experiência das cozinhas coletivas, coração das ocupações urbanas do MTST, promoveram a abertura de Cozinhas Solidárias por todo o país para a distribuição de refeições gratuitas e, sempre que possível, produzidas com alimentos fornecidos pelas famílias campesinas organizadas no Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), complementados com hortas construídas nas comunidades receptoras das cozinhas.

O projeto das Cozinhas Solidárias do MTST estrutura-se a partir de três eixos que permaneceram difusos no tempo entre os anos de 2016 e 2021, mas que amadureceram frente à condições específicas de intensificação dos antagonismos de classe e de corrosão da democracia no país:

  • a insuficiência da ação de distribuição de alimentos em cestas básicas;
  • o intercâmbio de experiências com militantes argentinos com seus comedores populares; e
  • a impossibilidade de levar adiante a luta por moradia frente ao aumento da violência territorial, do empobrecimento dos trabalhadores e da fome.

Este último é um elemento importante para localizar o que foi – e é – a experiência das Cozinhas Solidárias na dimensão da mobilização popular do MTST por “Teto, trabalho e pão”, e o que elas podem ser, no âmbito da política pública enquanto Equipamentos de Segurança Alimentar e Nutricional (EPSAN). A importância está no fato de as Cozinhas Solidárias adquirirem relevo e sentido porque se fincam nas lutas territoriais inter-relacionadas por melhores condições de vida e pelos direitos do trabalho e de cidadania.

Este é um elemento que permite evidenciar não só a construção da possibilidade das redes entre campo e cidade, mas também o que há de novo, revelando, por contraste, porque experiências semelhantes, tais como as cozinhas comunitárias, geridas pelo terceiro setor, não encontraram a mesma potência política. Nelas não há projeto de sociedade e visão de mundo que as colore, a distribuição de alimentos é a finalidade e, em geral, suas práticas estão ancoradas em experiências heterogêneas derivadas de experiências institucionalizadas de distribuição de alimentos ao longo dos anos de 1990. Portanto, mudar as estruturas que produzem e reproduzem a fome para a garantia de “teto, pão e trabalho”, não necessariamente está na ordem do dia. Ter esses elementos em vista, em momento de disputa pela regulamentação da política pública, significa escolher um “Norte” em meio a esta Geografia da fome, por tanto tempo, navegada em círculos no Brasil.

AÇÃO POPULAR E COLETIVA X AÇÃO INDIVIDUAL EFÊMERA

A Solidariedade, indicada no nome do projeto e do PNCS, se apresenta como mapa histórico, retomando seu sentido universal, coletivo e de ação popular, em oposição à solidariedade neoliberal, caracterizada pelo chamado à consciência e à ação individual efêmera. A experiência das Cozinhas Solidárias reuniu reivindicações dos movimentos sociais do campo e da cidade. Com isso, articulações e mobilizações, antes difusas, alargaram as possibilidades de avanços a partir do entendimento de que o Direito à Alimentação é inviabilizado desde o início se não há luta e se não estão garantidos os direitos à moradia, à saúde, ao trabalho, à terra, à renda e à educação.

Como garantir Segurança Alimentar e Nutricional em ocupações urbanas? Em áreas sem saneamento? Aos camponeses que produzem alimentos, mas que não escapam da fome devido aos circuitos comerciais impostos pelo agronegócio? A Soberania Alimentar abre a janela histórica por meio da qual a soberania dos territórios pode também ser pensada.

Se considerarmos que em 2014 o Brasil foi retirado do Mapa da Fome (FAO), parece razoável supor que o impacto geracional do desmonte do ciclo entre 2016 e 2022 e seu tempo de conversão ainda precisarão ser medidos. Entretanto, cabe nos atentarmos para o que as lutas populares evidenciaram: sem a organização e a participação popular na disputa pelo Estado e sem sua presença na esfera pública, avanços que parecem sólidos, só estarão na superfície. O desafio parece ser não perder de vista que a atualidade da Geografia da fome só faz sentido se retirada do campo do simbólico e da lembrança – representada por uma história que se quer estática e inspiracional – e de que a “fome” é condição histórica, ou seja, socialmente vivida e determinada, dinâmica, experienciada e sentida e se dá em meio a um processo social ampliado. A “fome” por si mesma não pode ser nosso Norte de ação, seu combate demanda a ação humana, a geografia – e se me permitem – a história.


Denise De Sordi é historiadora e doutora em História Social, pesquisadora do Programa de pós-doutorado em Sociologia da FFLCH/USP e pesquisadora colaboradora da VPAAPS/Fiocruz. Especialista em políticas e programas sociais de combate à pobreza e à fome e nas relações entre movimentos sociais e Estado no Brasil contemporâneo. Desde 2020 se dedica a pesquisas que analisam a emergência das Cozinhas Solidárias e Comunitárias enquanto formas de mobilização social que têm revitalizado a esfera pública brasileira.