Direito à mobilidade em ambos os lados do Atlântico: O Brasil antes das eleições presidenciais

Para alcançar justiça social e proteção climática, precisamos de uma mobilidade solidária que se afaste do transporte individual motorizado e se aproxime do transporte público em propriedade pública.
05/09/2022
por
Manuela Kropp
Ônibus Tarifa Zero, em Caeté, Brasil. Foto: Daniel Santini

Na Alemanha, agora, todos estão falando sobre o ticket que permite o uso do transporte público local (ÖPNV) em todo o país por apenas 9 euros por mês. Entretanto, apesar de ter feito grande sucesso, o governo alemão ainda não apresentou um projeto de acompanhamento, e, sendo assim, o 9-Euro-Ticket expirará no final de agosto deste ano.

Mais de 30 milhões de pessoas (cerca de 40% da população) na Alemanha apoiaram esta proposta e isto mostra quão grande é a necessidade de mobilidade e o quão importante é o direito à mobilidade  especialmente, tendo em vista a crise econômica com o aumento do custo de vida.

Embora o 9-Euro-Ticket tenha reduzido apenas um pouco o tráfego de automóveis, este ticket abriu uma janela de oportunidade para que fosse discutida a conexão entre a proteção climática e a justiça social: Um ticket de transporte público acessível permite a participação social para todos e dá uma importante contribuição para a proteção do clima e para a luta contra a pobreza.

Na campanha  “prosseguir com o 9-Euro Ticket“ Attac Germany, Changing Cities e o concept work New Economy, dentre outros, pedem pela continuação da proposta do bilhete de 9 euros, pela expansão do transporte público e pela garantia de melhores condições de trabalho para os trabalhadores. O DIE LINKE também exige uma solução de acompanhamento para o 9-Euro-Ticket e propõe a abolição dos incentivos fiscais para carros da empresa (privilégio do carro da empresa) como contra-financiamento.

Isso economizaria dois bilhões de euros por ano desse subsídio, o qual é prejudicial ao clima e também que é socialmente injusto e passaria a ser utilizado para uma mobilidade ecológica.  A Agência Federal do Meio Ambiente estima que os subsídios que são prejudiciais ao meio ambiente no setor de transportes na Alemanha custam cerca de 30 milhões de euros por ano.

O bilhete de 9 euros custaria 10 bilhões de euros em um ano, e, portanto, em comparação, teria um melhor custo benefício.  A Federação Sindical Alemã  de Baden-Württemberg pede um fundo público a nível federal para criar uma solução que suceda o 9-Euro-Ticket.

MOVIMENTO PASSE LIVRE E TARIFA ZERO NO BRASIL

A discussão sobre transporte público acessível ou mesmo gratuito desempenha um papel importante não apenas na Alemanha e na UE, mas também no Brasil. As próximas eleições presidenciais serão realizadas no dia 2 de outubro de 2022, com uma disputa acirrada entre o atual presidente de extrema-direita, Jair Bolsonaro, e o candidato do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio Lula da Silva.

Em 2013, o movimento pelo transporte público gratuito no Brasil (Movimento Passe Livre e Tarifa Zero) se tornou um movimento impactante à medida que milhares de pessoas foram às ruas contra o aumento das tarifas de ônibus. A polícia brasileira fez uso de violência contra os manifestantes, entretanto, isso não os dissuadiu, e mobilizou trabalhadores e famílias para se juntarem aos protestos também.[1]

No momento, a tarifa zero no Brasil só pode ser financiada a nível municipal de modo que a demanda justificada é feita repetidamente para a mesma seja feita também a nível federal, a fim de garantir o financiamento. Mais de 45 municípios no Brasil possuem agora transporte público gratuito e, com o aumento do custo de vida, sua expansão está se tornando algo cada vez mais urgente. 10% da renda disponível teria que ser gasta por famílias de classe média no Brasil em mobilidade, como explicou o Senador Paulo Paim (Partido dos Trabalhadores PT) na recente conferência da Fundação Rosa Luxemburgo no Brasil.

Uma emenda constitucional na Constituição brasileira deixa claro que o transporte e a mobilidade são um direito social, mas na maioria das regiões do Brasil, o transporte público simplesmente não é acessível para pessoas com uma renda convencional. Por outro lado: se você for pego sem bilhete, enfrentará 90 dias de prisão, como explicou Lucio Gregori, ex-secretário municipal de Transportes de São Paulo (PT).

Em uma cidade como São Paulo com cerca de 20 milhões de habitantes, 70% do espaço público é reservado para carros – uma desproporção flagrante que precisa ser corrigida urgentemente, tornando as vagas de estacionamento mais caras e “tornando a cidade mais cara” para carros grandes e pesados.

Se as tarifas zero fossem introduzidas em São Paulo, o número de passageiros do transporte público poderia triplicar– garantindo o direito à cidade para todos em São Paulo. Lucio Gregori pediu que o nível federal contribuísse para os custos de transporte regional a fim de distribuir melhor os custos de uma tarifa zero – por exemplo, o nível federal poderia introduzir um imposto sobre carros.

CARRO E MOTOCICLETA COMO QUESTÃO DE SOBREVIVÊNCIA

Mas a tendência no Brasil nos últimos anos infelizmente tem tomado uma outra direção: mesmo antes da pandemia do Corona vírus, o número de passageiros no transporte público havia caído, as linhas de ônibus foram cortadas, os bairros das cidades foram cortados do transporte público e as frequências foram diminuídas, o que os tornou menos atraentes. Assim, comprar um carro, ou uma motocicleta torna-se uma questão de sobrevivência, pois  milhões de pessoas no Brasil não teriam outra forma de  chegar ao seu local de trabalho, muito menos de visitar família e amigos.

Um ativista colocou em poucas palavras: a luta de classes se expressa na organização e divisão socioespacial da cidade, para que os compradores de motocicletas não sejam privilegiados, mas sim forçados a recorrerem a este meio de transporte. Outro ativista descreveu como os negros no Brasil precisavam de uma motocicleta porque muitas vezes, os motoristas de ônibus não paravam quando os negros, por exemplo people of colour ou as pessoas com deficiência pediam parada.

Iza Lourença, vereadora em Belo Horizonte, descreveu como a situação havia piorado sob o regime de Bolsonaro: durante anos havia uma tarifa barata para usar o trem leve de Belo Horizonte para que as pessoas pudessem se deslocar na cidade. Mas os recentes aumentos das tarifas de trens leves reduziram o número de passageiros em 400.000, e a privatização do transporte ferroviário significa que o colapso do sistema de transporte do Brasil é iminente.

ÊXITOS NO BRASIL E NA ALEMANHA

Os êxitos dos municípios, que foram discutidos durante a conferência, são ainda mais gratificantes: Por exemplo, o conselho municipal de Caeté (província de Minas Gerais) explicou como dois por cento do orçamento da cidade era suficiente para operar oito linhas de ônibus a tarifa zero, em propriedade pública, e aumentar o número de passageiros de 15.000 antes para 78.000 hoje.

Na cidade de Marica (província de Rio de Janeiro), os famosos e muito populares ônibus vermelhos gratuitos foram introduzidos em 2015: Os ônibus e os funcionários pertencem à cidade desde que o contrato de concessão foi rescindido. O número de linhas de ônibus aumentou para 21, o número de funcionários também aumentou e hoje a empresa de ônibus pode registrar três milhões de viagens por mês – um efeito extremamente positivo para as pessoas e para a cidade. E, claro, os ônibus são confortavelmente equipados: Ar condicionado e WIFI são padrão.

Detlef Tabbert, prefeito (DIE LINKE) da cidade alemã de Templin, também relatou a enorme resposta ao passe anual de transporte público, que custa apenas 44 euros por ano: cinco por cento do orçamento da cidade foi destinado ao transporte público a fim de reduzir o impacto ambiental sobre os residentes, tornar a cidade mais atraente para os turistas e melhorar a mobilidade da população.

A introdução do passe anual de 44 euros aumentou em dez vezes o número de passageiros do transporte público de 40.000 para 400.000. A fim de envolver os cidadãos locais no planejamento do transporte, uma reunião de cidadãos é realizada uma vez por ano, onde as ideias podem ser apresentadas – um grande ganho em democracia e aceitação entre a população.

MOBILIDADE BASEADA NA SOLIDARIEDADE

E assim fica claro que uma mobilidade solidária em ambos os lados do Atlântico requer a remoção de subsídios para a indústria automobilística, o financiamento de um sistema de transporte público bem desenvolvido e acessível a nível federal, bem como sua expansão por todo o país. Além disso, é necessário envolver democraticamente os cidadãos dos diferentes distritos ou regiões e os usuários do transporte público no planejamento do transporte para que suas preocupações sejam ouvidas.

A fim de alcançar justiça social e proteção climática, precisamos de uma mobilidade solidária que se afaste do transporte individual motorizado e se aproxime do transporte público em propriedade pública. O último estudo da Attac  (e outros)[2] mostra quanta influência a indústria automobilística de ambos os lados do Atlântico teve no texto planejado do acordo comercial UE-Mercosul para garantir mercados de vendas e cadeias de suprimentos.

Temos que mudar de rumo aqui: construindo uma indústria européia (ver o estudo “Spurwechsel“) e brasileira de mobilidade (veja “The Need for Transformation“) para a produção de ônibus e veículos ferroviários e expandindo o transporte público, acessível para todos e de preferência gratuito. Para que o o direito à cidade,, das o direito à mobilidade e à vida dentro dos limites planetários possa se tornar uma realidade para todos.

Palavras-chave: Mobilidade turnaround, turnaround do transporte, indústria da mobilidade, tarifa zero, transporte público, Brasil


[1] Daniel Santini, Do Sonho de 2013 ao Pesadelo da Uberização, em: Michael Brie/Judith Dellheim, Zero Tarifa, Hamburgo 2020

[2] O acordo UE-Mercosul e a indústria automobilística, junho de 2022

* Manuela Kropp é Gerente de Projetos Rosa Luxemburgo Fundação Bruxelas

Leia o texto em inglês:

Right to mobility on both sides of the Atlantic: Brazil in the run-up to the presidential elections