Desafios para a questão dos povos indígenas no atual contexto no Brasil
A luta e a resistência dos povos indígenas do Brasil, a partir de seus territórios, mostrou nestes últimos anos uma grande capacidade política diante dos desafios postos pelo avanço das fronteiras econômicas do capital e pela erosão das instituições do Estado e da própria convivência no país.
O período entre os anos 2019 e 2022, marcado pela chegada ao governo de um projeto de poder de extrema-direita com apoio de militares, fundamentalistas e setores econômicos como o agronegócio, foi, sem dúvida, o momento de maior ofensiva contra os direitos dos povos indígenas e de maior assédio a seus territórios e a suas formas de vida. A determinação do governo federal, neste período, de paralisar todos os processos de demarcação, abandonar as medidas de proteção territorial e avançar em uma desconstitucionalização dos direitos conquistados teve como resultado evidente o aumento da violência contra os povos indígenas.
ALGO SE ROMPEU NO PAÍS
Entretanto, é preciso fazer um destaque singular na análise do que tem acontecido nos últimos anos para compreender o processo desgarrador que foi constituído. A partir de 2016, após o golpe contra a ex-presidente Dilma Rousseff (Partido dos Trabalhadores), algo se rompeu no país, com um deterioro e ataque persistente às instituições da democracia liberal.
Na semântica da análise política, foi preciso retomar e ressignificar palavras, como golpe, genocídio ou fascismo, para conseguir explicar o que estava acontecendo. Longe da metáfora reducionista e desfocada de uma eventual polarização entre dois projetos políticos extremos, adotada pela grande mídia convencional, estávamos diante de um processo de desgarro e de necropolítica, expressão própria do fascismo, em cumplicidade com uma nova fase de expansão do capital sobre os territórios.
É nesse contexto extremamente desafiador para todo o país que os povos indígenas mantiveram uma intensa mobilização, a partir de seus territórios, no âmbito nacional e internacionalmente. Permeado por uma genuína criatividade política e força ética, o movimento indígena configurou-se como o segmento social mais ativo e organizado na defesa dos direitos fundamentais e no enfrentamento do autoritarismo e da violência.
DA NOITE ESCURA AO NOVO MOMENTO: OPORTUNIDADES E ENCRUZILHADAS
As eleições de outubro de 2022 foram, provavelmente, as mais relevantes desde a redemocratização do país. O Congresso Nacional eleito nas urnas continua tendo uma composição conservadora e reacionária, com ampliação da base da direita e da extrema-direita, mas as eleições resultaram na derrubada do fascismo das instituições do governo federal, abrindo-se um novo momento e um novo espaço que gerou muitas expectativas. O “novo”, neste caso, deve ser entendido com relação à realidade de ruptura ética do sentido da política e do Estado vivenciada nos últimos anos; fora disso, ele chega permeado ainda de velhas contradições.
Do ponto de vista da política indigenista, destaca a criação do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), espaço inédito dentro do poder executivo federal. O MPI trouxe para si as principais atribuições em matéria de garantia de direitos territoriais dos povos indígenas e emerge, inicialmente, como um espaço de articulação e promoção dos direitos dos povos indígenas.
A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI)pela primeira vez tem uma presidência indígena, e propõe-se a recuperar a missão institucional de promover os direitos dos povos indígenas, tomando como prioridade os direitos a seus territórios; contudo, recebe como legado uma estrutura sucateada e um vasto passivo de demandas.
Junto ao MPI e a FUNAI, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) também inicia sob coordenação de representantes indígenas, após anos de militarização e desestruturação da saúde indígena e com permanentes recortes de orçamento. É importante destacar que estas decisões ampliaram as dinâmicas de participação direta dos povos indígenas nos âmbitos de decisão e modificaram o campo da relação entre os povos indígenas e o Estado, trazendo oportunidades e desafios que precisam ser abordados.
VELHOS DESAFIOS E CONTRADIÇÕES
Neste contexto, cabe esperar como resultado um fortalecimento da política indigenista nos próximos anos, garantindo que seja pauta relevante no governo federal. Entretanto, será necessário que estas instâncias disponham do apoio político, da autonomia operacional e da musculatura orçamentária necessários para responder às demandas acumuladas e reprimidas, já que, por enquanto, a violência contra os povos indígenas e seus territórios permanece desde os primeiros compassos do novo governo; ameaças, tentativas de assassinato ou mortes aconteceram desde as primeiras semanas de janeiro.
Isso sinaliza que os povos indígenas enfrentarão velhos desafios e contradições previsíveis num governo que se autodefine como “de frente ampla”, aglutinador de interesses divergentes para superar o fascismo no processo eleitoral.
Projetos já anunciados de infraestrutura para o escoamento de commodities, que atravessam ou impactam diretamente territórios indígenas, a expansão das fronteiras agrícolas, a intensificação da mineração ou a busca por petróleo na foz do rio Amazonas, são iniciativas que representam a continuidade de um modelo desenvolvimentista com forte atuação pública que já permeou os primeiros governos de Lula e irão trazer conflitos com os dos povos indígenas.
À continuidade deste modelo econômico, une-se agora a perspectiva do governo em avançar em iniciativas de mercantilização dos Bens Comuns e de fomento de mercados de carbono, que constituem falsas soluções à profunda crise climática provocada pelo modelo extrativo-produtivo do capital.
DESAFIO DA “FRENTE AMPLA”
Por fim, um terceiro desafio deverá ser enfrentado pelos povos indígenas e pelos representantes indígenas dentro do atual Executivo. O caráter “de frente ampla” do governo tende a buscar consensos sobre as possibilidades de “conciliação de interesses”. Eis aqui uma questão fundamental, pois coloca o Estado mais no papel de pretenso “mediador” de interesses antagônicos, e menos como garantidor de direitos.
No que diz respeito aos povos indígenas, deve ficar claro desde o início que seus direitos territoriais não podem ser campo de negociação Segundo os dados coletados pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em 2021 ainda existiam 871 territórios que não haviam concluído as fases do procedimento administrativo previsto para a efetiva demarcação e homologação.
Destas terras, pelo menos 598 eram reivindicações territoriais sobre as quais ainda não existe nenhuma providência administrativa iniciada; 143 territórios estavam aguardando a conclusão dos trabalhos de identificação e delimitação; 44 territórios já estavam identificados, mas aguardavam a portaria declaratória; e 73 Tis já tinham sido declaradas, mas aguardavam a homologação por parte da Presidência da República.
NA PERSPECTIVA DO BEM VIVER
O novo momento político no país abre, efetivamente, possibilidades para avançar na garantia dos direitos dos povos indígenas. Mas será absolutamente necessário que os povos indígenas e suas instâncias de organização, bem como seus aliados, mantenham uma profunda e sábia autonomia que lhes permita não confundir os espaços permanentes e próprios – como movimento – com os espaços transitórios de participação – como governo.
A atuação de representantes indígenas dentro das estruturas de decisão de governo gera possibilidades novas e incorpora uma sensibilidade genuína dentro das instituições, desde que não caia na teia da “captura da rebeldia histórica” dos povos por parte da lógica instrumental do Estado.
Para concretizar o avanço na garantia dos direitos territoriais neste momento aparentemente propício, será imprescindível a continuidade da mobilização dos povos a partir de seus territórios, com a criatividade e força política que sempre demonstraram. A mobilização será mais efetiva na medida em que consiga a manter claro o foco e o objetivo estratégico do momento que, agora com maior transparência, passa pela superação definitiva da tese do marco temporal.
HORIZONTE ALTERNATIVO E CONTRA-HEGEMÔNICO
Por fim, é indispensável a compreensão de que a perspectiva ética e política da luta dos povos indígenas ao longo de todo o processo colonial e até hoje transcende a conjuntura de um determinado governo em um determinado momento histórico. Ele pode ser mediação importante para avançar, mas o horizonte da luta dos povos indígenas é, e sempre foi, um horizonte alternativo e contra-hegemônico; a perspectiva de uma sociedade plural, de uma democracia radical e de uma lógica do Bem Viver a partir da diversidade das formas de ser e de estar no mundo. Não perder esta perspectiva, principalmente no atual momento histórico aparentemente favorável, continuará sendo o principal motor de resistência dos povos indígenas.
*Luis Ventura Fernández é missionário do Conselho Indigenista Missionário – CIMI
[1] https://www.youtube.com/watch?v=0oUM6rSTOOg. Mensagem para a XIX Assembleia Geral do CIMI, outubro de 2011.
Leia o texto em alemão Brasilien zwischen alten Widersprüchen und neuen Chancen O texto foi republicado no site do Conselho Indigenista Missionário e no Le Monde Brasil; confira! |