Política de créditos de carbono ignora a autonomia dos povos sobre os próprios territórios

Entrevista com Ninawa Inu Huni Kuī, direto de Glasgow (Escócia), durante a COP26. Liderança e presidente da Federação do Povo Huni Kui do Acre (FEPHAC) disse que as pessoas que sofrem os impactos não tiveram oportunidade de participar das negociações na COP26, por isso ele e outros, levaram a verdadeira informação.
16/11/2021
por
Eliege Fante* e Elisangela Paim**

Créditos: Ninawa Inu Huni kuī, Líder Huni kuī, Presidente na FEPHAC (Foto arquivo pessoal).

Entrevista: Ninawa Inu Huni Kuī, direto de Glasgow (Escócia), durante a COP26

Liderança e presidente da Federação do Povo Huni Kui do Acre (FEPHAC), Ninawa Inu disse que as pessoas que sofrem os impactos não tiveram oportunidade de participar das negociações na COP26, por isso ele e outros, levaram a verdadeira informação. Ninawa representa cerca de 18 mil indígenas do povo Huni Kuī, sendo a maior parte no lado brasileiro da Amazônia, no Acre, divisa com o Peru. Ninawa mora numa aldeia localizada no município de Feijó. É gestor em projetos indígenas, participa de articulações [e/com] movimentos internacionais. Contou que participa das Conferências anuais da Partes desde 2011, na Rio+20, levando a mensagem sobre os impactos locais das mudanças climáticas e, também, denuncia as falsas soluções, apresentadas pelas megacorporações, que são negociadas com os governos dos países, sem a consulta nem o consentimento dos povos originários e indígenas. 

P – Quais as suas demandas apresentadas na 26ª Conferência da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Mudanças Climáticas e a quem foram expostas? Como avalia a receptividade das suas propostas?

R – São várias demandas. Primeiro, de denúncia dos projetos de lei em trâmite[1] no Congresso brasileiro e que são contrários aos direitos dos povos indígenas e aos direitos ambientais. Segundo, de denúncia de falsa solução sendo apresentada como programa de crédito de carbono, através dos acordos de financeirização da natureza e compensações chamadas offset. Terceiro, apresentamos a lei do ecocídio[2] porque, mundialmente, os governos e as empresas que causam a destruição ficam impunes, ou seja, não são responsabilizados pelos assassinatos e crimes cometidos contra o meio ambiente e as pessoas. Daí a importância de trabalharmos a territorialidade como um sujeito de direito, através da lei do ecocídio que está sendo discutida em nível mundial.

Por onde passamos fomos bem recebidos, nas universidades, nos eventos dentro e fora da COP, nos eventos paralelos. Participamos do encontro de criação da coalizão entre parlamento europeu com lideranças indígenas para discutir vários acordos que tem nos impactado diretamente, como o Mercosul[3]. Estivemos em várias reuniões, como com a Princesa Esmeralda da Bélgica e, também com a sociedade, porque o foco principal do meu ativismo é fazer a conscientização da sociedade. Creio que a mudança vai acontecer com a atitude do cidadão, porque tenho visto nesses anos todos, que através de programas e políticas de governos, nada muda de verdade.

P – O que são as falsas soluções e de quem provêm?

R – Por exemplo, a COP, de modo geral, é uma falsa solução. Aqui, ouvimos que este encontro busca soluções para o clima e, na verdade, as multinacionais que poluem e destroem globalmente, financiam as conferências e negociam com os governos acordos bilionários através da comercialização da natureza. Por isso, a promessa de redução de emissões de gases de efeito estufa, de zerarem essas emissões em 50 anos, é uma mentira. Porque ao pagarem os créditos de carbono aos governos, creem que se eximem da responsabilidade pelos crimes ambientais cometidos, o ecocídio e o genocídio, em anos anteriores. De um lado, creem que compensam a poluição que causaram e, de outro, recebem um bônus, como que o direito de seguir investindo nas regiões onde há mais interesse econômico. E, por consequência, as empresas mantém suas atividades industriais destrutivas.

Por exemplo, uma das maiores empresas de perfuração de petróleo no Canadá, negocia bônus na região amazônica com o governo brasileiro, para que não haja desmatamento, queimada e poluição. Só que, ao invés de proteger a natureza, como divulga, o governo hoje se apodera dos territórios, fazendo todas as negociações com o foco principal na captação de recursos. Estão aí os projetos de lei em trâmite de desmonte dos direitos mostrando que o governo quer é acabar com os direitos dos territórios indígenas para entregar às petroleiras e às indústrias predatórias.

Além do mais essas falsas soluções dividem os povos, dividem as lideranças, porque hoje, representantes de instituições que estão trabalhando junto dos governos nas mesas de negociações, muitas vezes não conhecem as aldeias que são/serão impactadas. Ou seja, fazem os acordos aqui sem considerar a escuta de quem realmente está sofrendo com a contaminação do petróleo, com o desmatamento, com a invasão dos territórios, com o aumento da monocultura de agronegócio, como no caso dos Guarani Kaiowá. As pessoas que sofrem não têm a oportunidade de estar nessa mesa de negociação nem neste espaço. Então, a gente tem que vir à COP e aos espaços paralelos para que as pessoas possam ouvir a verdadeira informação.

P – Como avalia os projetos de REDD[4] e de créditos em mercados de carbono?

R – Projetos de REDD são apresentados como possíveis soluções pelas empresas aos governos, tanto a redução de emissões como a redução do desmatamento, mas não funcionam na prática. O governo do meu Estado, o Acre, por exemplo, e outros governos na Amazônia, de um modo geral, se apoderam dos territórios. No caso desses projetos mais corporativos com multinacionais, esses acordos mais institucionais, são feitos através de sistema do governo, não passa por negociações com povos indígenas. Neste sentido, fere os acordos internacionais como a Convenção 169[5] que estabelece o direito de consulta às comunidades antes de aplicar um programa, ou criar alguma tentativa que venha afetar diretamente os povos indígenas. Quem tem todo o empoderamento da terra, quem tem o domínio da terra para a negociação é o Estado, é o governo. É ele que negocia. Minha posição sempre foi contrária, exatamente porque uma coisa é eu pensar, especificamente, uma comunidade que utiliza o dinheiro para seu investimento e, às vezes, até se beneficia. Mas, a minha luta e a minha visão são globais. Porque se fizermos uma ação só dentro da minha comunidade não vai mudar a realidade do planeta.

P – Qual a sua posição sobre o conceito de bioeconomia? Percebem semelhanças com o de desenvolvimento sustentável? O desenvolvimento sustentável como discutido/implementado até hoje, têm atendido as suas demandas?

R – São termos utilizados, mas que não atendem a visão indígena, não correspondem aos anseios das comunidades. Este termo desenvolvimento, em si próprio, se contradiz, porque desenvolvimento está regredindo com tudo que é hoje preservado, com o cuidado que temos dentro dos nossos territórios. A única diferença são esses nomes todos, porque as ações são as mesmas, as ações humanas, em vários sentidos, politicamente, juridicamente são as mesmas.

P – Que resultados esperam levar da COP26 para o seu povo/território?

R – O maior resultado que a gente leva é a atenção das pessoas que estiveram nos ouvindo, que acreditam na nossa luta, que estão somando com a gente. A nossa aliança tem se ampliado mundialmente contra as falsas soluções. Instituições que antes não tinham posição, hoje estão conseguindo enxergar todas as mentiras. Mas esperança da COP, isso não existe para ninguém. Mesmo tendo muitas pessoas comemorando 1,7 bilhões de dólares[6] para a proteção da Amazônia brasileira, isso não vai resolver. Por mais que esse dinheiro chegue ao cofre do governo, não vai ir para as comunidades e nem resolveria o problema do planeta. É um dinheiro manchado com o sangue das pessoas assassinadas defendendo seus territórios da contaminação das petroleiras, etc.

P – Quais práticas socioeconômicas, dentro dos saberes do povo que representas, poderiam ser aprendidas pelos demais povos, em especial o povo branco e em substituição a agricultura de commodities que é relacionada ao desmatamento?

R – Nossa visão e nosso conceito de viver bem, de preservação, de envolvimento, é totalmente diferente das pessoas que estão colocando a natureza como mercadoria e dentro de um mercado de negociações, como commodities. Nós somos povos de saberes milenares, são saberes que a gente aprende com a própria natureza, com o espírito da própria natureza. Só que esse é assunto que não interessa ao grande capital, eles não querem saber de espiritualidade, de proteção de nascente de rio, de saber sobre mata primária. O que eles querem saber é de lucro, de grandes empreendimentos, de cartas de crédito que possam oferecer para continuar a sua atividade contaminadora. O que nós precisamos fazer com urgência é uma reeducação da humanidade, uma reconexão da humanidade. Aqui na Europa, por exemplo, o povo não tem uma conexão com a sua ancestralidade, então estão muito ligados ao acúmulo de recursos e de patrimônios. Mas, é preciso que possamos regenerar as futuras gerações, começando com as crianças que estão nascendo, com a juventude que está crescendo, para poder mudar a realidade de verdade. Porque a nossa geração, de hoje, já tem um círculo vicioso que não vai acabar. É ilusão pensar que as pessoas vão mudar a mentalidade, como um dono de banco ou de multinacional, e quem está nos governos para se promover. Nossa visão é totalmente diferente. Nosso supermercado está no nosso lago, no nosso bosque, nossa agricultura de subsistência está onde realmente é dada, do solo da mãe terra, por isso não precisa do agrotóxico nem modificar a genética. Essas sim são soluções verdadeiras.

P – Possuem Plano de Gestão Territorial e Ambiental das Terras Indígenas (PGTA)? Que diretrizes e práticas contêm?

R – São ideias idealizadas pelo próprio sistema de governo para coletar informações das comunidades. O plano de gestão orienta o programa de REDD porque os governos apresentam todas as partes, que são mais cobiçadas, dentro dos territórios, como madeira, animais, biodiversidade. Depois apresentam com esse olhar e essa intenção de proteger esse espaço como maneira de captar recursos. Portanto, o plano de manejo tem ideias muito importantes de segurança territorial, de formação, de estrutura, e seria relevante que fosse implementado.  Daria para fortalecer as iniciativas das comunidades porque dentro desses planos está o pensamento de lideranças, de como querem fazer com suas comunidades, porém eles não são implementados, eles são apenas utilizados para captar recursos. Às vezes, dão um dinheiro a comunidade de incentivo à cultura, de fortalecimento para comprar um computador e, agora, até miçanga estão comprando para as mulheres fazerem artesanato. Mas, como falei, são ações que não resolvem o problema da comunidade muito menos o problema global.

P – Qual a situação enfrentada nos territórios pelo seu povo, as ameaças e os desafios?

R – Hoje meu povo tem vários impactos ocasionados principalmente relacionados às questões climáticas. Calculamos que 80% dos nossos territórios tenham águas contaminadas, ou seja, não temos mais aquela água potável. É uma situação bem complicada, porque também 80% das enfermidades, que nos afetam, decorrem da falta de saneamento básico. As mudanças estão acontecendo em nossos territórios, os rios em que a gente pescava, estão secando e se acabando. As matas onde a gente caçava animal, colhia alimentação para nossa comunidade, estão se acabando, e as medicinas tradicionais estão sendo destruídas. Porque o avanço da agropecuária está muito forte ao redor dos nossos territórios. Temos nascentes de rios sendo desmatadas e, sofremos agora a maior inundação já vista pelas nossas comunidades: foram 548 famílias desabrigadas com as enchentes. Portanto, são impactos difíceis de se reverter quando não existe uma política pública voltada para esses assuntos. A ameaça maior é a extinção do nosso território, porque os projetos de lei que estão no Congresso brasileiro nos levam a esse caminho, um caminho de novo genocídio do nosso povo. Sem território não teremos cultura, não teremos nossas histórias, genocídio começa a partir daí.

P – Os direitos constitucionais atendem as demandas dos povos originários? Quais outras políticas deveriam ser ouvidas pelo Estado brasileiro e construídas junto aos povos?

R – Os direitos constitucionais dos povos indígenas e para os povos indígenas são só dois na Constituição Federal de 1988[7]: o 231, que fala sobre o reconhecimento dos povos indígenas e, regulamenta o Estatuto do Índio[8];  e o artigo 232, que reconhece os territórios e que poderia atender algumas necessidades, mas que os governantes não cumprem e fazem com que o Estado brasileiro não cumpra. Um investimento que poderia se dar e seria uma ação concreta para os povos indígenas, mundialmente, seria a devolução dos territórios aos povos originários para que pudessem ser cuidados pelos próprios povos indígenas, de maneira que eles tivessem autonomia, sua governança autônoma, isso seria uma possibilidade de realmente fazer uma área ser protegida. Estamos discutindo no cenário internacional a possibilidade de reconhecer o nosso território como sujeito de direito e outras possibilidades que se pode criar e pensar.

*Eliege Fante é jornalista, pós-graduada em Comunicação e Informação, integrante do Núcleo de Ecojornalistas do Rio Grande do Sul (NEJ-RS).

**Elisangela Paim é  jornalista, coordenadora latino-americana do programa clima da Fundação Rosa Luxemburgo. 


[1] São eles: PL 490/2007 (Marco Temporal); PL 191/2020 (Mineração); PL 2633/2020 e PL 510/2021 (Grilagem de Terras); PL 3729/2004 (no Senado PL 2159/2021 – Licenciamento ambiental); PDL 177/2021 (Denúncia da Convenção 169 da OIT). Disponível em: https://apiboficial.org/alerta-congresso-2

[2] Projeto de Lei 2787 de 2019 tramita no parlamento brasileiro. Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/pl-2787-2019

[3] Segundo informações da agência pública brasileira, o governo Bolsonaro tenta solucionar “pendências que impedem a formalização do acordo de livre-comércio entre o Mercosul e a União Europeia”, que foi celebrado em 2019. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2021-10/chanceler-diz-que-busca-resolver-pendencias-em-acordo-mercosul-ue

[4] Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação florestal.

[5] Da Conferência Internacional do Trabalho, sobre os povos indígenas e tribais. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decleg/2002/decretolegislativo-143-20-junho-2002-458771-convencaon169-pl.pdf

[6] Brasil é um dos 141 países que assinaram o acordo, em 2 de novembro, para recebimento de recursos entre 2021 e 2025. Fonte: https://ukcop26.org/glasgow-leaders-declaration-on-forests-and-land-use/?utm_source=newsletters+epbr&utm_campaign=069259d1f2-epbr-dialogos-da-transicao&utm_medium=email&utm_term=0_5931171aac-069259d1f2-438423433

[7] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm

[8] Lei 6.001 de 1972, disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6001.htm