Mestra Mayá Muniz: líder indígena e guerrilheira da educação

Professora há 38 anos, Maria Muniz utiliza o educação como ferramenta de luta por direitos para comunidades indígenas no interior da Bahia
19/12/2022
por
Mariana Oliveira | Nós, Mulheres das Periferias

Professora há 38 anos, a líder indígena Maria Muniz utiliza o educação como ferramenta de luta por direitos para comunidades indígenas no interior da Bahia

líder indígena
Maria José Muniz de Andrade tem origem tupinambá | Crédito: João Pixels

“Eu nunca parei de dizer que sou educadora, esse é meu caminhar”. É assim que Maria José Muniz de Andrade, que tem origem tupinambá, se apresenta. Professora, parteira, guardiã das sementes crioula, Mestra de saberes tradicionais, liderança política e religiosa dos povos Pataxó Hã hã hãe, fez da educação ferramenta de luta pelos direitos indígenas.

Entre “dificuldades e avanços”, como ela diz, leciona há 38 anos na Reserva Caramuru Catarina Paraguassu, no município de Pau Brasil, região sul estado da Bahia, onde nasceu. A aproximação de Maria com a educação iniciou-se na infância. Sua mãe, Lucília Muniz, mulher sábia que cultivou a conexão de seus filhos com os encantados,  foi sua primeira escola.

“Ela foi uma excelente mãe, com uma cabeça muito saudável”. O que a pequena Mayá aprendeu com sua mais velha, repassou para os mais novos.

“Ensinei para meu povo o valor de respeitar nossas mães, pais, tios, irmãos. Que esse respeito seja verdadeiro para trilharmos um caminho com seriedade e respeito”.

Carregar este aprendizado foi essencial para enfrentar a série de desafios enfrentados pela sua comunidade. Em meados de 1952, fazendeiros invadiram os 54.107 mil hectares do Território Indígena Caramuru Catarina Paraguassu e expulsaram a população. Foi quando sua mãe se mudou para Itaju do Colônia, município baiano.

Mestra Mayá concedeu a entrevista via internet e recebeu nosso fotógrafo na aldeia Milagrosa, próxima a cidade Pau Brasil, município no sul da Bahia | Crédito: João Pixels

Reescrever a história

Ainda criança, a então professora permaneceu longe de sua terra por 40 anos, esperançando a possibilidade de retorno. Com o passar dos anos, iniciou uma busca por parentes esparramados entre regiões da Bahia e de Minas Gerais. Foi uma longa trajetória que exigiu escutar e reescrever  o que havia sido destruído.

Em 1982, iniciaram-se os trabalhos de resgate das terras perdidas. Junto aos caciques e lideranças, Mayá participou de 396 retomadas de território pelos povos Pataxó Hã Hã Hãe. Durante este processo, foi preciso encarar não só os fazendeiros, mas também seus jagunços e as formas militares que os protegiam.

Foram 30 anos de luta até a reconquista  de cada território em 2012, quando a demarcação da terra foi efetivada. Foi nesta esteira que Maya se desenvolveu como professora, liderança religiosa e política. Trabalhou como professora por 12 anos no município de Itaju e em outras cidades da região, como Itabúna, onde lecionou por três anos


“Racismo, muito racismo”

Como professora, diz ter  sofrido “racismo, muito racismo”. Mesmo que seus alunos fossem indígenas, Mayá era obrigada a seguir o planejamento padrão, o que não incluía a sua história e do meu povo. Em suas próprias palavras: “teve que aprender a dar aula na língua do branco, da maneira que eles queriam”.

A professora só conquistou mais liberdade quando passou a trabalhar em sua própria aldeia. “Fora [da sua comunidade] o  preconceito era muito grande, como ainda é. Até hoje existem pessoas que não não valorizam o indígena,  não querem assumir que somos capazes. E isso ainda está longe de acabar”, ressalta.

Dois anos depois, foi contratada como professora pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio) e começou a dar aula “debaixo do pé de árvore, à beira de rio, casa de farinha até mesmo no curral”. Define sua metodologia de ensino como uma “escola viva”, dizendo ter vivido diariamente troca de experiências com os alunos, os pais e anciãos.

“Onde eu vou, tenho que colocar o que eu sou e o porquê estou ali”, diz a mestre Mayá.

Atualmente a agenda de aulas não é o seu foco principal. Essa missão tem sido transferida para seus seus antigos alunos. Assim, a educadora tem a oportunidade de percorrer outros estados palestrando e ministrando aulas esporádicas em universidades.

“E hoje com é o caminhar da gente? É o falar, o participar. A gente tenta quebrar esse tabu em todas as escola, nas faculdades, nas câmaras de vereadores, prefeituras. Estamos aí, guerreando para que não exista mais esse preconceito, esse racismo perante o a nossa nação”, relata.

Trabalho de formiguinha

Quando é convidada para eventos, costuma marcar sua presença com rituais do povo ao qual pertence, mostrando que seu trabalho é completamente diferente do trabalho do não índio. “Faço com muito cuidado, muito carinho. Porque, de qualquer maneira, nós indígenas, também precisamos saber um pouco da cultura não índia”

“Ai de nós se não souber [aprender a cultura não índia]. Mesmo sabendo, alguns de nós são usurpado e engolidos”, diz Mestra Mayá

Sábia, sendo uma mulher que, em sua comunidade, carrega a cura nas mãos, se diz  consciente de que a guerra por um mundo mais igualitário está longe do fim, mas se recusa a abandonar a luta. “Devagar se vai longe. É com muita demora, muito trabalho, muita dificuldade. Mas estou fazendo um trabalho de formiguinha para que venha”.

Suas ‘caminhadas’, como gosta de dizer, é para que mais pessoas tenham conhecimento sobre as comunidades tradicionais, como indígenas, quilombolas, os ribeirinhos, os ciganos. “Essa nação é um pouco esquecida pelos homens do Kaiambá [que significa dinheiro na lingua Pataxó-Hãhãhãe]. Homens que não querem reconhecer que existe essa nação no mundo”.

“Eu não sou eterna”

Em 2022 a editora Teia dos Povos publicou o livro “A escola da reconquista”, obra que traz o registro da vivência da Mestra Mayá durante as retomadas, além de ser uma forma de preservar sua metodologia de ensino, a força da sua liderança religiosa e o seu poder de influência para os mais novos.

Aida hoje, mantém seus trabalhos na comunidade do Caramuru Catarina Paraguassu, onde vive, mas se dedica a orientação das novas gerações com o intuito de transforma-las em lideranças, assim como ela é.

Preparar a juventude e permanecer em sua caminhada de conscientização é o que tem contornado suas últimas caminhadas | Crédito: João Pixels

“Educo jovens para amanhã ter alguém preparado para enfrentar essa luta. Para mim é uma luta linda. Formei alunos na minha comunidade que hoje são médicos, advogados e engenheiros. Entendo que fiz um trabalho com muita consciência, respeito e seriedade”, afirma a líder indígena.

A educação que a educadora acredita faz com que as pessoas sejam, para “os familiares e para o mundo”, quem elas são e gostariam de ser. E, à medida que aprendem, ensinam.

Aos 74 anos, Maria Muniz diz ter o vigor de uma pessoa de 47. Segundo ela, essa energia a possibilita ter novas experiências “com muita sabedoria e consciência”.

Além do compromisso na educação, enquanto guardiã de sementes crioula, Mestre Mayá trabalha com o plantio orientando jovens que vivem na zona rural. Nessa missão, fortalece a importância de “viver com a força dos nossos braços”, garantindo uma alimentação saudável e sem agrotóxicos.

Para o futuro, considera que as ações em prol da educação sejam tomadas coletivamente, para que todos tenham disponível o mesmo nível de ensino. Recomenda também que nós, cidadãos, sejamos propositivos para reivindicar nossos interesses, sem esperar que atitudes dos governantes “caiam do céu”.


Esta reportagem integra a série “Feminismos”, uma parceria do Nós com a Fundação Rosa Luxemburgo. A série conta histórias de mulheres que têm a política como propósito de vida.