Segundo artigo da série Rio em rota de colisão discute o crescimento das milícias e o papel das políticas públicas no fortalecimento desses grupos armados
Militarização das favelas e ascensão das milícias
19/03/2025
por
Gizele Martins e Katarine Flor

No Rio de Janeiro, a militarização das favelas se intensificou a partir da década de 1990. As operações das polícias militar e civil resultaram em graves violações de direitos e em um aumento significativo no número de mortes de moradores de favelas e periferias, criando um cenário de constante insegurança. Durante esse período, grupos de extermínio, como a Scuderie Le Cocq, contribuíram significativamente para a intensificação da violência urbana, sendo considerados os primórdios das milícias [leia mais sobre isso no primeiro artigo desta série].

Gratificação faroeste

Essa lógica de enfrentamento violento teve influência nas políticas públicas adotadas pelos governantes da época. Em 1995, por exemplo, o então governador do Rio de Janeiro, Marcello Alencar (PSDB), criou uma bonificação salarial para premiar policiais que demonstrassem “atos de bravura” em “confrontos com criminosos”. A intenção declarada era combater o tráfico de drogas, mas, na prática, a medida teve efeitos desastrosos.

Essa política resultou em um cenário em que os policiais tinham mais liberdade para usar força letal, o que levou a abusos de poder e a execuções extrajudiciais. A gratificação criou uma cultura de violência dentro das forças policiais, alimentada por um histórico de impunidade e uma glorificação da brutalidade que remonta ao período da ditadura militar.

Patrícia Oliveira, militante e defensora dos direitos humanos, irmã de um dos sobreviventes da Chacina da Candelária, ocorrida em 1993, comenta que a militarização nas favelas na década de 1990 era bastante diferente da atual. Ela recorda que, naquele período, os policiais que mais matavam, recebiam mais.

Eles ganharam um bônus que ficou conhecido como a ‘gratificação faroeste’, o que fez aumentar muito o número de pessoas assassinadas naquele período. Na época, surgiram muitos casos de crianças e adolescentes mortos. Eram constantes as operações em favelas. Vários grupos de extermínio surgiram, como os ‘Cavalos Corredores’, a Scuderie Le Cocq e os Esquadrões da Morte. É daí que se originaram as diversas chacinas no Rio de Janeiro. A polícia mostrou sua verdadeira face naquele momento”, relata.

Daquele período, algumas das chacinas que se tornaram emblemáticas são:

  • Chacina de Acari – 26 de julho de 1990;
  • Chacina da Candelária – 23 de julho de 1993;
  • Chacina de Vigário Geral – 29 de agosto de 1993;
  • Chacina de Nova Brasília – 18 de outubro de 1994;
  • Chacina de Nova Brasília – 8 de maio de 1995;
  • Chacina do Maracanã – 10 de outubro de 1998.

Desaparecimentos forçados

Nesse contexto, chacinas como a da Candelária marcaram o período e foram acompanhadas por um aumento alarmante nos casos de desaparecimentos forçados, que persistiram nas décadas seguintes, evidenciando a continuidade da impunidade e do ciclo de violência contra a população favelada.

Os desaparecimentos forçados ocorrem quando alguém é levado por policiais ou militares e, depois disso, simplesmente “desaparece”, sem que a família ou amigos saibam onde está, o que aconteceu ou se ainda está vivo. É como se essa pessoa fosse “apagada” sem deixar rastro, e, muitas vezes, não há investigação ou responsabilização.

Aumento no número de mortes

Entre 1993 e 1995, houve um aumento significativo nas mortes e ferimentos de civis em confrontos policiais no Rio de Janeiro, com o número de óbitos subindo de 155 para 358 e o de feridos de 48 para 91. O índice de letalidade durante esse período foi de 2,7, representando a média de mortos para cada ferido nos confrontos. Esse índice foi superior aos de outras cidades, como Buenos Aires (1,5) e São Paulo (1,9), destacando a gravidade da situação no Rio.

Especificamente em 1995, o índice de letalidade foi de 1,7 nos primeiros quatro meses do ano, mas subiu para 3,5 entre maio de 1995 e julho de 1996, coincidindo com a política de “gratificação por bravura”. Esse aumento significativo sugere que a introdução das gratificações pode ter incentivado práticas mais letais nas operações policiais. Os dados são do estudo realizado por Ignacio Cano, publicado pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER) em outubro de 1997.

Alvo negro

Esse estudo indicou ainda que o índice de letalidade era mais que o dobro nas favelas (3,6) em comparação ao “asfalto” (1,6), “indicando uma evidente intenção de matar por parte dos policiais nas suas intervenções nas áreas carentes da cidade”.

A pesquisa revelou que a população negra (entendida como pretos e pardos) foi desproporcionalmente atingida nas ações policiais, sendo vitimada três vezes e meia mais do que sua representação na população total da cidade. A etnia das vítimas foi classificada em 35% pardos, 29% pretos e 35% brancos, enquanto o censo de 1991 indicava uma população de 59% brancos, 31% pardos e 8% pretos.

Pacificação militarizada

Nos anos 2000, os governos federal e estadual introduziram uma nova política de militarização das favelas e periferias do Rio de Janeiro. Com a chegada dos megaeventos esportivos, prometeu-se um país mais seguro e receptivo para turistas, em troca do controle dessas áreas. Nesse contexto, em 2008, foram lançadas as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), um modelo de policiamento denominado “cidadão”, inspirado na polícia de Medellín, na Colômbia.

“Para inglês ver”

Nos 10 primeiros anos do projeto, foram implementadas 38 UPPs em diferentes favelas do Rio de Janeiro. Inicialmente, essas áreas registraram uma redução nas trocas de tiros e operações policiais, embora tenha havido um aumento nos desaparecimentos forçados. De acordo com a pesquisa “Os Donos do Morro”, realizada pelo LAV/UERJ em 2012, a maior parte das UPPs foi instalada em áreas de visibilidade internacional, visando reduzir a violência em locais que receberiam turistas durante a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016.

“Dessa forma, parece evidente que a seleção dos locais foi fortemente influenciada pela celebração dos grandes eventos na cidade, marcadamente a Copa do Mundo de 2014, incluindo a área em torno do estádio e as zonas turísticas e de grande circulação”, analisa o documento.

Na tese de mestrado “UPP – A Redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro“, Marielle Franco critica a desigualdade na política de segurança pública nas diferentes áreas da cidade do Rio de Janeiro, destacando a disparidade no tratamento das regiões centrais em comparação às periféricas. Segundo a socióloga, “o Estado não prioriza ações de ocupação militar da mesma envergadura para o conjunto da cidade”, o que indica que a presença e a atuação das forças de segurança variam conforme a localização e o status socioeconômico das áreas, sendo mais intensas em certas localidades e negligentes em outras.

A Zona Oeste, por exemplo, é apontada por ela como uma “exceção”, uma vez que, apesar da forte presença de milícias, essa área não recebe operações de ocupação militar da mesma intensidade das regiões centrais. Em sua tese, Marielle observa que, “nas áreas valorizadas, no centro-sul da cidade ou contempladas pelas UPPs, há a ocupação dos territórios com ‘barreiras acústicas’ e Força Nacional”, evidenciando que os locais de maior apelo econômico e visibilidade recebem mais recursos e operações ostensivas.

Em contraste, áreas periféricas e controladas por milícias, como partes da Zona Oeste, são frequentemente relegadas, o que, segundo a autora, revela uma política de segurança que “não requereu uma ocupação maciça em toda a cidade”. Essa análise reforça a crítica de Marielle à seletividade e ao caráter excludente da política de segurança pública, que, ao priorizar certas regiões, perpetua desigualdades e enfraquece a proteção estatal em locais marginalizados.

A instalação das UPPs teve como objetivo revalorizar áreas próximas às zonas nobres, como as favelas da Zona Sul e do Centro, atraindo investimentos e turismo. A escolha dessas áreas priorizou locais de fácil acesso para operações policiais. Áreas mais periféricas e de difícil acesso, como a Baixada Fluminense e partes da Zona Oeste, ficaram de fora do projeto inicial.

Algumas áreas foram selecionadas por seu valor simbólico e estratégico, como a Cidade de Deus e o Complexo do Alemão, considerados ícones da violência urbana no Rio. A mesma pesquisa indica que a lógica de instalação das UPPs priorizou a visibilidade e os interesses econômicos, em vez de focar nas áreas mais afetadas pela violência letal.

“Conhecida internacionalmente através do filme ‘Cidade de Deus’, a localidade foi estigmatizada como símbolo de violência e criminalidade. A sua população conta entre 30 e 40 mil habitantes. Recebeu a segunda UPP depois do Santa Marta”, identifica o estudo do LAV/UERJ.

Mera semântica

O conceito de “pacificação” foi promovido como uma alternativa à “política de guerra” contra o tráfico, que por décadas predominou na segurança pública do Rio de Janeiro. Embora tenha havido uma redução significativa nos roubos (cerca de 50% em algumas áreas), outros crimes, como lesões corporais, ameaças e violência doméstica, aumentaram após a chegada das UPPs. Por exemplo, as lesões corporais passaram de uma média de 3,34 para 11,66 vítimas por mês, e as ameaças subiram de 2,30 para 7,97 por mês. A violência doméstica também cresceu consideravelmente, com um aumento de até 113,6% em algumas comunidades.

“Guerra fria”

Ainda conforme o levantamento do LAV/UERJ, muitos policiais viam os moradores das favelas como potenciais cúmplices do tráfico, o que gerava preconceito generalizado. Essa percepção reforçava estereótipos raciais e de classe, associados à marginalização e violência estrutural. A resistência à presença das UPPs pode ser entendida como uma reação ao racismo e à violência institucional.

O estudo aponta que, em algumas comunidades, a situação era de hostilidade aberta. “Nestes casos, muitos moradores continuam vendo a polícia como uma organização inimiga e muitos policiais ainda consideram os favelados como filiados, em maior ou maior grau, à criminalidade. Em várias UPPs, a situação poderia ser definida como ‘guerra fria contra o tráfico’, com um número muito inferior de vítimas, mas com a continuidade dos velhos mecanismos: a polícia priorizando sempre o combate às drogas”.

Foco definido

O projeto das UPPs priorizou áreas dominadas pelo tráfico, com exceção de apenas uma comunidade controlada por milícias, o Jardim Batam. A rigor, a estratégia foi concebida como um enfrentamento ao narcotráfico, não às milícias. A pesquisa ressalta que a polícia considerava o tráfico como seu inimigo tradicional, enquanto as milícias mantinham relações mais amenas com os policiais, já que muitos de seus integrantes eram policiais ou ex-policiais. Isso facilitou a aceitação das milícias em algumas comunidades.

“Batam é a única UPP em território de milícias, o que confirma que se trata basicamente de um projeto contra o narcotráfico”. A pesquisa indica que a escolha foi motivada pela grande repercussão pública gerada por um caso de tortura envolvendo jornalistas. Contudo, fora dessa exceção, o foco permaneceu em áreas dominadas pelo tráfico, como Santa Marta e Cidade de Deus. Enquanto isso, as milícias consolidaram seu poder em territórios não cobertos pelas UPPs, especialmente na Zona Oeste.

Embora as UPPs tenham reduzido os tiroteios em algumas áreas e melhorado a segurança de forma localizada, o projeto acabou criando um vácuo de poder rapidamente preenchido pelas milícias em territórios periféricos. A ausência de uma estratégia específica de combate às milícias e a falta de regulação fundiária demonstram a necessidade de uma abordagem mais abrangente e equilibrada na segurança pública do Rio de Janeiro.

Laboratório da militarização

Ainda durante os megaeventos esportivos no Brasil, na Copa do Mundo, em 2014, a favela da Maré, localizada na Zona Norte do Rio de Janeiro, com população de aproximadamente 140 mil moradores (Censo Maré 2000), foi invadida pelo Exército brasileiro e ficou sob comando da Garantia de Lei e Ordem (GLO) por um ano e cinco meses. Aconteceram remoções, prisões, assassinatos e invasões às casas, além de tanques de guerra que cercavam as ruas de todas as dezesseis favelas da Maré e até mesmo ficavam na porta das escolas. Mídias comunitárias e comunicadores foram censurados por apenas denunciarem a cruel realidade. E, assim, ficou a Maré sob o comando do general Braga Netto por um ano e cinco meses. Tudo isso em meio a um governo de esquerda.

O mesmo general Braga Neto que ocupou cargo de assessor especial da Presidência, ministro da Defesa, ministro chefe da Casa Civil e chefe do Estado Maior do Exército. E chegou a ser candidato a vice na chapa com Jair Bolsonaro em 2022. O general da reserva que também foi preso em 14 de dezembro de 2024 pela Polícia Federal, acusado de obstruir investigações relacionadas à conspiração para impedir a posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva após as eleições de 2022.

Voltando ao período dos megaeventos, a Maré – por estar próxima às principais vias expressas da cidade: Linha Vermelha, Avenida Brasil e Linha Amarela, além do Aeroporto Internacional Tom Jobim – ficou sob comando do general Braga Netto, isto em meio a democracia brasileira. A comunidade serviu dei “laboratório de uma política de militarização” para o que seria o Rio de Janeiro e o país. Infelizmente, foi o que ocorreu anos depois, já em meio a uma transição de um governo de centro esquerda para um governo autoritário. Após o golpe que sofreu a presidenta Dilma Rousseff, o presidente interino Michel Temer, assinou em 2017, o decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) que autorizou a atuação de tropas das Forças Armadas na segurança pública do Rio de Janeiro.

E, assim, no Rio de Janeiro em 2018, sob GLO, foram as favelas e as periferias as regiões mais atacadas pelo Exército e pelas polícias militares e civis. Os tanques de guerra, os fichamentos, os tiroteios constantes, chacinas e assassinatos eram cometidos dentro dos territórios racializados do Rio de Janeiro. Relatório publicado pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, que fez visitas semanais nas favelas e periferias que estavam sofrendo com as incursões do exército, diz que: “Ao longo dos quase 8 meses de funcionamento do Circuito foram sistematizados cerca de 500 relatos pessoais, a partir de vivências pessoais, recolhidos nas ruas, becos, casas e espaços comunitários. Relatos aguçados pela presença das marcas de tiros expostas ou pela reconstituição improvisada na descrição do interlocutor”.

Neste mesmo documento, há relatos de assédios sexuais, estupros, assassinatos, desaparecimentos forçados, invasões a casas, dentre os mais diversos casos de violações de direitos. Infelizmente, o que ocorreu na Maré em 2014, ocorreu no Rio em 2018 e em todo o país nos seguintes anos sob um governo de extrema direita.

Avanço da milícia

DD 2019 (erickgn.github.io) MAPA GENI

“A capital fluminense é uma região marcada pelo predomínio das milícias”, atesta o relatório do Mapa dos Grupos Armados no Rio de Janeiro, divulgado em abril de 2024 pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI) da Universidade Federal Fluminense (UFF). O estudo analisou o avanço das milícias e facções criminosas no estado ao longo dos últimos dezesseis anos. Baseado em dados georreferenciados de fontes como Disque-Denúncia, operações policiais e registros de atividades imobiliárias, o estudo oferece uma visão detalhada da expansão territorial desses grupos, destacando mudanças significativas no controle de áreas da capital e seus impactos na segurança pública.

No período analisado, as milícias cresceram 204,6%, triplicando o seu domínio territorial. Enquanto isso, facções criminosas como o Comando Vermelho e Terceiro Comando Puro cresceram respectivamente 89,2% e 79,1%Outro dado alarmante indica que dos 155,33 km² de área da cidade dominada por algum grupo armado em 2023, 66,2% estavam sob influência das milícias em 2023. Comando Vermelho, Terceiro Comando Puro (TCP) e Amigos dos Amigos (ADA) concentraram 20,7%, 9,3% e 2,4%, respectivamente. Ainda segundo o estudo, dos 118,9 km² de extensão territorial sob domínio de algum grupo armado na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro até  2023, 83,1%, estavam sob controle das milícias, 7,7% sob o Comando Vermelho, 5,7% sob o TCP, e 2,7, sob o ADA.

Segundo análise elaborada pelo GENI/UFF, “o favorecimento do poder público tem sido decisivo para a expansão das milícias no Rio de Janeiro”. Além da baixa ocorrência de operações policiais nos territórios sob seu controle, os grupos se beneficiam da omissão dos órgãos de fiscalização para incrementarem suas atividades no setor imobiliário, seja no mercado formal ou por meio de construções irregulares. Essas são as principais conclusões do relatório “A expansão das milícias no Rio de Janeiro: uso da força estatal, mercado imobiliário e grupos armados”.

Ou seja, como visto ao decorrer do artigo, o Rio de Janeiro, um dos cartões-postais do país, passou a ser um laboratório de uma política de militarização para controle das áreas de favelas e periféricas. Uma militarização que fez aumentar o domínio das milícias nas áreas mais empobrecidas do estado, fazendo com que a população viva sob especulação imobiliária, cerco militarista, desaparecimento forçado e tantos outros problemas.

Ao longo dos anos, essa política passou a ser espelho para outros estados do país. São Paulo e Bahia, por exemplo, têm ganhado o noticiário com casos graves de militarização, assassinatos e chacinas. Infelizmente, trata-se de um país que ainda prioriza a militarização do que outras garantias de direitos. Um país que necessita urgentemente pensar em como diminuir o poderio das milícias nos parlamentos e nos territórios mais pobres.


Gizele Martins é comunicadora comunitária da Favela da Maré (BR). Jornalista (Puc-Rio) Mestre em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas (UERJ). Doutoranda em Comunicação (ECO/UFRJ). Atualmente, cumpre estágio doutoral no ICNOVA Lisboa. É autora do livro: “Militarização e censura – a luta por liberdade de expressão na Favela da Maré”

Katarine Flor é jornalista e coordenadora de comunicação na Fundação Rosa Luxemburgo.

Foto: Rio de Janeiro – Fuzileiros Navais participam de operação de segurança na favela Kelson’s, na zona norte do Rio de Janeiro. Crédito: Fernando Frazão/Agência Brasil