Transporte como direito

Passe livre – As possibilidades da tarifa zero contra a distopia da uberização

Como a valorização do transporte coletivo pode ajudar a superar desafios crescentes para a mobilidade urbana e minimizar os impactos negativos de aplicativos baseados na precarização de direitos e na falta de regulamentação.

Por FRL

Confira a seguir o texto de apresentação do livro Passe Livre – As possibilidade da tarifa zero contra a distopia da uberização, publicado pela Fundação Rosa Luxemburgo em parceria com a editora Autonomia Literária. O livro foi lançado durante o seminário internacional Transporte como direito e políticas de passe livre em debate, em 18 de setembro de 2019, em Niterói-RJ, em um debate entre o autor, o jornalista Daniel Santini, e a urbanista e professora Raquel Rolnik, que assina a contracapa. O prefácio foi escrito por Lucio Gregori, ex-secretário municipal de Transporte de São Paulo.

Mobilidade como direito, não como serviço
A adoção da tarifa zero está entre as soluções mais interessantes para cidades, com potencial para melhorar o trânsito, o bem-estar e a qualidade de vida não só de quem usa as redes abertas, mas de toda a população. Este livro busca reunir ideias e exemplos de adoção de passe livre com o intuito de contribuir para a construção de políticas que valorizem o espaço público e os bens comuns. Sistemas baseados em tarifa zero podem ser mais eficientes, ecológicos e econômicos.

Políticas públicas de passe livre ou tarifa zero são aquelas em que se prevê o uso de transporte coletivo sem cobrança direta. A criação e manutenção de redes que permitam circulação livre e fácil de pessoas é o melhor caminho para reduzir congestionamentos e diminuir a poluição. Sistemas coletivos abertos e interligados com estruturas que facilitem a integração com outros modais, como ciclovias, zonas de pedestre, estações de armazenagem e/ou compartilhamento de bicicletas, ou mesmo bolsões para estacionamento de automóveis e motos, permitem deslocamentos diversificados e têm impacto positivo geral sobre a qualidade de vida.

A abolição da cobrança direta de tarifas pode ser combinada com outros mecanismos de desincentivo ao uso de automóveis e melhoria da qualidade das conexões. Em especial em metrópoles, onde os problemas de mobilidade são complexos, é preciso pensar em soluções integrais, que envolvam não uma saída, mas várias. Nesse sentido, cabe destacar que, mesmo quando não há passe livre, cidades em que o transporte público é acessível e eficiente tendem a ter menos filas de automóveis, fumaça, barulho e violência no trânsito. Algumas adotam o princípio da modicidade tarifária, operando com a passagem no valor mais baixo possível. A lógica é semelhante à da tarifa zero. Em ambos os casos, mais do que um serviço, transporte é entendido como um direito universal a ser garantido pelo Estado.

A limitação das soluções individuais
Nas cidades que priorizam a circulação de veículos motorizados privados, a dinâmica é diferente. Quando as soluções individuais prevalecem, o impacto sobre a mobilidade coletiva é maior. A lógica do cada um por si com seu carro ou moto costuma resultar em ruas entupidas, ar sujo e caos cotidiano naturalizado. Isso porque cinquenta pessoas tentando atravessar a cidade em veículos particulares ocupam mais espaço e provocam mais impacto do que o mesmo grupo utilizando transporte coletivo. Simples assim. É claro que há nuances e, ao se analisar qual o sistema de mobilidade ideal, devem-se observar aspectos locais como densidade populacional, adensamento e distância entre residências e postos de trabalho, entre outras variáveis.

Não é uma coincidência, no entanto, que metrópoles que tentam abrir espaço para veículos privados costumam tornar-se mais congestionadas. Entre as que apresentam piores resultados em índices de comparação, estão capitais que optaram e seguem insistindo em investir massivamente em expansão viária e construção de pontes, túneis, rodoanéis e alargamento de avenidas. Ano após ano, no topo de rankings de congestionamentos organizados por multinacionais como Inrix Global Traffic Scorecard e TomTom Traffic Index estão centros urbanos que contam com ampla infraestrutura viária voltada para automóveis. Não faltam exemplos concretos de políticas equivocadas.

Poluição cobre São Paulo. Foto: Daniel Santini

Los Angeles, que hoje tem seis autoestradas consideradas as mais congestionadas dos Estados Unidos (as vias I-5, I-405, I-110, I-605, I-15 e I-210), por anos insistiu na política de tentar alargar e ampliar a capacidade de escoamento de veículos. Hoje, a lentidão é tão marcante que a cidade passou a ser considerada referência mundial de impactos de políticas rodoviaristas. Abrir mais e mais faixas alargando avenidas pode agravar em vez de melhorar o trânsito.

Mesmo cidades que têm redes de transporte público de massa tiveram problemas ao tentar ampliar o espaço para carros. Moscou, por exemplo. Yury Luzhkov, prefeito da capital russa entre 1992 a 2010, apostou no alargamento de avenidas e na abertura de anéis viários em série como solução para o crescente número de veículos privados em circulação. Durante sua gestão, o Anel Viário de Moscou (MKAD, sigla do nome em russo) foi alargado e passou de quatro para dez faixas. Com caráter de rodovia, o monstrengo criado contornando e cortando a cidade, possibilitou que o número de veículos aumentasse e, em médio prazo, o trânsito piorou não só na região, mas nas áreas conectadas.

Bogotá (Colômbia), Cidade do México (México), Istambul (Turquia) e São Paulo (Brasil) também estão entre as cidades com redes coletivas capazes de conduzir um número considerável de passageiros, mas que sofrem com a ameaça de colapso em função de engarrafamentos diretamente ligados à existência de superestruturas de asfalto e concreto como autopistas urbanas e elevados. Todas são metrópoles que figuram no topo dos índices globais de engarrafamentos.

Paralisia e frustração
Tomadas por automóveis, muitas das megacidades que seguem o modelo rodoviarista hoje sofrem com a sensação de paralisia, o sentimento permanente de frustração generalizada da população e a insatisfação com o transporte coletivo caro demais e/ou ineficiente. Foi em meio a essa carência quase desesperada por soluções de mobilidade que os aplicativos de intermediação de contratação de motoristas e entregadores surgiram no começo da década de 2010. O modelo de negócios baseado na precarização de trabalhadores e que se estrutura a partir da falta de regulamentação, restrições, taxação e regras, foi iniciado pela Uber em São Francisco em 2010, e expandido para Chicago e Nova Iorque em 2011. Índices de desemprego altos, com jovens procurando oportunidades, potencializaram a rápida expansão do sistema.

Em menos de uma década, a empresa se espalhou pelo mundo, ganhou concorrentes e contribuiu com uma massificação inédita do uso de veículos privados contratados para levar pessoas e mercadorias. Trabalhadores que antes tinham intervalos para aguardar clientes e encomendas agora circulam praticamente o tempo todo, uma corrida atrás da outra, por vezes cobrando menos do que o valor de passagens de ônibus e trens. Os traslados gerenciados por companhias de aplicativos consolidaram-se como uma tendência e passaram a ser vistos como luz no fim do túnel, saída inclusive para quem nunca teve condições de manter veículo próprio ou pagar os preços cobrados anteriormente por táxis.

Na lógica do transporte entendido como serviço e não como direito, os preços acessíveis, garantidos a partir da precarização das condições de trabalho, da ausência de taxas e normas mínimas para segurança e operação, fizeram com que muitos acreditassem que finalmente teriam acesso à infraestrutura viária que sempre beneficiou proprietários de carros e motos. A popularização dos aplicativos seria a maneira de equilibrar um sistema historicamente desigual, e, ainda que alicerçada na exploração de motoristas e entregadores, poderia beneficiar uma parcela da população que sempre teve que penar em ônibus e trens caros, superlotados e desorganizados.

O problema é que os aplicativos não mudam o paradigma injusto e ineficiente das cidades formatadas para priorizar a locomoção de veículos privados nem solucionarão a crise de mobilidade. Pelo contrário, a médio prazo, as plataformas digitais podem levar à superutilização de vias. O modelo de negócio consagrado pela Uber, a mais famosa multinacional do ramo, mas não a única, funciona de maneira parasitária sobre a infraestrutura urbana construída e mantida com recursos públicos. Se por um lado oferecem soluções imediatas de baixo custo para uma população desesperada para conseguir se locomover minimamente, por outro reforçam o entendimento de que mobilidade é algo comercializável, tornando a população refém de variações de preço conforme oferta e demanda em sistemas regulados sem transparência ou participação democrática.

Tecnologia social
O passe livre é uma tecnologia social capaz de democratizar de verdade o trânsito. O serviço de contratação via aplicativos, não. Abolir catracas é a maneira mais adequada e razoável de incentivar o uso de transporte coletivo, meio fundamental para garantir que tanta gente se locomova, em especial nas megacidades.

Em um primeiro momento, pode parecer difícil defender a ideia em um contexto em que a superlotação de trens, ônibus e metrô é regra e não exceção. Mas entender transporte como direito e não como serviço é justamente o primeiro passo para enfrentar a lógica de ter que operar linhas sempre no limite, com lotação máxima para garantir o equilíbrio no orçamento. É possível manter redes confortáveis e acessíveis baseadas em tarifa zero, basta alterar prioridades, redirecionar recursos e acabar com a dependência do pagamento direto da tarifa. Nas próximas páginas estão reunidas sugestões e exemplos de como isso pode ser feito. São muitas as alternativas à cobrança direta de passagens.

É melhor um formato em que o bem público é valorizado e o transporte é compreendido como um direito que deve ser oferecido de maneira universal, ou um sistema em que viagens individuais são priorizadas e comercializadas como serviços, com soluções privadas ofertadas conforme demanda do mercado? Contrapor essas duas concepções é também uma forma de explicitar diferenças entre dois padrões radicalmente opostos.

Políticas de tarifa zero podem ser uma saída muito mais razoável, racional e sustentável do que lotar as cidades de motoristas “empreendedores” sub-remunerados e sobrecarregados em um complexo que favorece a concentração de renda e impacta negativamente a mobilidade coletiva.

Mas como abolir catracas e instituir redes livres de transporte?

Passe livre
As possibilidades da tarifa zero contra a distopia da uberização
Daniel Santini

Autonomia Literária e Fundação Rosa Luxemburgo
São Paulo, São Paulo, setembro de 2019

ISBN: 978-85-69536-59-8

A  Fundação Rosa Luxemburgo disponibiliza gratuitamente exemplares* para associações de ciclistas e pedestres, coletivos que lutam por mobilidade justa, gestores públicos que trabalham no desenvolvimento de políticas de transporte livre e bibliotecas de acesso público. Entre em contato para saber como retirar o seu. Para uso privado, é possível adquirir diretamente com a Autonomia Literária.

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