Preservar a memória negra é um ato político

No texto, a arte educadora Mafuane Oliveira discute a importância de visibilizar as lutas protagonizadas por pessoas negras como formas de valorizar os espaços de liberdade, cuidado e resistências
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Preservar a memória negra é um ato político
05/07/2023
por
Mafuane Oliveira*

(…) Mudamos o jogo da memória se começamos a perceber que, nessa luta, sujeitos por quem inclusive temos afeto foram também importantes para termos a medida da presença negra para além do Pelourinho, além do chicote, além da senzala, Sujeitos que nos são próximos têm que ser objetos das nossas prioridades como fazedoras de memórias negras antirracistas. Negras antes de tudo, porque essa desculpa de colocar um antirracista na frente para ficarmos de escanteio também não vale.

Ana Flávia Magalhães 

(Insumos para Ancoragem Negra. 2022)

Arte do livro “Raízes e Asas: memória para autonomia negra”
Arte do livro “Raízes e Asas: memória para autonomia negra”

O trecho acima é a transcrição de um fragmento da aula da historiadora e ativista, Ana Flávia Pinto Magalhães, durante a primeira edição do curso Fazedoras Memórias Negras, em 2021. Suas palavras resumem a realidade de um Brasil que até pouco tempo narrou a “História oficial” pela perspectiva de sujeitos majoritariamente brancos, masculinos, concentradores de renda e numericamente minoritários, diante de uma população onde 56% das pessoas se autodeclaram negras. Mesmo assim, uma minoria privilegiada reservou as populações negras e indígenas a condição obrigatória de “o outro”, como coadjuvantes de suas próprias histórias, invisibilizando as lutas e contribuições dessas populações em prol da construção de um país independente e democrático.    

Decidir o que é História e quais memórias coletivas merecem ser preservadas, é um ato político. Visibilizar as lutas protagonizadas por pessoas negras tanto na macro história das civilizações quanto nas micro histórias de vida, bem como suas ações cotidianas experienciadas coletivamente são formas de valorizar os espaços de liberdade, cuidado e resistências que também integram a memória negra brasileira.

A Fundação Rosa Luxemburgo tem apoiado ações propostas por entidades negras em prol do cuidado da memória e histórias da sociedade civil brasileira. No dia 22 de junho de 2023, a sede da Fundação em São Paulo, foi palco de uma dessas ações abrindo a programação do II Festival da Casa Sueli Carneiro, com o lançamento do livro “Raízes e Asas: memória para autonomia negra”, publicado pela editora Oralituras. A publicação é resultado da segunda edição do curso “Fazedoras de Memórias Negras”, realizado pela Casa Sueli Carneiro em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo. O evento contou com a presença de Christiane Gomes, da coordenadora de projetos da Fundação Rosa Luxemburgo, Mafuane Oliveira, da consultora de Projetos Educacionais e Culturais, Maitê Freitas, mestra em Estudos Culturais e Natália Carneiro, coordenadora de comunicação institucional na Casa Sueli Carneiro.

O Festival da Casa Sueli Carneiro, é dedicado à promoção do legado intelectual de uma das maiores ativistas brasileiras que atua desde o final dos anos 70 na luta contra o racismo, o sexismo e as opressões sociais. As atividades foram pensadas com o objetivo de enaltecer o legado de Sueli Carneiro e suas contribuições ao pensamento feminista negro, além seu reconhecimento como uma liderança importante na criação das primeiras políticas reparatórias para pessoas negras no Brasil. Atualmente a Casa Sueli Carneiro ocupa a construção onde a ativista e pensadora viveu por 40 anos.

FAZEDORAS DE MEMÓRIAS

A primeira ação oferecida pela Casa Sueli Carneiro foi o curso “Fazedoras de Memórias Negras”, no segundo semestre de 2021, com coordenação de Bianca Santana, jornalista e diretora-executiva da Casa Sueli Carneiro, em parceria com Gabriela Gaia, conselheira da Casa, que também exerce o cargo de professora adjunta da faculdade de arquitetura da Universidade Federal da Bahia. O projeto tinha como objetivo oferecer atividades formativas de criação e fortalecimento das capacidades de registrar e disseminar memória negra nas diversas regiões do Brasil.

Em um dos períodos mais difíceis da humanidade, em meio a fase mais restritiva da pandemia mundial, causada pela COVID-19, o curso converteu as tardes de segunda-feira em frestas de liberdade, cura, acolhimento, construção de saberes e difusão de tecnologias ancestrais. Os encontros virtuais mantinham os isolados pela crise sanitária, conectados, criando um tempo-território suspenso. Pessoas e histórias de diferentes Brasis se uniam formando um aquilombamento virtual[1], apoiado por especialistas que inspiravam o grupo a cuidar das memórias negras nos seus mais variados sentidos e formatos. Desta primeira edição nasceu o livro “Insumos para Ancoragem Negra”, também disponibilizado gratuitamente pela Fundação Rosa Luxemburgo.  

RAÍZES E ASAS: MEMÓRIA PARA AUTONOMIA NEGRA

Diante do resultado positivo e do impacto da primeira edição, a Casa Sueli Carneiro ofereceu uma segunda edição do ciclo formativo em 2022. Que teve como facilitadoras Mafuane Oliveira e Lindinalva Barbosa, Mestra em Estudos de Linguagem e ativista do Movimento de Mulheres Negras. Ambas facilitadoras, foram alunas na primeira edição, e assumiram o compromisso de dialogar com a segunda turma sobre os projetos de memória de cada participante, conectando as reflexões, com os textos e vídeos produzidos na edição anterior do curso. Desta maneira foi possível criar um elo entre especialistas e cursistas das duas edições.

Quando Casa anunciou que estavam abertas as inscrições para a segunda edição, ao todo, 888 pessoas se inscreveram, demostrando interesse em promover ações políticas de fortalecimento e difusão das culturas negras! Para a equipe da Casa Sueli Carneiro foi extremamente desafiador selecionar apenas 40 projetos.

A publicação do livro “Raízes e Asas: memória para autonomia negra” é uma forma de dividir os conhecimentos elaborados a partir da transcrição das aulas. Diante do número elevado de inscrições a Casa Sueli Carneiro e Fundação Rosa Luxemburgo seguem provocadas a gestar mais atividades que possam acolher tanta gente interessada na construção desses saberes coletivos e também celebrar o legado de Sueli Carneiro.

Neste livro temos autoras e autores de áreas diversas, com trajetórias de vida e ativismos distintos, mas com um compromisso em comum fortalecer “Raízes e Asas” para cuidar da memória e autonomia das populações negras. Os textos foram organizados de acordo com os quatro módulos do curso, sendo eles:

  • Temporalidades, Memória e Patrimônio
  • Arquivos – Organização e Pesquisa.
  • Corpo e Oralidade
  • Território e narrativa

O módulo Temporalidades, Memória e Patrimônio, teve como objetivo promover reflexões que confrontassem a cronologia ocidental, fomentar conversas sobre as cosmogonias afro-brasileiras que têm diferentes e complexas percepções do tempo. O módulo propôs estabelecer diálogos com o tempo histórico e as teorias de construção e disseminação de memória. Nesta publicação contamos com a contribuição das professoras Angélica Ferrarez, Aza Njeri e do professor Flávio Gomes.

Nos textos de Luis Ludmer, Ionara Lourenço e Paulo César Ramos, professores do módulo Arquivos – Organização e Pesquisa, encontramos a riqueza das possibilidades de sistematização e organização de acervos. A experiência pessoal e profissional do trio de especialistas aponta caminhos para olharmos documentos escritos, fotografias, recortes de jornal, objetos e livros como fontes que podem ser organizadas e catalogadas de forma intencional como arquivos públicos.

No módulo Corpo e Oralidade, refletimos sobre como as culturas tradicionais registram e disseminam memória por meio da oralidade e de práticas corporais como a dança e o canto. Os textos transcritos são frutos dos encontros com Mestra Janja, que começou seu processo de iniciação na capoeira em 1982, Capitã Pedrina de Lourdes, capitã de massambike a 41 anos, e mestra de outras tradições afro-brasileiras de origem Bantu. E por último com Ekedy Sinha do Terreiro da Casa Branca, que é um dos mais antigos terreiros afro-brasileiros na capital baiana e também no Brasil fundada por volta de 1830. O trio de mulheres negras nos revelou a diversidade de tradições afro-brasileiras, suas respectivas práticas culturais permeadas de memórias que precisam ser valorizadas e registradas.

No último o módulo Território e Narrativa, os especialistas Adélcio Souza Cruz, Diosmar Filho e a especialista Raissa Albano de Oliveira, mostram que os lugares na forma que são ocupados, formatados e constituídos carregam memórias. Histórias essas que muitas vezes são valorizadas e tantas outras são apagadas. A memória negra pode ser percebida nas marcas e transformações dos territórios. Na contemporaneidade, há diversas narrativas de memória que retomam informações guardadas no espaço físico.

O livro Raízes e Asas: memória para autonomia negra, celebra a presença de especialistas incríveis que gentilmente revisaram as transcrições das aulas e autorizaram a publicação, possibilitando a fotografia de muitos saberes e memórias, como diria o filosofo malinês Amadou Hampâté Bâ.

Além das vozes das/dos especialistas e mestras convidadas, as entrelinhas dos textos são compostas por sonhos, projetos, perguntas e momentos de troca coletiva das/dos participantes que aconteceram durante as aulas online, que motivaram as falas das autoras e autores. Momentos que não foram transcritos para preservar a intimidade grupo, em sua maioria formado por mulheres interessadas em promover ações voltadas para a preservação das culturas negras. Esta publicação não é o produto final de um processo, mas é o ponto de partida para a criação e difusão de novas Memórias Negras. As palavras aqui fixadas são o retrato da potência dos encontros e das memórias negras. 


[1] De acordo com o pensamento da intelectual Beatriz Nascimento aquilombar-se é o ato de assumir uma posição de resistência e contra-hegemônica a partir de corpos políticos negros.


    * Mafuane Oliveira é arte educadora, pesquisadora e contadora de histórias, graduada em pedagogia. Criadora da Cia Chaveiroeiro, companhia de narração de histórias voltada a pesquisa, difusão e transcriação de narrativas tradicionais africanas e luso-afro-ameríndias. Trabalhou como arte educadora no Núcleo de Educação Étnico-racial da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, e como professora do curso de formação de contadores de histórias do SENAC-SP.