Vilma Reis: são as mulheres negras que qualificam a democracia brasileira

Para socióloga, referência na ação política brasileira, esquerda nacional precisa compreender a importância da alternância de poder
19/07/2021
por
Christiane Gomes, Jorge Pereira e Torge Loeding

Edição: Christiane Gomes

Para socióloga, referência na ação política brasileira, esquerda nacional precisa compreender a importância da alternância de poder

Vilma Reis – Arquivo pessoal

Amnésia de classe. Segundo Vilma Reis, este é um sintoma frequente na esquerda brasileira e em seus partidos, construídos e apoiados em suas bases por mãos negras. Nesta entrevista concedida à Fundação Rosa Luxemburgo, a socióloga, ativista e ex-ouvidora geral da defensoria pública do estado da Bahia fala sobre a intensificação do protagonismo do movimento negro na ação política e na defesa de direitos no Brasil, a movimentação política para 2022, entre outros pontos.

Confira:

FRL: Quando falamos da conjuntura atual, estamos em um processo de intensificação das mobilizações no Brasil. Vimos isso fortemente em diversas capitais do país. Depois de uma discussão difícil dentro das forças progressistas da esquerda, pelo perigo que mobilizações na rua podem trazer em tempos da pandemia, a escolha foi sair na rua. Que lição podemos tirar desse processo?

VR: A vida se dá na rua. Essa é uma marca da nossa cultura. No ano de 2020, a gente ficou muito focada em buscar socorro para as nossas comunidades. A Coalizão Negra Por Direitos, por exemplo, — onde 80% das 200 organizações que a compõe são formadas por mulheres negras ou dirigidas por elas, como é o caso da Coletiva Mahin, Criola, Geledés — decidiu, no dia 18 de fevereiro de 2021, tomar as ruas, quando nenhum outro movimento tinha feito uma grande manifestação ainda contra esse governo. É importante dizer que no dia 30 de junho de 2021 foi feita a entrega do superpedido de impeachment desse Presidente da República, mas, em junho de 2020, a Coalizão já havia entrado pela primeira vez com o pedido. Ou seja, um grupo de 200 organizações negras no Brasil entrou com um pedido de impeachment desse governo, isso é histórico! Nós já tínhamos feito outras coisas ousadas no país, mas fazer o pedido de impeachment de um presidente, foi a primeira vez. Nós fizemos as manifestações, em fevereiro de 2021, por auxílio emergencial e vacina, porque nosso povo estava morrendo sem UTI, sem oxigênio. É a população negra, é a população pobre, é a população que vive nas periferias do Brasil que estava mais vulnerável diante desse horror que foi um governo tramar, espalhar, de forma fascista o vírus.

Ato realizado no dia 3 de Julho no Paraná – Foto: MST/ Diangela Menegazzi

FRL: Ainda sobre o impeachment, Bolsonaro está sob muita pressão. O chamado centro político também está buscando saídas sem ele. Seria agora uma oportunidade para sua saída? Seria também uma desvantagem Bolsonaro cair e abrir caminho para uma terceira opção? Na polarização Bolsonaro contra Lula, quem sempre ganha parece ser o Lula, não?

VR: É importante considerar que esse governo — como todos os governos de direita e extrema direita que ganharam as eleições no entorno do mundo, como nos Estados Unidos e na Hungria — tinha na luta contra corrupção sua principal bandeira. Nesse momento, o governo Bolsonaro é o epicentro da corrupção. Eles tramaram e não compraram a vacina até garantir os acordos de desvio de dinheiro público. Então, nós entregamos esse superpedido de impeachment em um momento no qual a principal bandeira deste governo desmoronou, se desfez na frente de toda a população brasileira. 

O chamado “Centrão” é um grupo de fisiologismo político, que historicamente sempre dá um jeito de se manter no poder. O que estamos construindo nesse momento é uma movimentação política de alguns quadros nacionais da esquerda para garantir um ambiente capaz de não ter essa terceira via. A burguesia brasileira não vai conseguir constituir a terceira via porque nós estamos num nível de articulação que vai garantir a vitória de Lula. Sabemos que a vitória de Lula se constitui como um processo de reconstrução nacional, mas nós, mulheres negras, estamos dizendo que não se pode ganhar a eleição e ir para conciliação com esse Centrão de novo. O que nós, mulheres negras, estamos dizendo é: sem nós o Brasil não vai. Nós, mulheres negras, estamos colocando a pauta sobre a mesa e dizendo que não é possível ganhar as eleições, sem discutir o fim da guerra às drogas, a morte de 60 mil jovens negros por ano, o desaparecimento de 65 mil crianças negras por ano, como os três meninos de Belford Roxo*. Não podemos ganhar as próximas eleições no Brasil e não discutir a demarcação das terras indígenas e um novo marco de convivência com a Amazônia.

Nós não podemos ganhar as próximas eleições e não repartir o poder com as mulheres negras, já que nós, população negra, somos 120 milhões de pessoas. Se as pesquisas de intenção de voto nos mostram que 58% dos votos de Lula estão entre os pretos, ele não pode montar um gabinete parecendo que o governo é na Suécia, não é possível! Então, essa é uma questão decisiva.

FRL: A Coalizão Negra por Direitos tem feito um trabalho de incidência na política nacional, atrelada com um trabalho de base de forma a fortalecer mutuamente estes espaços. Como você mesma mencionou, a organização foi a primeira a convocar manifestações de rua, mesmo com a pandemia, diante tantas tragédias. Gostaria que você falasse mais sobre este protagonismo que os movimentos negros e de mulheres negras tem tido na ação social do país.

 VR: Temos uma fotografia do poder no Brasil, que é desconectada de quem somos. O que nós, mulheres negras, estamos lutando para mudar é exatamente isso. Nós temos a esquerda mais branca do mundo. Os movimentos de esquerda na Europa, por exemplo, nos dizem que há uma mudança. O esforço que o PSE, Partido Socialista Espanhol, fez em suas bases, para que os imigrantes votassem nas últimas eleições e se constituíssem no grupo político, mostra que a esquerda brasileira está passando por uma profunda vergonha internacional! 

No Brasil temos uma esquerda branca, constituída nos anos de 1980, que governa os partidos com mãos de ferro. Homens brancos, mais velhos, de classe média e classe média alta, sofrendo amnésia de classe e, inclusive, dizendo que as lutas mais potentes que temos (negras, feministas e trans) não passam de discurso identitário. 

Para refutar isso recorremos a Anibal Quijano e a Lélia Gonzalez para dizer que a questão racial é o centro da pauta política brasileira. A gente costuma dizer que classe pura dá gastura! Isso significa que só o discurso de classe não responde à questão brasileira. Nesse momento, em que recorremos à Lélia Gonzalez, também discutimos marxistas negros no Brasil, como Clóvis Moura, que tem um pensamento monumental e apontou essas questões para nós há mais de 40 anos. 

O homem branco na política brasileira, quando cansa do seu primeiro, segundo, terceiro, quarto, quinto, sexto mandato, passa esse legado político, para outro homem branco, mais jovem. Não existe paridade racial e de gênero dentro da estrutura política brasileira e a gente tem um sistema político que não se modifica exatamente porque é uma política que está baseada no familismo, uma prática da velha direita brasileira, conservadora, assassina, ruralista. Só que hoje você já começa a ver essas práticas também na esquerda branca brasileira, que não admite nenhuma alternância de poder e nenhum equilíbrio.

Nosso povo negro saiu com uma mão na frente e outra atrás depois da abolição e, ainda assim, construiu os partidos de esquerda, as carreiras políticas de Lula, de Haddad, de Dilma, de todos os nossos quadros políticos. Por isso, precisamos que esses quadros dividam o poder político com as mulheres negras, porque fomos e somos nós que mantemos a luta em nossas comunidades. É a gente que qualifica a democracia brasileira. Quem empurra a esquerda para esquerda somos nós. Ao negar os efeitos da escravidão e a existência do racismo, essa esquerda vai para a conciliação com o Centrão, com os fazendeiros e os latifundiários. Então, é a gente que qualifica a atuação política da própria esquerda, senão, ela fica sofrendo de amnésia de classe e negando a existência do racismo, negando o horror da misoginia e da violência secular do patriarcado.

FRL: Não tem como falar de popular e de classe no Brasil sem falar em gênero e raça, qualquer tentativa sem fazer isso é uma abstração. A realidade de tudo que é popular no Brasil é cortada pela raça. E também com relação aos efeitos da desigualdade social, quem vai sofrer lá na ponta, certamente, vai ser a população negra e as mulheres. A Coalizão tem apostado em ações solidárias de distribuição de alimentos, de vinculação com as necessidades da população dessa base da pirâmide. Eu queria que você comentasse a importância desse tipo de perspectiva de ação para a esquerda.

VR: A Constituição de 1988 tinha um desenho. Pela primeira vez, em 1986 a gente lutou via MNU (Movimento Negro Unificado) para constituir uma bancada de parlamentares negros e negras. A dobradinha, na Bahia, de Luiza Bairros e Luiz Alberto ou a candidatura de Edson Cardoso é uma coisa histórica porque são pessoas que jamais se colocariam para esse papel por uma questão individual, como a própria Lélia Gonzalez e Carlos Alberto Oliveira, que deu nome à lei que criminalizou o racismo na Constituição de 1988. 

É importante dizer o quanto é necessário fazer políticas de Estado. Veja o bolsa família, o governo ataca, mas não consegue acabar com ele. Outro ponto que eu considero importante nessa questão, é o debate em torno da distribuição da riqueza no Estado brasileiro: 1% da população brasileira controla 50% da riqueza em plena pandemia. Estamos vendo uma multiplicação de bilionários. Isso é uma promiscuidade, é um escândalo! Nós precisamos pensar em como distribuir renda e nesse sentido, precisamos ter políticas de Estado também.

Ricardo Henriques, lá em 2003, quando ainda estava no IPEA, já sabia que, se o Brasil continuasse sem distribuir renda e sem políticas de ações afirmativas, levaria 132 anos para superar essa situação de pobreza que nós temos, demarcada por raça, gênero e suas iniquidades.

No momento em que a gente fez ali uma rápida movimentação — fruto da pressão dos movimentos negros, dos movimentos de mulheres negras — é que foram instituídas as cotas no Brasil, no minuto que nós fizemos isso, a gente alterou a fotografia das universidades brasileiras. Também, precisamos alterar a fotografia do mundo do trabalho. Essa é a primeira vez no Brasil, em uma década, que temos, por exemplo, dentro de organizações da Cooperação Internacional, representações de mulheres negras.

Nós, da Coalizão Negra Por Direitos, ousamos realizar uma campanha para arrecadar 133 milhões de reais para socorrer 223 mil famílias! É importante porque esse é um país em que o dinheiro da Cooperação Internacional, em geral, chega com muita timidez às organizações negras. É a primeira vez que começa a ter um outro tipo de diálogo. Quando a Coalizão faz uma ação de incidência internacional, dentro do Congresso, pauta a Comissão Interamericana com a questão do genocídio da juventude negra e a sabotagem que o Estado brasileiro faz à vida das mulheres negras, à infância e à juventude negra, o empenho é para que vários campos da sociedade brasileira enxerguem isso.

Em 2 anos de Coalizão, a gente incidiu e fez com que Benedita da Silva chegasse com poder no TSE e forçasse que órgão, mesmo dirigido por Barroso, se manifestasse sobre a questão, pela primeira vez, do fundo partidário. Isso é uma força política que a gente ficou apostando sempre nas organizações com homens e mulheres brancas, mas compreendemos que somos nós que precisamos fazer. 

O cartão alimentação que a Coalizão tem colocado na mão das mulheres é de R$192,50 reais. Isso é uma vergonha para o Estado brasileiro! São 60 mil cartões para distribuir alimentos do MPA (Movimento de Pequenos Agricultores) e do MST, ou seja da agricultura familiar, da agroecologia. Que outra organização nacional conseguiu fazer uma ação política dessa? Essa campanha nos bota em algo muito grandioso no Brasil e é uma escola de ciência política muito potente na prática, porque o critério da verdade, trazendo aqui o velho Marx, é a prática! Onde é que você produz consciência? A partir das suas condições de existência. É isso que nós estamos fazendo.

Fazer uma campanha desse tamanho é desafiar o estado brasileiro a fazer política em escala, porque o Estado brasileiro se acostumou a fazer política até a página três. A gente, nesses 13 anos de governos populares liderados pelo PT, em coalizão com muitos outros partidos da esquerda, a recomendação que a gente faz é: as políticas precisam ser de Estado, em escala. O Estado é o grande financiador das riquezas dos brancos brasileiros, então, esse Estado precisa financiar para que possamos enfrentar o empobrecimento das populações negras no Brasil e das populações indígenas. Então, você tem que ter um Estado que promova o PNAE, o Programa Nacional de Alimentação Escolar, onde há a obrigação de comprar 30% da agricultura familiar e das cooperativas e todas essas nossas iniciativas. Se você institui essa regra no Brasil de compras públicas obrigando os municípios, os estados e a federação a comprar e a contratar as empresas das pessoas negras, dos grupos negros, a gente muda a história do enriquecimento no Brasil. E se inicia um processo de repartir a riqueza. É distribuindo renda que a gente também enfrenta o racismo e a misoginia. Essa violência econômica precisa ter um tipo de resposta em escala e como política de Estado.

FRL – Para finalizar, há algo mais que você queira tratar?

VR: Eu só quero terminar dizendo que há alguns anos atrás, por volta de 1996, Luiza Bairros escreveu um texto dando uma resposta a um desses pesquisadores norte-americanos que questionavam o porquê de não conseguirmos tomar o poder político. A questão é que enfrentamos um nível de violência colonial que as pessoas não têm dimensão, mas há vitórias fundamentais: termos sobrevivido e se constituído numa maioria em um país que sempre apostou em nossa morte. 

A segunda vitória foi a gente desmascarar a tese da democracia racial. Outra conquista fundamental foi ter construído um movimento com capacidade de disputar narrativa e ter nossos intérpretes do Brasil como: Abdias Nascimento, Guerreiro Ramos, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento e a própria Luiza Bairros. A gente debater essa narrativa e a gente ter chegado à Durban, na 3ª Conferência Mundial Contra o Racismo, tendo a segunda maior delegação do mundo e tendo inclusive conquistado a relatoria daquela conferência, com uma mulher da sociedade civil, que foi a Edna Roland. 

A nossa quarta vitória, e a gente fez isso e voltou ao Brasil, a gente conseguiu a tese das cotas, inclusive tendo toda a esquerda branca e a mídia corporativa contra nós. Partimos para um pilar dessa nossa revolução negra no Brasil que é disputar o poder político e nós cumprimos as outras tarefas com tanta força, com tanta qualidade, que a gente chega aqui de pé e cabeça erguida, com altivez, sem tutela, com muita autonomia política, sabendo o que a gente quer, isso é muito importante.

*Em 26 de dezembro de 2020, três meninos negros da Baixada Fluminense desapareceram e até a realização desta entrevista a Polícia ainda não tinha nenhuma explicação.