Michael Löwy

“A esquerda precisa romper com o paradigma da produtividade”

Citada por diversas vezes pelo filósofo marxista italiano Antonio Gramsci, a combinação entre o pessimismo da razão com o otimismo da ação cabe perfeitamente à conjuntura mundial, marcada pelo avanço da direita e por Estados cada vez mais atrelados ao mercado financeiro. Esta é a percepção  do sociólogo brasileiro, radicado na França

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Por Christiane Gomes
Daniel Santini
Gerhard Dilger
Jorge Pereira Filho
Verena Glass

Dentre as iniciativas de resistência e alternativas apontadas pelo diretor emérito do Centre National de la Recherche Scientifique, na França, e pesquisador da história do marxismo na América Latina estão as lutas sociológicas. Para ele, trata-se dos combates mais importantes que vêm acontecendo hoje. “São lutas de alta organização local e comunitária, indígenas e de periferias, com uma convergência: uma auto-organização pela base, uma espécie de democracia direta em cima de pontos socioecológicos. Se colocarmos uma perspectiva, a longo prazo, de uma mudança radical, que é o que o programa ecossocialista propõe, isso vai implicar também a visão de uma outra democracia, porque a que vivemos é de muito baixa intensidade”, destaca.

Em entrevista realizada na Fundação Rosa Luxemburgo, Löwy defende a importância do pluralismo da percepção socioecológica e afirma que é tarefa da esquerda encontrar maneiras de costurar esta proposição com suas questões clássicas.

FLR – Em termos de conjuntura mundial, o crescimento do fascismo está acontecendo em todo o lugar. Ao mesmo tempo vemos um crescimento de movimentos como Nuit Debout, na França e os Indignados, na Espanha, que propõem uma outra institucionalidade. Como você analisa isso pensando em termos amplos? A esquerda mundial também está perdida?

Michael Löwy – Eu não tenho uma explicação universal para a questão deste ascenso da ultra e extrema direita. Mas em cada lugar há características específicas. No Brasil ela é caracterizada pela nostalgia da ditadura militar, o que é profundamente preocupante.  Já na Europa é o racismo e a xenofobia que estão em plena ascensão vertiginosa, aproveitando atentados e a chegada de refugiados que estão sendo usados com muito sucesso por esta direita, o que mostra que a explicação não é econômica. Alguns amigos me dizem que é por causa da crise, do desemprego, mas não é isso. A prova é que os países que mais estão sofrendo com a crise econômica, como Grécia e Espanha, são os lugares onde a força dessa extrema direita é mais fraca e a esquerda é mais forte. A Áustria e a Suíça, que não sofreram os prejuízos econômicos, são países onde a direita fascista é mais forte, onde quase ganharam as presidenciais na Áustria e estão em maioria na Suíça. Agora, isso não quer dizer que a esquerda sumiu do mapa. Em alguns países até conseguiu se fortalecer como na Grécia, mas foi estrangulada pelo Banco Europeu e a oligarquia neoliberal europeia, apesar do apoio da maioria da população.

Na Espanha, o fenômeno Podemos, com todas as suas questões e problemáticas, é uma tentativa de romper com a jaula de ferro neoliberal; em Portugal, apesar de haver um silêncio a respeito, temos  o único governo de esquerda da Europa. Um governo socialista,  mas que passou com um acordo com o Partido Comunista e o Bloco de Esquerda e que, por enquanto, tem conseguido ser um tanto de esquerda apesar da pressão terrível. Há também o fenômeno Jeremy Corbyn, que pela primeira vez depois de séculos que se tem uma direção de esquerda no Partido Trabalhista, na Grã Bretanha, e também Bernie Sanders nos Estados Unidos.

Claro que eles não estão no poder e não irão ganhar as eleições, mas contam com o apoio de grande parte da juventude, setores sindicais, o que é novo. A questão é contraditória, claro que predomina essa onda direitista, na Europa com os racistas e fascistas; na América Latina os neoliberais, saudosistas da ditadura. Mas ainda há, além dos movimentos sociais, uma movimentação por baixo, que é muito positiva. Devemos combinar o pessimismo da razão com o otimismo da ação.

FRL – Há uma vertente da esquerda que é muito crítica à estes movimentos como Podemos, Indignados e Occupy, por considerá-los inconsequentes, sem limites e sem contribuição com a perspectiva da disputa da luta de classe, o que, por vezes, impede a concretização de algumas alianças que podem ser estratégicas. Como você avalia isso?

Löwy – Bem, se pegarmos alguns exemplos como os Indignados na Espanha, na Grécia e o Occupy Wall Street nos Estados Unidos, eles tiveram um papel fundamental de mobilizar gente, principalmente a juventude, mas não só. Eles também deslegitimaram o discurso oficial neoliberal e avançaram em uma agenda ampla. Conseguiram dar uma sacudida na jabuticabeira e depois destes enfrentamentos e repressão, boa parte deles decidiu partir para o ataque no campo político partidário, o que resultou, por exemplo na campanha do Bernie Sanders, algo inédito que nunca teve tanto impacto. Na Grécia isso resultou na vitória de Alexis Tsipras mesmo com todos os problemas; na Espanha, com a conquista das prefeituras de Barcelona e Madri, com coligações amplas, dirigida por figuras que são frutos destes movimentos. Estes fatos mostram que tais movimentos podem ter uma expressão política. Acho que estas críticas de que estes movimentos só fragmentam e dividem, não tem sentido, estão fora de foco. Mas não foi em todos os países que isso aconteceu. Na França isso não vingou, por exemplo, apesar do Nuit Debout. A grande mobilização que vimos contra as políticas neoliberais naquele país foi muito importante. Mobilizou, mas não foi suficiente.

FRL – O Estado não responderia mais à estas pressões de mobilizações populares? 

Löwy – Não dá para ter uma regra geral. Há uma resistência, porque quem está por trás do Estado é o capital financeiro. O Estado é uma ferramenta do capital financeiro. Na Europa , no caso da França, um governo oficialmente de centro-esquerda, tendo à frente o François Hollande e toda a sua equipe, preferiu cometer um suicídio político do que deixar de cumprir com as expectativas dos “patrões”. O patronato exigiu uma reforma neoliberal na legislação trabalhista com um contexto onde 60 % da população contra, juventude contra, sindicato contra, esquerda contra e mesmo no partido socialista, uma minoria também estava contra; daí o governo, que não tinha maioria no Congresso, precisou passar a lei por decreto e o resultado é que o Hollande, eleito com mais de 50% tem agora uma popularidade em torno de 10%. Ou seja, eles cometeram um suicídio político. Mas preferem desaparecer a cumprir com agenda do mercado financeiro.

FRL – Na Alemanha, a situação ainda não é tão dramática, mas eles estão seguindo a mesma cartilha neoliberal,  com os tratados “vampiros” de livre comércio, apoiados pela social-democracia alemã. Você menciona a social-democracia como uma força que deveria estar nesta frente ampla de esquerda. Em Portugal já está acontecendo, em Berlim agora também. Mas como você definiria a social-democracia hoje em dia, incluindo neste pacote o PT, como uma expressão latino-americana desta social-democracia?

Löwy – Olha, é difícil generalizar. Em alguns casos a social-democracia foi tão para a direita que passou a ser apenas um componente desta frente e quase desapareceu. O caso do Pasok, na Grécia, é o mais evidente, está havendo uma “pasoquização” da social-democracia em outros países também e não sabemos onde irá. Em alguns países, a social-democracia e a centro-esquerda já passaram completamente para o outro lado, como é o caso da Itália, Alemanha e França. Ao mesmo tempo, a questão é mais complexa. Na França, por exemplo, Benoît Hamon, o candidato mais à esquerda, ganhou as prévias do Partido Socialista, ganhou as primárias, o que mostra as contradições. O partido trabalhista, de repente, teve uma orientação de esquerda.

Não podemos generalizar, mas é nítido que há uma guinada tão fanática e obtusa ao neoliberalismo quem vem provocando uma espécie de suicídio político, como é o caso da Grécia, da França e possivelmente será o da Itália também. No Brasil é um pouco diferente, porque o PT, ao menos em sua origem, era mais do que um partido de social-democracia,  apesar de que acabou se transformando nisso, mas é um caso diferente.

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FRL – Em seu livro lançado em 2016, Afinidades revolucionárias: nossas estrelas vermelhas e negras: por uma solidariedade entre marxistas e libertários,  você promove  a conexão de dois conceitos muito interessantes, que é a questão da democracia direta, a gestão social da vida comunitária e a ecologia, o ecossocialismo. Como você vê a ligação entre estas duas perspectivas?

Löwy – As lutas socioecológicas são o mais importante que vem acontecendo hoje,  porque são lutas de alta organização local e comunitária, indígenas e de periferias, com uma convergência: uma auto organização pela base, uma espécie de democracia direta em cima de pontos socio-ecológicos. Se colocarmos uma perspectiva, a longo prazo, de uma mudança radical, que é o que o programa ecossocialista propõe,  isso vai implicar também na visão de uma outra democracia, porque a que vivemos é de muito baixa intensidade.

Precisamos de uma democracia radical que combine formas de democracia direta com a representativa, pois não se pode totalmente passar da representação, essa é um pouco da discussão que estamos tendo com os companheiros libertários, ainda que alguns reconheçam isso também; e dar um peso à democracia direta, tanto na gestão local das fábricas, comunidades, universidades, escolas, hospitais etc. quanto na consulta da população. Grandes questões ecológicas, por exemplo, precisam passar pela consulta da população. Você quer mais transporte público e menos espaço para automóveis? Você quer diminuir o consumo de eletricidade para diminuir a queima de carvão? Precisa consultar. Isso faz parte da democracia direta.

FRL – Como pensar em ecossocialismo nas cidades?

Löwy – Boa pergunta! Não tenho receita, mas podemos pensar algumas coisas. Primeiro é mudar radicalmente o sistema de transporte e acabar com o privilégio do automóvel, que obriga as pessoas a terem carro. Há uma necessidade de mudar esta visão e daí a importância da reivindicação do Movimento Passe Livre que une a questão social e ecológica. Acho este movimento muito importante porque levantou uma questão fundamental que é imediata e aponta, ao mesmo tempo, para uma outra lógica, que é da gratuidade, absurda para o mercado capitalista que parte de uma regra absoluta de que nada pode ser gratuito.  Já na perspectiva ecossocialista é primordial o transporte precisa ser gratuito, assim como a educação, a saúde, a cultura. É uma outra maneira de organizar a vida na cidade. Outra coisa é pensar os espaços, espaços verdes para as pessoas poderem respirar. Enfim, não tenho uma plano diretor, mas recomendo a leitura de Notícias de Lugar Nenhum de William Morris, uma bela utopia ecossocialista. Aquilo é um exemplo do que estamos falando.

FRL – Algo interessante que temos discutido é sobre a dificuldade de setores da esquerda compreender que há outros paradigmas. As populações indígenas, por exemplo, não são classe trabalhadora porque vivem de uma outra maneira. Por exemplo, setores sindicais defendem os trabalhadores de uma obra, como Belo Monte, que gera emprego de carteira assinada, em detrimento das populações que estão sendo atingidas por tal obra. A classe trabalhadora vai ter choques neste embate com o capital, comunidades ribeirinhas e indígenas. Como você avalia estas relações?

Löwy – Veja, eu sempre serei um marxista. Heterodoxo, mas ainda assim um marxista. Acredito que, sem o apoio da classe trabalhadora, do campo e da cidade, não conseguiremos mudar nada. Precisamos então ter este objetivo de ganhar a classe trabalhadora, que é maioria da população, em torno de um projeto de mudança radical. Não acho que a classe trabalhadora faça parte do capitalismo, ela é sim, vítima deste sistema que a joga na miséria, oprime na exploração, na prostituição, no narcotráfico. O interesse destas pessoas é se opor ao capital. Falta consciência, mas há um potencial enorme de oposição. Dito isso, o que precisamos criticar é uma visão dogmática que reduz o sujeito de uma transformação social unicamente ao trabalhador, e no caso dos mais atrasados, à um operário de fábrica que veste macacão. Infelizmente existe isso na esquerda. Precisamos ter uma visão mais ampla que inclui na classe trabalhadora, não apenas aquelxs que vendem sua força de trabalho em uma definição marxista mais clássica, mas todas as pessoas que trabalham. A dona de casa, xs estudantes, enfim, ampliar esta visão e incluir também populações como as indígenas e ribeirinhas que estão mais ligadas à outras formas de vida.

O sujeito de transformação na percepção socioecológica é plural; além disso há, dentro da classe trabalhadora, interesses específicos: a mulher, o negro, o camponês. É necessário ter uma visão plural do que é uma coalição de forças e que entre elas podem ter contradições: mulheres e homens, negros e brancos, trabalhadores do campo e da cidade. Uma das tarefas da esquerda é encontrar maneiras de costurar esta união, respeitando os interesses fundamentais de todxs. Não é uma tarefa fácil, mas as vezes se consegue. Chico Mendes conseguiu juntar trabalhadorxs, camponesxs, mulheres, indígenas, comunidades de base. É possível. Temos que ter este objetivo.

Como dizer aos operários que trabalham em Belo Monte para abandonarem seus empregos? Na Espanha houve uma grande mobilização dos mineiros do carvão, pois estavam sofrendo com o corte de subsídios. Ora, o carvão é um inimigo da humanidade. Não o queremos mais, mas como dizer que a mina será fechada? Precisamos então criar alternativas e propostas de empregos verdes, ecológicos e convencer trabalhadorxs de uma indústria de pesticidas, por exemplo, que aquela fábrica pode produzir outra coisa. Não é simples, mas é urgente pensarmos em outras possibilidades. O que não pode é dizer que a classe trabalhadora convencional está fora do jogo ou o contrário que a classe trabalhadora é parte do jogo e já foi cooptada. Se for isso, estamos fritxs.

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FRL – No marxismo mais ortodoxo, a ideia do desenvolvimento das forças produtivas sempre jogou um papel chave. Porém, estamos em uma fase que estas forças podem não ter as mesmas características de quando Marx escreveu seus textos. Como você vê isso hoje? Até que ponto a ideia da produtividade, do avanço tecnológico representa um paradigma central para a esquerda hoje, como forma de libertação do ser humano?

Löwy – A esquerda precisa, com urgência, romper este paradigma. Dá para encontrar em alguns textos de Marx e umas pistas nos escritos de Engels de que, quanto mais se progride na industrialização e no capitalismo do campo, mais se destrói a fertilidade da terra e a saúde do trabalhador. Há algumas intuições: alguns marxistas que vem o Marx como produtivista e outros que o enxergam como ecologista sem problemas. Para mim há as contradições e podemos nos apoiar nos textos que apresentam ideias mais avançadas. Essa ideia de revolução que tem o objetivo de derrubar as barreiras que impediam o avanço das forças produtivas, a gente tem que abandonar. O que sempre digo é que precisamos partir da ideia de que os trabalhadores não podem se apropriar do estado burguês mas sim quebrar e o substituir por outra coisa. Acho que isso tem que se aplicar ao aparelho produtivo porque ele, no capitalismo, é destruidor do meio ambiente, da saúde das pessoas e precisa ter uma transformação radical deste instrumento.

A ideia do desenvolvimento ilimitado é papo furado. Ele não é possível em um planeta limitado. Romper com esta ideia e partir de uma visão de que a produção precisa satisfazer as verdadeiras necessidades da humanidade e evitar o que é atualmente um monstruoso desperdício de energia, de trabalho, de matérias-primas, etc. A grande questão é produzir de formas diferentes, com outras tecnologias, respeitando os limites da natureza, da Pachamama. Uma das pré-condições disso é suprimir a publicidade, que seria o primeiro ato desta transição. É um grande desperdício de tudo para se convencer as pessoas que o sabonete X é melhor que o Y. Nada mais absurdo e irracional. Uma vez suprimida a publicidade, depois de um certo período, as pessoas vão descobrir quais são as suas reais necessidades. Além disso o capitalismo é baseado na obsolescência programada. Todos os produtos são programados para quebrar o mais rápido possível para que sejam substituídos. Os produtos precisam ser reparáveis, duráveis, como era antigamente. A geladeira da minha avó durou 40 anos e quando estragava vinha uma pessoa arrumar. Enfim, mudar o padrão de produção e consumo para acabar com uma lógica do capitalismo que está nos levando à uma catástrofe monstruosa que põe em risco a vida do planeta e dos seres humanos.

FRL – Você acompanhou o processo dos Fóruns Sociais Mundiais. Em Belém, tínhamos uma tal horizontalidade que, no último dia, tínhamos mais de 20 manifestos sendo apresentados, inclusive alguns ecossocialistas. Mas como buscar uma maior convergência? A discussão do Bem Viver e o dos bens comuns vem ganhando força na América Latina. Mas como conciliá-los para que estes discursos não fiquem isolados?

Löwy – As comunidades indígenas trouxeram elementos muito importantes para a reflexão da esquerda e dos movimentos alternativos, em torno da ideia do Bem Viver e dos bens comuns, que rompe com a ideia do sempre mais e dos termos individuais do consumo. A partir destas ideias a gente precisa pensar em objetivos s imediatos, concretos e alternativas de civilização; utopias no sentido positivo da palavra. Acho que o Fórum Social Mundial teve um papel muito importante, e ainda o tem, no sentido de permitir um encontro de pessoas de vários movimentos, partidos, grupos, de diversos lugares do mundo e criar uma cultura comum que a indignação, o protesto.

A direita costuma atacar dizendo que a esquerda só critica, e não apresenta propostas e eu respondo que, mesmo  se o FSM não tivesse nenhuma proposta, só pela crítica a tudo que está posto já valeria a pena. Mas existem sim propostas imediatas, como a taxa sobre a especulação financeira e o fim dos paraísos fiscais. E além disso,  o FSM traz a utopia de um outro mundo possível.  Não é um modelo pronto, mas os bens comuns e o Bem Viver são elementos desta utopia. Estes movimentos são caldos dessa cultura de transformação.

Fotos: Gerhard Dilger