Por unanimidade, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) tornou o ex-presidente Jair Bolsonaro réu pelos crimes de golpe de Estado e tentativa de abolir o Estado Democrático de Direito. A decisão é histórica, pois marca a primeira vez que um ex-presidente eleito é formalmente acusado por crimes contra a ordem democrática estabelecida pela Constituição de 1988. O ato foi oficializado em 26 de março de 2025.
Bolsonaro e seus sete aliados
Além de Bolsonaro, outros sete ex-integrantes de seu governo passaram à condição de réus. A gravidade das acusações torna-se ainda mais alarmante diante da importância dos cargos que os acusados ocuparam, sugerindo um possível envolvimento direto de figuras-chave do governo Bolsonaro em ações com claro intuito de subverter a ordem democrática. Tornaram-se réus:
- Walter Braga Netto: general do Exército, ex-ministro da Casa Civil e ex-ministro da Defesa;
- Paulo Sérgio Nogueira: general do Exército, ex-ministro da Defesa;
- Augusto Heleno: general da reserva, ex-ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI);
- Anderson Torres: delegado da Polícia Federal, ex-ministro da Justiça e ex-secretário de Segurança Pública do Distrito Federal;
- Almir Garnier Santos: almirante de esquadra, ex-comandante da Marinha;
- Alexandre Ramagem: delegado da Polícia Federal, ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN);
- Mauro Cid: tenente-coronel, ex-ajudante de ordens da Presidência.
Salta aos olhos a predominância de militares entre os réus. Dos oito acusados, cinco são oficiais de alta patente ou ex-integrantes das Forças Armadas que exerceram funções estratégicas durante o governo Bolsonaro.
Ecos da ditadura
Essa configuração remete a um período sombrio da história brasileira, marcados pela intervenção direta de militares na condução da política nacional. O expressivo número de oficiais entre os denunciados evidencia não apenas a gravidade dos fatos, mas também o impacto potencial de suas ações sobre as instituições, reavivando os questionamentos sobre a atuação de integrantes das Forças Armadas na política.
No artigo “Lula e os Militares”, publicado no site da Fundação Rosa Luxemburgo, a pesquisadora Ana Penido destaca que, após os eventos de 8 de janeiro de 2023, ficou evidente a “contaminação pela extrema direita das forças especiais do Exército brasileiro”, sugerindo uma participação ativa de setores militares em ações antidemocráticas durante o governo Bolsonaro.
A especialista em relações internacionais e defesa avalia que “O 8 de janeiro de 2023 sepultou as dúvidas quanto à participação de generais e coronéis na intentona bolsonarista. Embora não tenhamos visto uma unidade militar completa se sublevando, ficou evidente a contaminação pela extrema direita das forças especiais do Exército brasileiro”.
Os oito réus compõem o chamado “núcleo crucial” do golpe, entre as 34 pessoas que foram denunciadas.
Bolsonaro, os militares e as milícias digitais
A decisão do STF tem como base a denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR), que apontou a existência de uma organização criminosa com o objetivo de impedir a posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva.
A PGR acusa Jair Bolsonaro de ter cometido cinco crimes no contexto da tentativa de golpe de Estado após as eleições de 2022. Os crimes são os seguintes: tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, Golpe de Estado, organização criminosa armada, dano qualificado pela violência ou grave ameaça e deterioração de patrimônio tombado.
A denúncia sustenta que o ex-presidente liderou uma campanha sistemática de desinformação contra as urnas eletrônicas, com apoio de milícias digitais, além de ter incentivado publicamente a desconfiança no sistema eleitoral brasileiro desde 2021. A estratégia previa a criação de um ambiente de instabilidade para justificar medidas excepcionais e manter o então presidente no poder, mesmo após uma eventual derrota nas urnas.
Leia a manifestação completa da PGR aqui!
Entre os principais elementos citados pela acusação está o chamado “Plano Punhal Verde e Amarelo”, que previa o assassinato de autoridades, como o presidente Lula, o vice-presidente Geraldo Alckmin e o ministro do STF Alexandre de Moraes. A PGR também destaca a minuta de decreto de estado de defesa, conhecida como “minuta do golpe”, encontrada na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, e que seria utilizada para anular o resultado das eleições de 2022.
Com a aceitação da denúncia, Bolsonaro e seus aliados — todos integrantes do chamado “núcleo decisório” da trama — passam à condição de réus e deverão responder por crimes como tentativa de golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, dano qualificado e associação criminosa armada.
O que acontece agora?
Após a decisão do STF, que tornou Jair Bolsonaro réu, inicia-se a fase de instrução processual da ação penal. Nesse estágio, a defesa pode apresentar contestações, enquanto o Judiciário passa a ouvir testemunhas, coletar provas e analisar documentos. Após essa etapa, a acusação e a defesa apresentarão alegações finais, e a Corte poderá julgar o mérito da denúncia.
Caso seja condenado, Bolsonaro poderá enfrentar até 43 anos de prisão, somando as penas dos cinco crimes apontados pela Procuradoria-Geral da República (PGR), incluindo a tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito e a organização criminosa armada.
A execução da pena, contudo, só ocorre após o trânsito em julgado. Embora já esteja inelegível até 2030 por decisão do TSE, uma eventual condenação criminal poderá consolidar sua exclusão do cenário eleitoral.
Atos por Anistia e a disseminação de desinformação
Frente às denúncias feitas pela PGR, o ex-presidente Jair Bolsonaro participou de uma manifestação na Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, em 16 de março de 2025, defendeu a aprovação de anistia para os envolvidos nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023. Na ocasião, Bolsonaro criticou o ministro Alexandre de Moraes, do STF, e falou em “passar uma borracha no passado” para pacificar o país. Paralelamente a essas mobilizações, verificou-se um crescimento significativo na circulação de notícias falsas e teorias da conspiração.
O que aconteceu em 8 de janeiro de 2023?
No dia 8 de janeiro de 2023, o Brasil vivenciou um dos episódios mais graves contra a sua democracia desde a redemocratização: milhares de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes da República — o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Palácio do Planalto — em Brasília.
O ataque foi realizado após a derrota de Bolsonaro nas eleições de 2022 e da posse de Luiz Inácio Lula da Silva como presidente. Nas semanas que antecederam o ato golpista, manifestantes permaneceram acampados em frente a quarteis, pedindo intervenção militar para reverter o resultado eleitoral.
No artigo “Militarismo na política brasileira”, publicado no site da Fundação Rosa Luxemburgo, Rodrigo Lentz, considera o ato um marco na crise democrática brasileira. O professor de ciência política da UnB avalia que o episódio foi consequência do extremo processo de militarização da política.
De acordo com o pesquisador, o ataque de 8 de janeiro revelou um conflito interno no Estado brasileiro, onde setores militares e policiais desafiaram abertamente o poder civil e democrático. Lentz destaca que a intervenção federal imediata decretada por Lula foi essencial para evitar que o Exército assumisse o controle da crise — o que poderia simbolizar uma solução golpista disfarçada de ordem constitucional.
Esse evento reforçou não só o papel das instituições democráticas, mas também evidenciou a fragilidade da democracia brasileira diante do militarismo, a necessidade de responsabilização dos envolvidos e a urgência de reformas estruturais nas Forças Armadas, ainda marcadas por uma lógica autoritária e autônoma do poder civil.
Katarine Flor é jornalista e coordenadora de comunicação na Fundação Rosa Luxemburgo.
Foto: Lula Marques/Agência Brasil