Criminalização não é novidade, mas está mais forte

26/09/2014
por
Verena Glass

Judicialização é novo elemento na criminalização das lutas urbanas, avaliam movimentos

 

Verena Glass, Fundação Rosa Luxemburgo.

 

(da esq.) Débora Maria da Silva das Mães de Maio; Josué Rocha do MTST, Claudia Belfort da Ponte, Renan Quinalha da Comissão Estadual da Verdade e Mariana Toledo do MPL.

 

Desde – ou a partir – das mobilizações de junho do ano passado, um debate tomou conta de espaços e atores ativistas e militantes urbanos em vários pontos do país: a exacerbação da violência policial e judicial contra as lutas nas ruas, que se vivencia em grande parte dos maiores centros urbanos, é um indício de que estaria ocorrendo um retorno dos métodos repressivos da ditadura? Ou as reações do aparato repressivo do Estado e do Judiciário significam apenas que houve uma “descida do morro”, que agora se age contra os movimentos sociais da mesma forma com que historicamente foram tratados negros, pobres e favelados?

Na última quarta, 24/9, para discutir estas questões, a Fundação Rosa Luxemburgo promoveu, em parceria com o site A Ponte, um encontro de representantes de três dos mais ativos movimentos sociais urbanos do último período: Débora Maria da Silva, das Mães de Maio, Josué Rocha, do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), e  Mariana Toledo, do Movimento Passe Livre (MPL), além de Renan Quinalha, advogado da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo.

Débora Maria de Silva das Mães de Maio e Josué Rocha do MTST.

O tema proposto, Criminalização nas cidades – Mecanismos da violência policial e judiciária contra organizações sociais e moradores das periferias urbanas após junho de 2013, teve como propósito discutir as estratégias por traz da criminalização e da violência contra movimentos sociais e populações periféricas, em seus aspectos jurídicos, políticos, econômicos e sociais, e o impacto que têm sobre as lutas sociais e as realidades das periferias.

A primeira ponderação, proposta por Débora, é que brutalidade nas repressões não é coisa nova (talvez não tinha tanta visibilidade antes da era dos celulares que fotografam e filmam absolutamente tudo?). Também não é nenhuma novidade o modus operandi da policia e do Judiciário, percebido nos casos Fabio Hideki e Rafael Lusvarghi, em São Paulo, e Rafael Vieira (o garoto do Pinho Sol) no Rio, quando houve prisões sem provas pela polícia, e manutenção das prisões a despeito da falta de provas pelo Judiciário.

“Sabe o que fizeram com a mãe de uma menina, grávida de nove meses, que foi assassinada pela polícia em 2006? Prenderam essa mãe como traficante quando ela foi reclamar justiça!”, conta Debora. Desde o episódio que ficou conhecido como Crimes de Maio – a reação de grupos de extermínio e da polícia a ataques do Primeiro Comando da Capital (PCC) em 2006, e que vitimou mais de 600 pessoas (principalmente, jovens negros, moradores da periferia)-, Débora e outras mulheres que perderam seus filhos se organizaram no Movimento Mães de Maio, que denuncia e combate a criminalização e a violência policial e do Judiciário, explica. “Porque se dependesse do Estado, as Mães estariam todas mortas”.

No caso do MTST, a criminalização tem partido de um setor menos usual, o Ministério Público estadual. De acordo com Josué, o MP tem tentado sistematicamente invalidar os acordos firmados com os governos municipal, estadual ou federal relativos a conquistas de processos de mobilização, em especial às relacionadas à ocupação Copa do Povo, iniciada no período da Copa em 2013.

Após a vitória das marchas contra o aumento da passagem em São Paulo, em junho de 2013, explica Josué, muitas comunidades periféricas, atingidas pela especulação imobiliária e pela gentrificação, tiveram a percepção de que as lutas resultam em conquistas. “Fomos procurados, as ocupações, muitas delas espontâneas, se multiplicaram. Aí passamos a ser criminalizados pela mídia. Isso e as ações do MP levaram a sérios retrocessos no diálogo com os governos, muito do que já estava garantido retrocedeu”, explica.

Quanto ao MPL, a análise do movimento é que violência policial sempre existiu, o que há de novo é o acréscimo da judicialização ao processo de criminalização dos movimentos, explica Mariana. Em junho de 2013, por exemplo, foram feitas dezenas de prisões para “averiguação”, o que é ilegal. Posteriormente, o MP, a secretaria estadual de segurança e o Ministério da Justiça criaram o chamado “inquérito dos Black Blocs”, “e começaram os processos de averiguação ideológica: o que a pessoa pensa, o que faz, o que lê. Os membros do MPL foram sistematicamente intimados a comparecer para prestar informações, mas nos negamos, mesmo após a 6ª intimação”, explica Mariana.

 

Estratégias e reações

Em 2014, as manifestações contra a Copa de longe não tiveram a mesma adesão das marchas de 2013, mas este fato não interferiu no grau de violência das ações repressivas. Neste sentido, pode-se dizer que o recrudescimento da violência policial se deu especialmente após a marcha do MPL em 19 de junho de 2014, quando, ao final, um grupo de mascarados atacou uma concessionária. Mas o que ocorreu de fato neste dia? Quem cometeu os ataques? Havia polícia infiltrada na marcha? Qual seria o real objetivo da depredação, que posteriormente parece ter levado a uma onda de indignação da “opinião pública” (teleguiada pela mídia) contra o movimento, um clamor por mais repressão e, por parte da polícia, uma fingida indignação por uma suposta traição dos militantes, o que justificaria a posterior violência redobrada nos atos que se seguiram? Quais seriam as estratégias dos movimentos para a adoção ou não de ações diretas, e há algum tipo de monitoramento dos participantes de suas atividades?

“O ato do dia 19 foi estranho”, relembra Mariana. “A PM estava lá, nos arredores, passando, se afastando e criando um clima de grande tensão. Havia uma quantidade enorme de PMs infiltrados, e a imprensa estava torcendo para que houvesse algum quebra, desesperada pra filmar algo. Ficavam cercando os mascarados, torcendo”. De acordo com a dirigente do MPL, nunca houve qualquer acordo com a polícia, apenas o envio de um documento que informava o trajeto da marcha, seu caráter lúdico e a preocupação com a tensão criada pela presença de policiamento ostensivo nas manifestações. Mas também não houve nenhum acordo com os mascarados, que não demonstraram, de toda forma, estarem organizados em bloco.

“O movimento não entende que haja um ‘grupo Black Bloc’, como diz a PM, mas sim garotos da periferia indignados. Achamos que estes meninos têm direito de usar máscara exatamente em função da criminalização. Defendemos a diversidade de táticas, mas cada ação tem que estar baseada em uma análise de conjuntura, nenhuma ação pode virar fetiche”, afirma Mariana.

Sobre o ataque de mascarados à concessionária de carros de luxo no final da marcha, Mariana reconhece que foi um duro golpe contra o movimento e que houve um recrudescimento da violência policial e dos ataques da imprensa e da “opinião pública” ao MPL. “Mas nesse episódio, o que assusta mais é que a violência contra a propriedade choca mais a ‘opinião pública’ do que a violência contra pessoas. Pessoas mortas doem menos que vidros quebrados”.

A respeito do tema das táticas, as marchas do MTST têm tido um caráter um pouco distinto, uma vez que a organização interna segue parâmetros próprios de segurança e disciplina. “Nós não retiramos pessoas de nossas marchas porque estão mascaradas. Adotamos a ação direta, como fechamento de ruas, barricadas, etc., como um tipo específico de mobilização, com um objetivo claro. Tem que estar claro para que serve a ação direta. Então, em outros momentos, quem quiser ação direta nas marchas é convidado a se retirar. Mas, de forma alguma, o MTST tem qualquer deliberação de retirar mascarados de suas atividades”, explica Josué.

Politicamente, ambos os movimentos se tangenciam na proposta de fortalecimento do movimento de bases, mas o MPL reafirma a restrição de sua luta a uma única pauta, que é o transporte. “Não vamos falar de financiamento de campanha, reforma política, etc., apesar de termos nossas posições. Fazemos a organização cotidiana independente de quem está no poder, e tentamos fazer política que venha de baixo, não queremos política por procuração”, explica Mariana.

“O MTST tem uma posição muito parecida, que é fazer a luta na rua. Mas, além da pauta da moradia, da desmilitarização da policia e da democratização do Judiciário, também encampamos a luta pela democratização da mídia e da reforma política”, afirma Josué. “O financiamento privado de campanhas tem a ver com as nossas lutas porque são exatamente as empreiteiras e construtoras que financiam os candidatos, são elas as invasoras de áreas públicas. Por isso adotamos a pauta do financiamento de campanhas”.

Já as Mães de Maio se unificam em torno de ambos os movimentos, suas pautas e táticas, afirma Débora. “Nossa luta é a luta contra o braço armado do Estado. Somos um movimento apartidário, não aceitamos bandeiras de siglas partidárias, e somos parceiros dos movimentos. Em junho de 2013 estávamos juntos com o MPL nas ruas, porque eles são nossos filhos, nosso exército”. Outras pautas das Mães são a desmilitarização da polícia, a luta por moradia e contra os incêndios criminosos, melhoria na saúde, na educação, na segurança, e democratização do Judiciário. Mas principalmente enfrentamento à violência policial. “Há oito anos as Mães de Maio estão nas ruas. Não deixamos que ninguém fale por nós, é nós por nós, enfrentando a violência. Eles [a polícia] não vão se alimentar do meu medo”, avisa Débora.

 

(da esq.) Josué Rocha do MTST, moderadora Claudia Belfort da Ponte, Renan Quinalha da Comissão Estadual da Verdade e Mariana Toledo do MPL.

Fotos: Gerhard Dilger.

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