Impactos da Copa do Mundo e alternativas jurídicas

08/05/2014
por
Júlio Delmanto

Paulo Romero, do Instituto Brasileiro de Direito Urbano, apresentou pesquisa realizada em São Paulo e Fortaleza durante evento do Comitê Popular da Copa.

Por Júlio Delmanto, Fundação Rosa Luxemburgo

 

Reunido na Ocupação Marconi, no centro de São Paulo, o núcleo paulistano do Comitê Popular da Copa organizou, no último dia 17 de outubro, um evento público de apresentação e debate da pesquisa “De olho nos direitos de comunidades atingidas por megaprojetos de impacto urbano e ambiental”, realizada por Paulo Romero, membro do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico.

Lembrando que o processo de implementação da Copa do Mundo de futebol no Brasil serviu como “catalizador” para acelerar e justificar uma série de obras e intervenções que há muito vinham sendo planejadas, Romero apresentou seus quatro estudos de caso, dois deles em São Paulo e dois em Fortaleza. O foco da pesquisa é jurídico-institucional, “mesmo que saibamos que é a organização popular que garante qualquer possível avanço nesse campo, procuramos abordar a partir desse ponto de vista para tentar identificar formas de luta institucionais que possam ter bons efeitos, para além dos caminhos tradicionalmente utilizados”, explicou.

Segundo Romero, grande parte dos esforços jurídicos para barrar remoções forçadas e outros abusos cometidos em nome da organização do mundial de futebol acaba reivindicando a defesa do direito à moradia, estratégia que para ele é importante mas não suficiente. Com uma metodologia que busca identificar os projetos de intervenção e as foras de defesa das comunidades e também analisa juridicamente os casos, a pesquisa apresentada enfoca-se nos estudos do Trecho norte do Rodoanel e na construção do Parque Linear Rio Verde, em Itaquera, ambos em São Paulo, e nos impactos das obras do Veículo Leve Sobre Trilhos e do Acquario Ceará, estes situados em Fortaleza.

 

Rodoanel Trecho Norte

Próxima a Serra da Cantareira, a obra tem 42,8km de extensão e impacta diretamente o preço da terra na região, além das famílias que já foram e serão removidas. O objetivo oficial do empreendimento, declarado pelo governo estadual de São Paulo, é melhorar o tráfego na capital, evitando sobretudo a passagem da caminhões de carga pelas vias metropolitanas.

Segundo Romero, estudo realizado por Rodrigo Faria demonstra que a própria DERSA, empresa de economia mista entre governo estadual e iniciativa privada, reconheceria que o impacto sobre o trânsito será mínimo tendo em vista a proximidade com as marginais Pinheiros e Tietê. Assim, ele acredita que os verdadeiros objetivos não são declarados: “os objetivos são ou pura e simplesmente realizar obras, para atender interesses das construtoras, ou é coisa de embelezamento, tornar a cidade atrativa e valorizada para o mercado imobiliário”. “No caso do Rodoanel, acho que é mais o primeiro aspecto o preponderante, já no Parque Linear aí prevalece o interesse imobiliário”, avalia, apontando que um dos principais esforços de sua pesquisa foi confrontar os objetivos reais com os oficiais.

As obras do Rodoanel terão impacto em vinte comunidades, e Romero ressalta a falta de planejamento para sua execução: “essas intervenções são previstas e propostas desde 1997 e não há nenhuma política para os atingidos, o reassentamento é a última das prioridades”, critica. Assim, mesmo com mais de quinze anos de tempo para apresentar opções para as famílias atingidas, o Estado simplesmente oferece bolsa-aluguel, em valores abaixo do mercado, expediente considerado “vergonhoso” por Romero. Além disso, ele questiona: “o valor da obra é de 3,9 bilhões e não tem dinheiro pra pagar indenização?”.

Essa angústia em relação a possíveis remoções é muito prejudicial para a vida das comunidades atingidas, relata Romero, traçando um quadro de insegurança que é bastante semelhante em outras áreas ameaçadas pela Copa do Mundo. “A influência no planejamento de vida das pessoas é muito grande, as pessoas não podem investir em melhorias para suas casas por conta da insegurança”, relata o pesquisador.

A pessoa que opta pelo bolsa-aluguel não tem garantias de a partir de quando ele será pago, e o histórico em outras regiões é de atraso e pouca confiabilidade. Por outro, os que decidem ficar também não são informados sobre o andamento das obras nem sobre prazos, numa “estratégia para a pessoa ficar desorientada e optar por qualquer indenização”, avalia Romero.

 

Parque Linear Rio Verde – Itaquera

Previsto para ter 4,5km de extensão, o Parque Linear Rio Verde fica muito próximo ao local onde será inaugurado o futuro estádio do Corinthians, sede de seis jogos da Copa do Mundo em São Paulo. Segundo Romero, ali também prevalece a desinformação: “não há nada formal dizendo o que vai acontecer naquela área, não existe nenhum estudo dos impactos, nenhuma lei, nenhum decreto. Mas as famílias já foram cadastradas para serem removidas”.

Neste caso, o pesquisador do IBDU identifica um processo que também acontece em diversas outras localidades atingidas por megaeventos, a utilização do argumento de que as pessoas precisam ser removidas por estarem em áreas de risco, o que em verdade serviria como forma de se encobrir interesses imobiliários. É o exemplo da Comunidade da Paz, de Itaquera, que tem parte de suas famílias morando em áreas de risco, mas parte também não – e essa especificidade é frequentemente ignorada, com discursos públicos falando na remoção de todos os moradores. A Comunidade da Paz, inclusive, realizou um plano alternativo para urbanização da favela, mostrando que é possível coibir os riscos sem impactar excessivamente a vida das pessoas.

“São utilizadas geralmente três estratégias por parte do poder público para abrir espaço para o setor imobiliário: áreas de risco, obras de mobilidade e o argumento ambiental”, avalia Romero. Em relação ao caso de Itaquera, o argumento oficial seria que com a implementação do parque e com melhorias no córrego que existe ali haveria ganhos para o meio ambiente, mas isso entraria em confronto com a pressa nos prazos e com a ausência de estudos dos impactos ambientais.

Além disso, outra informação salta aos olhos: o terreno ali é da COHAB – Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo – e assim sua utilização para outros fins que não de moradia conflita com a finalidade social desta propriedade pública.

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Veículo Leve sobre Trilhos (VLT)

A escolha de Fortaleza como uma das doze cidades da Copa do Mundo trouxe consigo uma série de “oportunidades” de negócios, sendo uma delas a do financiamento do trecho que ligará Parangaba a Mucuripe através do VLT. São 12,7km de extensão e pelo menos 22 comunidades atingidas, o que gerou grande mobilização e inclusive algumas correções no trajeto inicialmente previsto.

Romero mostrou um mapa que destaca os principais fluxos diários de deslocamento dos trabalhadores na cidade, e observou que enquanto o sentido da obra é norte-sul, o predomínio de viagens é leste-oeste, ou seja, esta obra não terá grandes impactos no cotidiano das populações mais pobres e que mais dependem de transporte público.

Com recursos estaduais e federais, o projeto tem deficiências no licenciamento ambiental, segundo Romero, e afetará cerca de dois mil e quinhentos imóveis. Também neste caso a falta de informação dá a tônica, com ausência de clareza quanto a prazos e valores para indenizações, garantidas em lei estadual. Além disso, “o reassentamento está previsto para regiões que ficam muito longe e não têm infraestrutura, sendo que há vazios urbanos muito mais próximos caso as remoções realmente fossem necessárias”.

 

Acquario Ceará

Com gastos estimados em 150 milhões de dólares, o projeto do Acquario Ceará, previsto para ser construído na Praia de Iracema, em Fortaleza, abarca 21,5 mil km quadrados e prevê inclusive a inauguração futura de salas de cinema (3D e 4D) e áreas de mergulho. Em resposta, moradores de comunidades próximas criaram o movimento “Quem me dera ser um peixe?”, questionando a prioridade de tais investimentos frente a inúmeros problemas sociais graves pouco encarados pelo Estado.

Um dos dados levantados pelo movimento é impressionante: o aquário representa 42% do montante total que foi investido pelo governo estadual no combate à seca durante todo o ano de 2012. Além da imoralidade, Romero identifica no projeto também ilegalidades na licitação, que propiciou contratação direta de empresas estrangeiras apenas com o argumento de que elas teriam o “know how” suficiente para realizar as obras.

O terreno pertence à União, e portanto seriam necessários estudos ambientais feitos pelo Ibama, o que não aconteceu. Uma das mais antigas comunidades da região, a do Poço da Draga, está entre as afetadas.

 

Questões comuns aos diferentes casos e possíveis estratégias

Após a exposição das especificidades, inclusive  no que diz respeito à organização das comunidades em resistência, Romero elencou alguns pontos comuns entre os diferentes casos relatados, e que em muitas vezes podem ser identificadas também em outras cidades e obras da Copa do Mundo:

– dificuldade de informação;

– licenciamento ambiental inexistente ou atropelado;

– distância entre objetivos oficiais e reais;

– desrespeito à legislação urbanística;

– falta de planejamento para atender aos atingidos;

– desqualificação da posse como direito;

– opressão e ameaça;

– definição política, e não técnica, do traçado das obras;

– utilização em larga escala de bolsa-aluguel e outras soluções provisórias;

– má utilização dos recursos públicos.

A partir disso, o pesquisador listou alguns pontos que considera úteis para serem melhor elaborados a fim de se buscarem soluções jurídicas que beneficiem as comunidades atingidas por megaprojetos. Para ele, uma estratégia que pode render frutos é a ênfase na função social da posse da terra, que deveria ser vista como direito tanto quanto a propriedade dela. Em decorrência, Romero defende uma argumentação jurídica baseada na teoria da posse, nos direitos fundiários, no Estatuto da Cidade, no Código Civil e na jurisprudência.

“A ideia é agrupar posse e propriedade quando haja legalidade, já existe jurisprudência em certos casos”, avalia, apontando ainda outras possíveis estratégias, como a inclusão da função social da posse no Plano Diretor, a obrigatoriedade de estudos de impactos sociais e de audiências públicas e o tombamento do modo de vida das comunidades. 

 

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