MULHERES, CLASSE E RAÇA EM TEMPOS DE PANDEMIA

No curso de extensão “Direitos e saberes feministas em tempos de pandemia” adotou-se a perspectiva feminista interseccional, privilegiando os enfoques de gênero, raça e classe como categorias analíticas e históricas.
04/10/2021
por
Fabrina Furtado, Elisangela Soldateli Paim, Clarice Ferreira Menezes *

A Coletiva Diálogos Feministas e a Fundação Rosa Luxemburgo realizaram, no período compreendido entre 03 de junho a 05 de agosto de 2021, o curso de extensão “Direitos e saberes feministas em tempos de pandemia”, oferecido em modalidade virtual via plataformas Youtube e Zoom. O curso, que contou com o apoio institucional da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e da Fundação Rosa Luxemburgo, teve por objetivo principal promover a troca de conhecimentos, saberes e ações políticas em torno dos diversos efeitos da pandemia de Covid-19 na vida das mulheres no Brasil, na sua ampla diversidade de classe, raça e região. Para tanto, foram realizados encontros semanais, totalizando oito encontros públicos/abertos e dois encontros abertos apenas para inscritas e inscritos no curso de extensão. Recebemos 52 inscrições de 16 estados, de todas as regiões do país, das quais a maioria se declarou como negra, algo que consideramos fundamental para a qualidade dos debates.

Nas atividades propostas, adotou-se a perspectiva feminista interseccional, privilegiando os enfoques de gênero, raça e classe como categorias analíticas e históricas, utilizando as contribuições feministas e as análises dos movimentos sociais frente às múltiplas crises que estamos atravessando. Foram abordados temas como saúde, educação, trabalho e a crise do cuidado, conflitos e violências, bem como a questão ambiental durante as sessões. Cada encontro, em formato roda de conversa, contou com a presença de, pelo menos, uma mulher considerada referência de luta no assunto proposto: mulheres indígenas, quilombolas, pesquisadoras, lideranças sindicais ou de movimentos sociais, dentre outras.

Uma parte importante do nosso curso foi destinada às intervenções político-artísticas de Luciana Barbosa de Melo, que dialogavam, em cada sessão, com a temática abordada. O material produzido por Luciana compõe o trabalho “Arsenal Poético ”. É importante observar que as trocas realizadas publicamente estão disponíveis nas seguintes redes sociais: página Web e no YouTube da Fundação Rosa Luxemburgo , no YouTube e  no Facebook da Coletiva de Diálogos Feministas.

Nossa proposta desse pequeno texto, é trazer algumas reflexões que foram realizadas durante o curso e que nos fazem compreender como as mulheres estão na linha de frente do enfrentamento da pandemia da COVID-19, ao mesmo tempo em que propomos o questionamento e reinvindicação contra a precarização da vida e do retrocesso dos direitos das mulheres. Fragmentos das intervenções das participantes, seus nomes e vínculos organizativos nos ajudam na construção dessa memória do curso de extensão. Para tanto, dividimos o texto em quatro tópicos: 1) contexto de retrocessos políticos, de violações e violências; 2) aprofundamento das desigualdades e violências estruturais, especialmente na vida das mulheres negras e indígenas; 3) Raça enquanto marcador fundamental na nossa sociedade; e 4) Resistências e re-existências.

Antes de tudo, no entanto, agradecemos novamente a todas as mulheres negras, indígenas, camponesas, quilombolas, LGBTQIA+, militantes, estudantes, pesquisadoras que compartilharam experiências, saberes, afetos e rebeldias, especialmente, nossas palestrantes: Cristiane Faustino, Instituto Terramar – Ceará, Rede Brasileira de Justiça Ambiental; Ana Cristina de Lima Pimentel, Secretaria de Saúde de Juiz de Fora – Minas Gerais; Letícia Yawanawa, Coordenadora Geral da Organização de Mulheres Indígenas do Acre, Noroeste; Flávia Rodrigues, Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Estado do Rio de Janeiro (SEPE RJ); Djacira Maria de Oliveira Araújo, Educadora Popular da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) e membro da direção estadual do MST-Bahia; Maria Regina Teodoro, Trabalhadora Doméstica e Promotora Legal Popular – Campinas; Cleomar Ribeiro da Rocha, Presidenta da Associação Quilombola do Cumbe – Ceará; Indira Xavier – Coordenadora da Casa de Referência para Mulheres Tina Martins – Minas Gerais; Camila Laranjeiras Brito, Movimento de Atingidos por Barragens (MAB); Adriana de Souza de Lima, Caiçara, educadora popular, feminista comunitária de Abya Yala e presidenta da União dos Moradores da Jureia – São Paulo; Edina Shanenawa, vice-cordenadora da União das Mulheres Indígenas (UMIAB); Bianca Santana, jornalista e doutora em Ciência da Informação; Denise Carreira, doutora em Educação e coordenadora institucional da Ação Educativa; Larissa Santos, jornalista, coordenadora política e de projetos na Justiça nos Trilhos; Rodica Weitzman, membra do GT Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia; Natália Lobo, agroecóloga, integrante da equipe técnica da Sempreviva Organização Feminista (SOF) e Glaucia Marques, agrônoma, integrante da equipe técnica da Sempreviva Organização Feminista (SOF) e atua em Assistência Técnica e Extensão Rural em feminismo e agroecologia junto à Rede Agroecológica de Mulheres Agricultoras da Barra do Turvo (Rama).

(1) Contexto de retrocessos, de violações e violências

As rodas de conversa abertas tiveram início com a participação de Cristiane Faustino abordando como as situações de perda de direitos e conquistas democráticas fazem parte de todo processo histórico da construção do Brasil. Cristiane explorou a maneira como o racismo está vinculado às relações desiguais nas seguintes dimensões: econômica, política, cultural e de gênero. Neste sentido, destacou a fragilidade da democracia brasileira patriarcal, branca e heteronormativa, na qual há populações subrepresentadas. Cris analisou como as desigualdades históricas, estruturais e conjunturais foram aprofundadas no contexto da pandemia, a exemplo da incapacidade e desinteresse do governo de garantir o direito ao isolamento social, a naturalização da violência contra comunidades negras e povos indígenas, além do descaso público e da manutenção de políticas genocidas.

Em movimento análogo, Maria Regina Teodoro destacou que essa crise que atravessamos é uma crise institucional, política, estrutural. Em sua contribuição para o diálogo, Maria Regina salientou a necessidade de se reflexionar sobre a causa da pandemia, afirmando que a mesma é resultado das formas exploradoras dos bens naturais e dos espaços comuns, ou seja, também é uma forte expressão das injustiças e do racismo ambiental. Sobre o racismo ambiental também nos falou Camila Laranjeiras Brito do Movimento de Atingidos e Atingidas por Barragens (MAB), em especial em torno do cotidiano de atingidos e atingidas no caso do crime ambiental, o rompimento da barragem de rejeitos da Vale, Samarco e BHP, no Rio Doce em Minas Gerais e Espírito Santo. A população, majoritariamente negra, além de todos os impactos e as violências sofridas em decorrência desse crime, continuam lutando pelo direito à reparação.

Vale lembrar que são várias as rodadas de desregulação e violência explícita do modelo liberal-autoritário atual, expressas na linguagem pecuarista do “estouro da boiada” desencadeado para atropelar normas e direitos. Como afirmou Larissa Santos, trata-se de um projeto que “des-envolve modos de vida e articulações coletivas”. É preciso, ainda, apontar e combater “o capitalismo que tenta se passar por ecológico” como salienta Adriana de Souza de Lima a partir da luta do seu povo caiçara em defesa do seu território.

(2) Aprofundamento das desigualdades e violências estruturais, especialmente na vida das mulheres negras e indígenas: quem cuida de quem cuida?

Entre as reflexões sobre este tópico, destacamos que a gestão da crise sanitária pelo governo federal foi uma decisão que perpetua a pandemia e amplia as desigualdades. É importante sempre lembrar que trata-se de um vírus, trazido pelos brancos ricos que chegaram do exterior, e que está ocasionando o genocídio do povo negro, das mulheres negras, associado não só à morte pela covid – os negros tem 40% mais chance de morrer – mas também aos crimes como feminicídios e transfeminicídios, como destacado por diversas palestrantes.

Foram também levantadas questões sobre a precarização das escolas, as dificuldades da alfabetização online, a exaustão e desamparo às alunas e alunos, a sobrecarga e precarização das educadoras, em especial das mulheres negras, e a relação entre a educação no campo e a luta e garantia aos territórios dos camponeses, indígenas e populações rurais. A precarização do trabalho docente foi bem detalhada por Flávia Rodrigues que relatou o processo de “uberização” da atividade docente. Fábio dos Reis Pedro, estudante de Licenciatura em Educação do Campo (LEC) da UFRRJ, parceira do curso, também ressaltou a “precarização das condições de trabalho e as dificuldades que professoras e professores vêm enfrentando para exercer o magistério” no seu trabalho final.

Em termos do cuidado, Maria Regina Teodoro nos lembrou, da difícil condição das trabalhadoras domésticas que, entre outras coisas, foram impedidas, por parte de suas empregadoras, de voltarem para casa durante os meses de isolamento social, como se não tivessem família… Nos lembrou que valorizar o trabalho das trabalhadoras domésticas é valorizar a vida de todas as mulheres com filhos e filhas sem escola, sem saúde e sem trabalho. “É a gente que está dando conta de segurar a onda” disse Regina.

Também foram detalhados os processos de invasão de territórios: Djacira Maria de Oliveira Araújo lembrou que não há educação do campo sem território. Cleomar Ribeiro da Rocha trouxe o exemplo da monocultura, onde não há lugar para a vida. Para ela, “nós mulheres, precisamos cuidar de tudo, proteger a comunidade, nossas crianças e nossos idosos e idosas que carregam nossas histórias, saberes”. Em outras palavras, as mulheres que estão na frente das lutas, que seguram a vida cotidiana, ainda são invisibilizadas e desconsideradas.

(3) Raça enquanto marcador fundamental na nossa sociedade

A questão do racismo foi um tema transversal a todos os debates. Indira Xavier abordou a violência como instrumento de dominação, herança colonial racista e heteropatriarcal. Ao relatar como nasceu a ocupação urbana Casa Tina Martins, em Minas Gerais, ressaltou a necessidade de se desenvolver uma luta cotidiana frente a violência contra as mulheres, nos lembrando que esta violência é estrutural e tem sua raiz no sentimento de posse e subjugação do corpo das mulheres.

Bianca Santana e Denise Carreira falaram da importância de nomear o racismo e da necessidade de engajamento de pessoas brancas e das instituições comprometidas com a promoção, defesa e garantia dos direitos humanos na luta antirracista. As palestrantes também propuseram a reflexão crítica e o processo de desconstrução da branquitude como lugar de manutenção de privilégios materiais, subjetivos e simbólicos na sociedade e base de sustentação do racismo. Bianca nos lembrou: o projeto branco, falhou e falhou até para os brancos. Enquanto ele promove a morte, a população negra constrói política da vida, segue cuidando, segue oferecendo…

Conforme escreveu Maria Clara de Lima dos Santos, no seu trabalho final do curso, Bianca e Denise reiteraram a necessidade da distinção entre desigualdades sociais geradas meramente pelo sistema de classes, e as desigualdades geradas pelo racismo, que se acentua quando se faz o recorte a partir do marcador de gênero. Isabelly Andrade de Oliveira lembrou: é preciso combater o mal estar de pessoas brancas em discutir o racismo; é preciso combater o racismo institucional, estrutural. Vale lembrar também as intervenções dos estudantes homens negros no curso no sentido da necessidade de despatriarcalização dos homens.

4) Resistências e re-existências

Apesar de lembrar que as mulheres estão exaustas de sobrecarga de trabalho, de diversas jornadas, e de tanta luta, algumas inclusive adoecendo física e mentalmente, ressaltar as distintas formas de existências e re-existências foi algo fundamental em todos os momentos do curso.

Letícia Yawanawa chamou atenção para a importância das plantas medicinais, marginalizadas pela sociedade, e das curandeiras e parteiras nesse momento da pandemia, além da atuação das mulheres na roça para assegurar uma alimentação de qualidade para suas filhas e filhos. A partir das falas das indígenas, quilombolas e caiçara no curso, no seu trabalho final, Luiza Wehbe Sabino ressaltou a importância das “nossas escolhas de cuidar da natureza, com base na reciprocidade, na solidariedade, no comunitarismo e na complementariedade” e de como “cuidando da natureza, cuidamos também de nós mesmas”, algo que Cleomar nos trouxe na sua reflexão: “se o nosso território está saudável, também estamos”.

Camila Laranjeiras Brito ressaltou como a situação das mulheres foi se incorporando nas agendas de luta dos movimentos e organizações, experiência que intensificou os questionamentos sobre seus papéis na família, comunidade e sociedade. A participação das mulheres nas lutas em conflitos ambientais, seja liderando, organizando ou participando das tomadas de decisão, apesar dos riscos e das ameaças, permite que elas assumam atividades de organização e tomada de decisão e questionem as relações de gênero dentro das suas próprias culturas de forma mais coletiva e pública. É uma forma de redefinir sua posição social dentro da própria comunidade, suas identidades, como também de desafiar as estruturas de dominação na sociedade como um todo.

A partir das suas pesquisas situadas que buscam “tirar as mulheres da sombra”, Rodica Weitzman,  identificou os quintais produtivos como lugares de produção agroecológica que sustentam a vida, além de ser um espaço de escuta, acolhida e cuidado entre as mulheres. Estas experiências de construção coletivas e de solidariedade também foram destacadas nas intervenções de Natália Lobo, Glaucia Marques e Larissa Santos, onde, como afirmou Larissa, “a essência é o pé no chão”.

Para terminar, apesar da análise crítica do contexto que estamos vivendo e da gritante exploração e expropriação do territórios-corpos-terras das mulheres, em especial as mulheres negras e indígenas, intensificadas pela pandemia da Covid-19, o curso foi bem avaliado pela equipe de coordenação e demais participantes pela escolha dos temas abordados, a transversalidade das questões de gênero e raça expressa nos debates, pela metodologia e a busca por democratizar as informações, e pelas mulheres convidadas para compartilhar suas vivências e experiências de lutas. Tratou-se, acima de tudo, de um espaço de intensos compartilhamento e acolhimentos, de arte e cultura, que apesar da tensão gerada pelo momento e os limites dos encontros online, foi um processo que sem dúvida nos deixou revigoradas e com a sensação da coletividade que tanto se tenta destruir. Nas quintas nos encontramos, nos reconhecemos, nos ouvimos, “denunciamos e anunciamos novos caminhos”…


* Fabrina Furtado – professora do CPDA/UFRRJ e Coletiva Diálogos Feministas
Elisangela Soldateli Paim – coordenadora programa latino-americano clima da FRL
Clarice Ferreira Menezes – professora UFMG e Coletiva Diálogos Feministas