“Quando os pequeno sabe, os grande já comeram”

Três milhões de reais destinados a comunidades quilombolas somem e centenas de famílias sofrem com falta de acesso à água, saúde e educação
17/08/2017
por
Sabrina Duran

 O “sumiço” de R$ 3 milhões de compensação por impactos de grandes empresas faz com que milhares de quilombolas da área rural de Itapecuru, no Maranhão, continuem sofrendo com a dificuldade de acesso à água, à saúde, à educação e a formas de geração de renda

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Comunidade quilombola de Santa Rosa dos Pretos foi uma das lesadas (Foto: Luís Pedrosa)

Por Sabrina Duran, especial de Itapecuru-Mirim, Maranhão

No último dia 17 de junho, 50 mulheres e homens de 19 comunidades dos territórios quilombolas de Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo, em Itapecuru-Mirim, interior do Maranhão, encontraram-se na Escola Quilombola Elvira Pires para uma conversa com o Ministério Público do Estado (MP-MA), representado na ocasião pelo promotor de Justiça Benedito Coroba, atuando em substituição pela 2ª Promotoria de Justiça da Cidadania de Itapecuru-Mirim. O objetivo era discutir com o promotor, primeiro, os impactos causados pelo “sumiço” de R$ 3 milhões destinados à construção de escolas, unidades de saúde, estrada e poços artesianos em comunidades daqueles territórios que somam cerca de 1306 famílias, uma média de mais de cinco mil pessoas.

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Dos 50 quilombolas presentes no encontro, nenhum deles sabia dizer onde foi parar o dinheiro. A verba tinha sido repassada à prefeitura de Itapecuru pela mineradora Vale S.A. por meio de convênios para execução das obras e também para a compra de veículos a serem utilizados em serviços públicos. Já perto do fim do mandato do então prefeito Magno Amorim (2013-2016), que assinou os convênios, escolas e unidades de saúde continuavam inacabadas; poços que foram perfurados não receberam o restante da estrutura necessária para bombear água para as casas. Alguns projetos não saíram do papel. Outros, como uma panificadora comunitária prevista para o quilombo de Santa Rosa dos Pretos, sequer foi para o papel, e ficou só na promessa do prefeito à população.

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Ferrovia da Vale afeta diversos territórios quilombolas (Foto: Verena Glass)

Os R$ 3 milhões repassados pela Vale à prefeitura de Itapecuru-Mirim fazem parte de um acordo intermediado pelo COMEFC – Consórcio dos Municípios dos Corredores Multimodais do Maranhão. O consórcio tem como objetivo cobrar que empresas como a Vale, a Ferrovia Norte-Sul e a Transnordestina repassem às prefeituras as verbas de compensação pelos impactos que causam aos municípios onde atuam.

O “sumiço” dos R$ 3 milhões faz com que milhares de quilombolas da área rural de Itapecuru, situados às margens da BR 135, continuem sofrendo com a dificuldade de acesso à água, à saúde, à educação e a formas de geração de renda, como projetos de agricultura familiar, piscicultura e mesmo o acesso a um item alimentar tão básico como o pão – os pães consumidos no quilombo de Santa Rosa dos Pretos todas as manhãs vêm, a preço alto, do povoado de Entroncamento, distante cerca de quatro quilômetros da comunidade de Santa Rosa.

O “sumiço” já havia sido denunciado pela Câmara de Vereadores de Itapecuru-Mirim, que instaurou em 2016 uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar as suspeitas de ilegalidades na gestão do então prefeito Magno Amorim (2013-2016). A investigação foi conclusiva no sentido de apontar que, por meio de distintos estratagemas – pagamento de obras inconclusas, licitação sem dotação orçamentária, apresentação de documentos falsos, certidões negativas vencidas e outras evidências que provam simulação de processo licitatório – Amorim cometeu atos de improbidade administrativa. Por causa das denúncias, ele foi afastado do cargo, mas foi recolocado na prefeitura pelo Tribunal de Justiça do Estado. Candidato à reeleição em 2016, Magno Amorim perdeu nas urnas. O dinheiro, porém, nunca apareceu, ao contrário dos estragos e precariedades evidentes que seus desvios deixaram em poços artesianos secos, escolas inacabadas tomadas pelo mato e um sentimento de desamparo na população.

“A gente foi convidado, os presidente de associação, a comparecer lá na prefeitura que era pra cada comunidade indicar um projeto que fosse mais prioridade. Aí a gente indicou aqui um posto médico, um poço e uma escola. E eles começaram a escola, mas nunca terminaram. O posto médico nunca nem começaram. Nem o poço, era uma caixa de 15 mil litros. A gente tá usando água da chuva quando chove. Isso tá desde o verão [época de seca]. Comprava água pra beber, toda semana era 60 reais. Foi em 2014 [a reunião na prefeitura]. O cronograma [da construção da escola] era pra ter terminado em 2015. Começou e parou. O prefeito num pagou o que tavam fazendo. Aí o projeto num foi assinado pelo engenheiro e aí parou, a Vale não repassou o restante mais porque o prefeito num prestou conta do primeiro [repasse]”, relatou Luiz Carlos, Presidente da Associação Quilombola dos povoados de Santa Helena II, em entrevista à repórter em maio desse ano.

 

Falta de transparência, de participação popular e de informação: porta aberta para desvios

O COMEFC, que teve início em abril de 2013 com o nome de Consórcio dos Municípios da Estrada de Ferro Carajás, é um consórcio público de direito público formado por prefeitos e prefeitas de 22 municípios que são cortados pela Estrada de Ferro Carajás (EFC), da mineradora Vale S.A. O objetivo declarado da criação do consórcio era a pressão sobre a Vale para que esta pagasse as verbas de compensação devidas pelos danos causados pela ferrovia aos municípios ao longo dos seus 32 anos de operação. A EFC tem quase 900 km, saindo de Carajás, no Pará, cruzando quatro municípios naquele estado e outros 23 no Maranhão, indo terminar no Porto de Ponta da Madeira, na capital São Luís. Desde fevereiro de 1985, os vagões do trem da Vale – que hoje somam 330, com mais de 3 km de extensão – cruzam cidades maranhenses carregados de minério de ferro extraídos da Serra de Carajás. O que deixam às comunidades que atravessam, porém, não são as riquezas do minério, mas poluição sonora, do solo, do ar, doenças respiratórias e de pele, assoreamento de igarapés, rachaduras em casas e atropelamento de pessoas e animais na linha férrea.

Na reunião de 17 de junho na escola quilombola, a comunidade expôs ao promotor de Justiça Benedito Coroba sua insatisfação e questionamentos sobre a responsabilidade do COMEFC no desvio de verbas que aconteceu em Itapecuru-Mirim. O consórcio, segundo afirmam seus gestores, atua não só como intermediador entre a Vale e os municípios consorciados, mas também como fiscalizador da execução dos projetos e prestação de contas dos convênios assinados.

Se as prestações de contas das prefeituras em relação aos projetos em execução não são aprovados pela Vale, a mineradora não repassa as parcelas seguintes da verba de compensação para a continuidade das obras, e o município torna-se inadimplente perante a empresa, não podendo concluir o projeto iniciado e nem executar outros até sanar as pendências. Concluiu-se na reunião que a incapacidade do consórcio em fiscalizar e regular a aplicação dos recursos criou as condições para o desvio milionário. Desvio que só chegou aos ouvidos da população quando já estava consolidado, com o dinheiro bem longe do alcance público. “Quando os pequeno sabe, os grande já comeram”, afirmou Loro Preto, morador do quilombo Santa Rosa dos Pretos, resumindo a dinâmica das malversações de dinheiro público.

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Escola inacabada no quilombo de Colombo, em Itapecuru-Mirim (Foto: Sabrina Duran)

De acordo com os quilombolas presentes ao encontro, o acesso às operações do COMEFC, bem como às prestações de contas do consórcio, acompanhamento de obras, licitações e outras informações públicas necessárias ao controle social não está acessível às comunidades. Mesmo o site do consórcio não traz informações básicas exigidas pela Lei de Acesso à Informação e à qual ele está sujeito, uma vez que é um consórcio público. Isso quando o site não está fora do ar, o que costuma acontecer durante semanas e até meses, conforme a reportagem apurou.

Foi constatado também que o COMEFC, embora obrigado por lei e por seu próprio estatuto, nunca prestou contas ao Tribunal de Contas do Estado do Maranhão (TCE-MA) – pelo menos até maio desse ano –, e tão pouco fez qualquer registro de seus atos administrativos no 1o. e 2o. Registro de Títulos e Documentos e Registro Civil das Pessoas Jurídicas, as duas únicas serventias registrais onde poderiam, e deveriam, estar as atas das assembleias gerais do consórcio. Em pesquisa realizada junto ao Tribunal de Justiça do Maranhão, comarca de São Luís, a reportagem encontrou três processos contra o COMEFC e duas empresas ligadas a ele envolvidas em calotes no valor de mais de R$ 6 milhões. Já na 4a Vara Federal da Seção Judiciária do Estado do Maranhão, tramitam dois processos de sonegação de impostos e contribuições previdenciárias contra duas empresas ligadas ao consórcio.

Em entrevista à repórter em maio desse ano, a ex-vereadora Eliane Correa Santos, presidente da CPI que investigou o então prefeito Magno Amorim, afirmou que, para ter acesso à gestão do COMEFC, as comunidades tinham que passar por diversos processos, fazer requerimentos e outros trâmites burocráticos que nem sempre estão ao alcance da população, seja por falta de instrução formal, seja por dificuldade de acesso aos meios de comunicação, como telefone e internet, que têm sinal precário na zona rural. “Infelizmente, eles [prefeitos e prefeitas] terceirizam, por meio do COMEFC, um recurso que poderia ser gestado pelas próprias entidades que estão dentro da área, que são os quilombolas. Eles acham que os quilombolas não têm competência de gestar o que é deles e eles terceirizam essa responsabilidade. No momento em que fazem isso, dão possibilidade para pessoas fazerem o que quiserem com recursos que não são delas”, afirmou a ex-vereadora e atual Superintendente de Políticas de Igualdade Racial de Itapecuru-Mirim, Eliane Correa Santos.

Milhões à disposição de uma gestão não transparente

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Prefeitos da região fazem acordo com a Vale (Foto: Divulgação COMEFEC)

A princípio ignorados pela Vale, prefeitas e prefeitos representantes do consórcio chegaram a bloquear a EFC em julho de 2013 em protesto, a fim de serem ouvidos. E foram. A mineradora cedeu à pressão e aceitou negociar com o COMEFC. Cerca de um ano depois das primeiras conversas, a Vale liberou R$ 85 milhões para serem repartidos entre os 22 municípios. O critério da divisão levaria em conta o número de habitantes de cada cidade e a extensão da EFC que passa pelo município.

Mesmo com o “sumiço” dos R$ 3 milhões – parte dos R$ 85 – que aconteceu em Itapecuru-Mirim, e com notícias de desvios de conduta e de disputas por poder dentro da própria diretoria administrativa do consórcio noticiados pela imprensa maranhense, o COMEFC segue pleiteando, e conseguindo, a gestão de verbas públicas milionárias. Esta foi outra denúncia feita pelos quilombolas ao promotor de Justiça Benedito Coroba durante a reunião na Escola Quilombola Elvira Pires. Em 17 de março desse ano, representantes do COMEFC reuniram-se com o governo do Estado do Maranhão, representado pelo Secretário Estadual de Transparência e Controle, Rodrigo Lago, e com gestores do BNDES na sede do banco no Rio de Janeiro para tratar da liberação de R$ 57 milhões de verbas públicas para o consórcio. A origem da verba é o Fundo de Desenvolvimento Regional (FDR) com Recursos da Desestatização. Trata-se de um montante depositado pela Vale S.A. junto ao BNDES em 1997 quando a mineradora, antiga Companhia Vale do Rio Doce, foi privatizada.

A verba deveria ser usada pelos estados impactados pela EFC na mitigação dos danos causados pela ferrovia. O montante destinado ao Maranhão, corrigido, é de R$ 57 milhões. A questão é que esta verba só poderia ser administrada pelo governo do Estado por meio de convênios assinados com os municípios. A reunião realizada no Rio de Janeiro teve como objetivo justamente formalizar a decisão do governador Flávio Dino (PCdoB) de abrir mão da gestão da verba milionária, enquanto Estado, em favor do COMEFC. O temor das comunidades quilombolas é que esse dinheiro “evapore” sem se transformar em benefícios para a população, assim como aconteceu com os R$ 3 milhões de Itapecuru-Mirim.

O promotor de Justiça Benedito Coroba ouviu todas as denúncias e demandas dos quilombolas e se comprometeu a encaminhá-las aos seus pares no MP-MA. Ao fim do encontro, representantes das 19 comunidades dos territórios de Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo criaram um Conselho Quilombola para fazer o controle social do COMEFC, e também redigiram uma carta de repúdio ao consórcio.

A reportagem entrou em contato com o COMEFC e com o governador Flávio Dino, mas até o fechamento desse texto não obteve resposta.