Clássico

Rosa Luxemburgo: A Revolução Russa

A Fundação Rosa Luxemburgo apresenta o novo livro “A Revolução Russa” de Rosa Luxemburgo, traduzido por Isabel Loureiro, filósofa e experta sobre o pensamento da revolucionária

Apresentação por Isabel Loureiro*

As vicissitudes de um texto polêmico

Este livrinho foi publicado pela primeira vez em 1922 por Paul Levi, dirigente do Partido Comunista Alemão (KPD) depois do assassinato de Rosa Luxemburgo, Karl Liebknecht e Leo Jogiches. Levi, o mais fiel herdeiro do ideário socialista-democrático da revolucionária polonesa, havia sido expulso do KPD por ter criticado publicamente a “ação de março” de 1921, tentativa insurrecional fracassada levada a cabo pela nova liderança do KPD, pressionada pela Internacional Comunista (IC) sob influência dos bolcheviques.

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Lênin, discordando da crítica pública de Levi à “ofensiva revolucionária” preconizada pela IC, nas “Notas de um publicista”, denuncia o “trânsfuga que, igual a uma galinha em meio a montes de lixo, vagava pelo pátio traseiro do movimento operário”.

Contra Levi, a galinha passeando no lixo, Lênin evoca a fábula russa de Krilov: “É dado às águias descer mais baixo que as galinhas, mas nunca as galinhas poderão subir tão alto quanto as águias”. Seguia-se a conhecida lista dos cinco erros cometidos por Rosa Luxemburgo, o último relativo ao texto em pauta: “enganou-se nos seus Escritos da prisão de 1918 (aliás, ela mesma, ao sair da prisão no fim de 1918 e no início de 1919, corrigiu uma grande parte de seus erros)”.

A Revolução Russa
Autora: Rosa Luxemburgo
Tradução e apresentação: Isabel Loureiro
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ISBN: 978-85-68302-11-8

Ela era uma águia que, diferentemente das galinhas, não só podia subir bem alto nos céus, mas também descer mais baixo que as próprias galinhas. Com isso, Lênin deixava no ar a sugestão maldosa de que Rosa, toda vez que tinha errado em suas apreciações políticas, se comportava pior que uma galinha. Em seguida, condescendentemente, recomendava a publicação de suas obras completas, “malgrado seus erros”.

A avaliação de Lênin, que não tinha lido o texto de Rosa nem o prefácio de Levi, deu origem à tendência no interior do KPD de usá-la como arma contra o campo adversário, sem investigar o que de fato ela tinha dito e feito. Lênin preparou assim o terreno para aquilo que, depois de nova tentativa fracassada de insurreição por parte do KPD, em outubro de 1923, foi chamado de “luxemburguismo” – um amálgama de erros que derivavam basicamente de duas ideias atribuídas a Rosa Luxemburgo: ela teria desenvolvido n’A acumulação do capital uma teoria mecanicista do colapso do capitalismo; e teria criado uma teoria da espontaneidade das massas, negando assim a necessidade da organização política na luta pelo socialismo.

Essa caricatura atingiu o auge durante o stalinismo. O escrito de Rosa Luxemburgo só foi publicado na República Democrática Alemã em 1974, integrando o volume 4 das Obras completas, acompanhado de um prefácio no estilo marxista-leninista, que media as ideias “erradas” de Rosa pelas “corretas” de Lênin. Só com o fim do regime autoritário foi possível a Annelies Laschitza, uma das coordenadores das Obras Completas, expor abertamente o que pensava sobre Rosa.

No prefácio de 1990 ao texto “maldito”, ela diz: “Apesar de todos os debates e de tudo o que se escreveu sobre o manuscrito de Rosa Luxemburgo, ele se revela cada vez mais um manifesto profético a favor da democracia e da dignidade humana, a favor do socialismo verdadeiramente democrático.” Essa era a leitura do “marxismo ocidental” que, no entanto, apresentava nuances.

Os social-democratas, contra os comunistas, frisavam apenas a defesa das liberdades democráticas, transformando Rosa Luxemburgo numa espécie de liberal, sem mencionar que no seu pensamento político democracia e revolução são inseparáveis. Por sua vez, o campo da Oposição de Esquerda considerou desde sempre o opúsculo de Rosa Luxemburgo um libelo a favor do espaço público popular, no qual as camadas subalternas da sociedade, aproveitando a existência da liberdade de imprensa, reunião e associação, têm a possibilidade de participar amplamente – tanto por meio de instituições como partidos políticos, sindicatos, conselhos, associações, quanto pela ocupação das ruas – na construção de uma sociedade livre e igualitária.

Por isso, Rosa critica a dissolução da Assembleia Constituinte pelos bolcheviques, vendo nessa medida arbitrária o primeiro passo de um processo cuja lógica implacável levará à burocratização de toda a vida política, inclusive dos sovietes, culminando na ditadura de um único partido. Infelizmente ela teve razão. Mas, além da questão das liberdades democráticas e da oposição entre ditadura e democracia, a brochura trata de dois outros temas polêmicos: a questão agrária e a autodeterminação das nações.

Em nome dos princípios socialistas, Rosa rejeita a Realpolitik dos bolcheviques, ditada pelas circunstâncias, porque, segundo ela, para obterem o apoio dos camponeses à revolução, lançaram a palavra de ordem de apropriação das terras, criando assim uma nova camada de pequenos proprietários inimigos da coletivização e do socialismo. Rosa defende neste ponto o programa agrário da social-democracia, que, prevendo a eliminação progressiva da pequena propriedade camponesa e a concentração das terras em grandes propriedades privadas, via esse processo como um avanço inquestionável que serviria de base para a futura agricultura socialista.

Socialismo no campo significaria nacionalização/estatização + industrialização da agricultura. Ou seja, grandes monoculturas com seus nefastos efeitos colaterais – tudo o que um programa agroecológico combate hoje em dia. Ao equipararem socialismo no campo com coletivização, tanto a social-democracia ocidental quanto o bolchevismo herdam o preconceito marxista contra os pequenos camponeses, vendo neles uma classe em desaparecimento, que deve converter-se em proletariado industrial (ou subordinar-se politicamente a ele) para ter voz na sociedade. A história do século XX mostrou o equívoco dessa posição.

Quanto à autodeterminação das nações, tratava- se de antiga discordância entre Rosa e Lênin. A oposição ao nacionalismo começou com a fundação da Social Democracia do Reino da Polônia em 1893, partido em que Rosa militou a vida inteira (à qual em 1899 se juntou a social democracia da Lituânia), em oposição ao Partido Socialista Polonês, que, fundado um ano antes em Paris, defendia a independência da Polônia.

Rosa e seus amigos tinham horror ao nacionalismo, considerado um obstáculo à luta pelo socialismo. Eles argumentavam que, na medida em que a Polônia era a parte mais industrializada do império russo, o qual funcionava como mercado consumidor para as mercadorias polonesas, a independência não fazia sentido.

No entender de Rosa, a palavra de ordem de autodeterminação das nações era utópica e reacionária, pois atando o proletariado polonês e o das pequenas nações ao nacionalismo, impedia-o de travar uma luta conjunta com o proletariado russo contra o absolutismo e, em seguida, pelo socialismo.

No texto em pauta, ela constata que as nações que faziam parte do império russo, em vez de se aliarem à revolução, como pretendiam os bolcheviques no seu “otimismo incompreensível”, passaram para o lado da contrarrevolução. A posição de Rosa sobre a questão nacional sempre foi condenada como economicista e abstrata, inclusive pelos comentadores simpáticos às suas ideias.

Mas trata-se de tema extremamente complexo merecendo aprofundamento, o que não podemos fazer aqui. Entretanto, se a brochura de Rosa Luxemburgo, passados cem anos, ainda nos interpela, isso se deve à última parte, comentada antes.

E, por último, cabe frisar que independentemente das objeções pontuais que Rosa faz aos bolcheviques, a posição geral da brochura pode ser condensada na expressão “apoio crítico”. Apoio porque ela entende que “(…) em condições tão fatais, nem o mais gigantesco idealismo, nem a mais inabalável energia revolucionária seriam capazes de realizar a democracia e o socialismo, mas apenas rudimentos e caricaturais de ambos”.

O grande obstáculo ao sucesso da revolução na Rússia deve-se ao fato de ser um processo isolado num só país, dada a “inércia fatal” das massas alemãs, ludibriadas pela social-democracia e pelo imperialismo alemão. Crítico, porque ela não vê no aplauso obrigatório uma contribuição à autonomia intelectual dos trabalhadores.

Esta só pode ser obtida pela análise do processo revolucionário na Rússia, no qual os bolcheviques, forçados pelas circunstâncias, foram obrigados, para se manterem no poder, a adotar políticas em desacordo com o programa socialista. Por isso mesmo, não se trata de fazer da necessidade virtude e aceitar como modelo um processo histórica e socialmente circunscrito. A advertência de Rosa Luxemburgo, lamentavelmente, foi desprezada pelos comunistas do século XX.

Em suma, este livrinho é sobretudo um libelo a favor da soberania popular contra o autoritarismo e a burocracia. Por isso Michael Löwy pode dizer que “essa brochura de 1918 é um dos textos indispensáveis não só para a compreensão do passado, mas também, e sobretudo, para uma refundação do socialismo (ou do comunismo) no século XXI”.

São Paulo, agosto de 2017

*Isabel Loureiro é professora aposentada do Departamento de Filosofia da Unesp. Autora de Rosa Luxemburgo, os dilemas da ação revolucionária (Unesp, 2003), A Revolução Alemã (1918-1923) (Unesp, 2005) e organizadora da trilogia Rosa Luxemburgo, textos escolhidos (Unesp, 2011).