ENTREVISTA | CRISE AMBIENTAL

Soberania alimentar para combater a fome

Leer en español | Lesen Sie auf Deutsch

Em entrevista, Jaime Amorim, coordenador político da Via Campesina, analisa os desafios da organização diante da guerra e da crise ambiental

Foto: Vía Campesina Internacional

No ano em que completa 30 anos da realização de seu primeiro Congresso, na cidade de Mons, na Bélgica, a Via Campesina enfrenta uma realidade cada vez mais desafiadora: enquanto o comércio internacional de commodities seguiu avançando globalmente ano após anos, os preços dos alimentos alcançaram seu mais elevado patamar na história no ano de 2022.

Neste mês de abril, a organização, que reúne 182 movimentos camponeses em 81 países, realiza ações em todo o planeta para denunciar essa situação e defender a soberania alimentar. Esse conceito passou a ser incorporado pela Via Campesina como principal bandeira de luta em abril de 1996, quando realizava sua segunda conferência, no México.

Naquele mesmo momento, no sul do continente, no Brasil, ocorria o massacre de Eldorado de Carajás. Policiais militares assassinaram a sangue frio 21 camponeses sem terra que protestavam em favor da reforma agrária. Esta data foi definida como o “Dia internacional de Luta Camponesa” e, neste ano de 2023, as ações da Via Campesina são marcadas pelo lema:

“Diante das crises globais, construimos a soberania alimentar para assegurar um futuro para a humanidade”.

Jaime Amorim, da coordenação política da Via Campesina e integrante da Direção Nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), avalia que o desafio, hoje, dos movimentos camponeses vai bem mais além do que imaginava há três décadas. E que enfrentar as diversas crises que vivemos, da explosão da fome à mudança climática, passando pela crescente desigualdade social, necessariamente requer mudar o modelo de produção no campo. Confira abaixo entrevista dada à Fundação Rosa Luxemburgo sobre as mobilizações da Via Campesina neste abril de 2023.

Jorge Pereira Filho e Patricia Lizarraga – Ao longo de 2022, diversos organismos da ONU têm alertado para o agravamento do problema da fome em todo o mundo. Como a Via Campesina tem analisado esse cenário?

A Via Campesina trabalha a possibilidade de ocorrer uma crise alimentar em todo o mundo desde 2020. Durante a pandemia, assumimos que era fundamental, como camponesas e camponeses, a tarefa de seguir produzindo alimentos. Tínhamos uma condição diferente de quem vive na cidade. Poderíamos nos isolar e produzir alimentos, e assim mostrar na prática para a sociedade esse papel que temos. Fomos cumprindo essa tarefa, inclusive promovendo a transição para uma agricultura comprometida com a produção de um alimento mais saudável. Sabemos que temos um problema no mundo com uma população cada vez mais frágil, em uma situação de baixa imunidade, e isso tem a ver com nosso modelo de alimentação. É também consequência de um modelo capitalista que impõe uma uniformização da alimentação no mundo inteiro. Se você se volta a produzir alimentos, você naturalmente vai priorizar a cultura alimentar local. E soberania alimentar nada mais é do que um país se voltar a produzir para garantir que seu povo não passe fome. Isso fortalece a cultura local porque só se vai produzir aquilo que as condições climáticas, geográficas, tradicionais possibilitam. Ao longo deste mês de abril queremos fazer esse debate, destacar a soberania alimentar como uma questão fundamental no mundo inteiro. A fome é consequência desse modelo, da ganância, em que várias crises se somam, a crise ambiental, a econômica, a ideológica. Na periferia do mundo a pobreza aumenta. Em 2016, cerca de 50 milhões estavam abaixo da linha de pobreza no Brasil, por exemplo; hoje são 62,5 milhões. E em torno de 33 milhões de pessoas passam fome. Da mesma forma isso tem ocorrido nos países da  América Latina, da África, da Ásia.

Como se contrapor a esse modelo em termos práticos?

Primeiro, antes de tudo, a reforma agrária popular é determinante se quisermos mudar esse modelo. Cabe em qualquer parte do mundo, inclusive onde você já teve um processo de distribuição de terra, porque é preciso resolver o problema do modelo de desenvolvimento da agricultura. E a reforma agrária popular trata disso: garantir assistência técnia, semente orgânica, produção de insumos orgânicos, toda a economia precisa se alterar. Hoje a economia agrícola está voltada para a grande produção, a monocultura, com largo uso de venenos, insumos químicos e transgênicos. A produção de um alimento saudável requer um novo processo de aprendizagem e o domínio da produção orgânica.

Um passo importante nessa direção foi a aprovação da Declaração dos Direitos dos Camponeses e das Camponesas e Outras Pessoas que Trabalham em Áreas Rurais (Undrop)…

Essa declaração contribui para esse objetivo mais amplo da Via Campesina e temos o desafio de implementá-la na prática. Sua aprovação foi um momento histórico, em 2018. Reconhece os camponeses e as camponesas como sujeitos de direito, inclusindo ribeirinhos, indígenas. Mas não basta ter a apenas a lei se ela não é colocada na prática. O primeiro desafio depois de a declaração ser aprovada é levá-la ao conhecimento das organizações camponesas de todo o mundo. E aí entra um período de estudo, de compreensão e de compartilhamento para que se entendam quais as consequências dessa declaração, o que ela acarreta. E depois o desafio é fazer com que os países reconheçam esses direitos previstos na declaração, como fez a Bolívia. Vai depender não só da atuação da ONU, mas também de nossa capacidade de pressionar os parlamentos nacionais, muitos deles dominados por conservadores. Temos agora uma carta que nos dá unidade em nível nacional e internacional, que nos reconhece como camponês, e de qualquer forma, em última instância, em casos mais graves de violações, temos um respaldo legal para recorrer a organismos internacionais. Trata-se de um instrumento de articulação fantástico. É um instrumento legal, mas é um instrumento de luta.

Soberania Alimentar
Bandeira da Via Campesina | Foto: Vinicius Mansur, MST

Seria essa uma das principais conquistas da Via Campesina nesses trinta anos?

Bom, nós realizaremos neste ano nossa oitava conferência. Quando a Via nasceu, o avanço da monocultura agroexportadora era nosso grande problema, que se converteu no modelo transnacional do agronegócio. O mundo estava se organizando em blocos econômicos. Havia a ameaça da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), e a Organização Mundial do Comércio (OMC) passa a assumir o processo de negociação do alimento. Vai se desenvolvendo um mercado global da alimentação, que passa a ser uma mercadoria negociada na Bolsa de Valores, nos mercados futuros, sem controle nenhum dos agricultores que produzem o alimento. E diante do avanço do neoliberalismo, surge nossa primeira palavra de ordem. Em vez de globalizar a economia, vamos globalizar a luta. “Globalizar a esperança”, a defesa de que a alimentação não pode ser uma mercadoria, o direito dos países de definirem a soberania alimentar local. A primeira coisa que conseguimos, como Via Campesina, foi mostrar ao mundo que há uma contraposição a esse processo.

Outro tema que destaco é o questionamento do conceito da segurança alimentar, que era usado pela ONU e foi importante após a Segunda Guerra Mundial. Sem dúvida, todo povo tem direito a se alimentar. Mas a Via Campesina começou a questionar: a qual tipo de alimento se tem acesso? A segurança alimentar não discute o tipo de alimentação, e as condições nas quais os produtos alimentícios são produzidos, muitas vezes à custa de exploração de trabalho infantil; de trabalho análogo à escravidão; da destruição ambiental, da expulsão de famílias camponesas de suas terras. A soberania alimentar debate a ideia de que não basta apenas a alimentação chegar às pessoas. Provoca-nos a discutir que tipo de alimento, quais as condições de produção, qual a relação desta alimentação com o processo de produção, com trabalho, com o meio ambiente e com as comunidades locais e originárias. E temos a crise ambiental. Jamais imaginávamos há 30 anos as dimensões da crise que vivemos hoje. Hoje a soberania alimentar é importante para salvar não apenas o camponês e a camponesa, é crucial para salvar o planeta. Então essa me parece que é uma tarefa que nós assumimos. É plantar árvore, é defender as áreas de reservas, é recuperar as margens de rios, é pressionar para que cada país também tenha leis que proíbam o desmatamento, a queimada. Nós já temos terra suficiente para alimentar o mundo. O problema é quem produz nessa terra, o que se produz e qual o interesse de quem produz.

Para concluir, se a Via Campesina surge com as disputas dos blocos comerciais e hoje é a guerra na Europa que concentra as atenções internacionais.

Nesse tema, a Via Campesina da Europa tem uma visão um pouco diferente da Via Campesina Internacional. Enquanto os europeus tratam a questão como se fosse apenas um movimento da Rússia de querer dominar a Ucrânia, a Via Internacional entende que se trata de uma guerra entre interesses capitalistas, de disputa da hegemonia internacional. Sabemos que esse conflito tem impacto evidente na economia agrícola internacional. Rússia e Ucrânia são grandes produtores de alimentos, respondem por cerca de um terço da produção de trigo mundial. A Ucrânia ainda tem uma elevada produção de milho, e a Rússia de fertilizantes e insumos agrícolas. Tudo isso tem impactado o custo de produção de alimentos mundo afora. Ao mesmo tempo, é a grande oportunidade de mostrar que os insumos químicos podem ser superados por insumos orgânicos. E conforme a guerra perdura, essa situação vai se tornando cada vez mais urgente, porque os preços dos alimentos seguirão pressionados. Vemos com preocupação esse cenário considerando também que cada vez mais Estados Unidos e China avançam na disputa por hegemonia no mundo, e isso não nos ajuda a defender países soberanos do ponto de vista do alimento. O fato é que a guerra não interessa a ninguém, não interessa ao povo da Ucrânia, da Europa, da Rússia e de nenhum lugar no mundo. Por isso a Via Campesina também vai cada vez mais assumindo esse debate de ser contra a guerra, a favor da paz e por um novo modelo de desenvolvimento em escala internacional.

A Via Campesina soltou recentemente uma nota apontando justamente os riscos ambientais do tratado de livre comércio da União Europeia com o Mercosul…

O tratado seria um desastre total para os países do Mercosul. Significaria aprofundar a reprimarização da economia. Em um primeiro momento, o acordo pode ampliar nossas exportações, mas vai nos tornar cada vez mais reféns das indústrias europeias. Isso sem falar do rastro de destruição ambiental que acumulamos aqui com a super exploração das matérias primas, dos minérios. Além disso, na medida em que se cria um mercado comum, também se abre para a participação das empresas europeias todos os processos de compra pública. A consequência pode ser a destruição completa das organizações e das estruturas locais de comercialização. Ficam inviabilizadas as políticas públicas que são determinantes para fomentar a agricultura camponesa, a agricultura familiar, que é quem produz alimentos para a mesa da população. É um processo que vai excluir cooperativas de pequenos agricultores e de assentamentos. Em vez de ir nesse caminho, o Brasil deve ampliar suas relações comerciais para não ficar dependente dos Estados Unidos, nem da Europa. Foi o que o país fez antes do golpe contra Dilma Rousseff, em 2016, e deve seguir nessa direção.

Qual avaliação faz desses primeiros 100 dias do governo Lula?

Olha, até poderia começar com críticas, dizendo que ainda não conseguimos estruturar o governo, a nova gestão ainda não se estabeleceu na reforma agrária ainda, né? O presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) ainda é interino; o presidente da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) mal assumiu, há superintendências do Incra em aberto. Mas independente disso se pode dizer que estamos com muita expectativa. Sonhamos muito com esse dia. Temos dito que derrotamos o Bolsonaro, mas não o bolsonarismo. E não estou falando nem da sua presença no Congresso, mas na sociedade, está impregnado na população. É uma questão de relação política, cultural. Eu diria que temos um primeiro desafio que é restabelecer o Estado democrático de direito no Brasil. E isso Lula está conseguindo construir. Ao contrário de 2003, quando Lula fez uma aliança com a burguesia em busca de governabilidade, desta vez se tratou de algo fundamental para vencer as eleições. Essa reconstrução da democracia não se faz só com a esquerda. Nosso segundo desafio é derrotar essa ideologia fascista, o que se dá na disputa das ideias. Precisamos organizar a sociedade em novos valores. Isso precisa se dar dentro das escolas, das universidades, das comunidades, no meio rural, no urbano, enfim, a sociedade saiu destroçada desse período. Os movimentos sociais, os sindicatos estão enfraquecidos. Precisamos reconstruir.

E o terceiro desafio é fortalecer a luta pela reforma agrária e nossa produção de alimentos. O combate à fome é determinante. No país da fome, combate-se a fome com políticas públicas, programas sociais e principalmente com um grande programa de produção de alimentos. É isso o que mais esperamos que seja feito. Ou seja, restabelecer a democracia, combater a ideologia fascista e fazer um grande programa de produção de alimentos. Isso tudo não se faz em três meses, mas esperávamos que o governo pudesse ser mais ágil nisso. Lula disse aqui em Pernambuco que está convencido de seu papel na história, estamos muito confiantes nisso. Se for necessário, vamos defendê-lo na rua, sempre com base nos compromissos que ele assumiu nas ruas durante o processo eleitoral.


*Jorge Pereira Filho é coordenador de projetos do escritório de São Paulo da Fundação Rosa Luxemburgo

*Patricia Lizarraga é coordenadora de projetos do escritório de Buenos Aires da Fundação Rosa Luxemburgo

Leia o texto em alemão
Hunger bekämpfen durch Ernährungssouveränität

Leia o texto em espanhol
Soberanía alimentaria para enfrentar el hambre