Congresso da CPT

Um encontro de rebeldes

Por Verena Glass (texto e fotos)

“Faz escuro mas eu canto”, o lema do IV Congresso da Comissão Pastoral da Terra (CPT) que aconteceu em Porto Velho, Rondônia, na segunda semana de julho, foi premonitório. Lemas comumente se constroem com antecedência sobre auspícios e indícios, mas este cravou; a palavra-chave do encontro foi “rebeldia”.

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Marcha do Congresso homenageia lideranças assassinadas na luta dos camponeses

O Congresso de Porto Velho reuniu cerca de 800 pessoas de todos os estados brasileiros, dentre as quais um terço, grosso modo, eram agentes da CPT e o restante, camponeses, ribeirinhos, pescadores, quilombolas e indígenas. Após 40 anos de atuação no campo – a CPT foi fundada como instrumento de defesa das populações rurais em plena ditadura militar, dando origem a grande parte dos movimentos sociais camponeses -, o encontro se propôs a fazer um resgate histórico a partir das memórias das lutas rurais, analisar a conjuntura a partir dos processos de resistência e rebeldia e buscar rumos para o futuro da entidade e de seus trabalhos de campo.

Um dos principais aspectos da reflexão conjuntural foi a profunda desconfiança da eficácia dos instrumentos do Estado para promover melhorias na vida dos territórios. Nesse sentido, produziu-se uma crítica aguda ao Estado em todos os seus poderes – a partir da percepção de que as leis perderam eficácia ou têm retroagido na defesa de direitos -, mas também a outras institucionalidades (mencionou-se largamente os sindicatos, cada vez mais limitados a burocracias previdenciárias).

Ao ponto de ser colocada no epicentro do debate a questão: é possível (re)configurar o campo sem o Estado? Ou, colocado de outro modo, como relacionar-se – ou não – com as políticas públicas? Quais as perspectivas das autonomias, no âmbito das rebeldias e/ou autogestão, nos territórios?

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Participantes do Congresso observam obras da usina de Santo Antonio no rio Madeira. Políticas do Estado sofreram duras críticas

Rebeldia
Centrado no que foi proposto enquanto “rebeldia”, o debate sobre as perspectivas de reestruturação das bases de uma vida rural que supere os conflitos – conflitos estes de várias naturezas, incluindo os fundiários, produtivos, econômicos, culturais, comunitários e de relações institucionais – pontuou três campos prioritários: formação/educação, articulações políticas, e desobediência civil na luta pela reforma agrária e pela autonomia territorial.

_MG_6071No aspecto da formação, destacou-se a necessidade de aprofundamento de outros modelos de educação no campo, a qualificação política das comunidades, a inclusão da juventude no protagonismo das lutas e o fortalecimento das mulheres nestes processos. Ao mesmo tempo, apontou-se como fundamental a reestruturação dos processos produtivos e a sua qualificação com vistas ao rompimento com o receituário capitalista, o chamado agronegocinho: “se produzimos 70% dos alimentos consumidos no país, e se hoje cada brasileiro consome em média sete litros de agrotóxicos por ano, estamos fazendo algo de muito errado”. Entendeu-se como parte da rebeldia a reinvenção da agricultura como forma de vida em todos os seus aspectos, simbolizada na força das sementes crioulas e de seu poder libertador.

Já as articulações se apresentaram com urgências amplas, incluindo a demanda para que a CPT passe a atuar, para além do campesinato, com as demais populações tradicionais do campo (em especial comunidades quilombolas e indígenas em territórios onde a organização desenvolve atividades). “Precisamos estruturar nossas rebeldias de forma articulada e que não silencie as diversidades”. Ou seja, houve um apelo para que a entidade facilitasse e encaminhasse relações políticas mais amplas no campo, costurando novas configurações com demais organizações sociais.

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Quilombolas do MA e indígena Karitiana de RO: populações tradicionais querem integrar CPT

E como não poderia ser diferente, as lutas pela terra e pelos territórios, tão urgentes quanto há 40 anos, foram reafirmadas em sua prioridade absoluta. Ampliadas também em suas diversidades, incluíram as resistências contra os grandes projetos – hidrelétricas, mineração, etc -, as defesas das florestas e demais biomas, e também dos imaginários.

Sobre os futuros possíveis, uma ponderação da CPT de Pernambuco buscou resumir os novos tempos a partir da memória, das rebeldias e das perspectivas: “a esquerda apostava na tomada do poder; a derrubada dos de cima para possibilitar a subida dos de baixo. Então tivemos apenas substituição, sem mudança das estruturas. A partir do que foi dito e apresentado desde as experiências de subversividades nos territórios, vê-se que a esperança se constrói a partir do cotidiano. A comunidade se autogovernando, cuidando de si e dos seus pares; assim construiremos a esperança”.

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Missionária da CPT abraça assentado do sul do Pará

Clique aqui para ver mais fotos. Abaixo, leia a carta final do IV Congresso da CPT:

Faz Escuro, mas Cantamos

Nós, 820 camponesas e camponeses, indígenas e agentes da CPT, bispos católicos e da Igreja Ortodoxa Grega, pastores e pastoras, rezadores e rezadeiras, vindos de todos os recantos do Brasil, convocados pela memória subversiva do Evangelho e pelo testemunho dos nossos mártires, pela presença dos Orixás, dos Encantados e Encantadas, nos reunimos para o IV Congresso da Comissão Pastoral da Terra, em Porto Velho-RO, de 12 a 17 de julho de 2015. Foram dias de um intenso processo de escuta, debate e busca de consensos e desafios em sete tendas, que receberam nomes de sete rios de Rondônia. Ao final destes dias, queremos fazer chegar esta mensagem a vocês, povos do campo e da cidade, como um apelo e um chamado.

Faz escuro, mas eu canto! Há 40 anos, a CPT, num tempo de escuridão, em plena ditadura militar, foi criada atendendo ao apelo de povos e comunidades do campo, de modo particular da Amazônia, envolvidas em conflitos e submetidas a diversas formas de violência. Hoje, voltando de onde nascemos e fazendo memória destes 40 anos, vemos que foram anos de rebeldia e fidelidade ao Deus dos pobres, à terra de Deus e aos pobres da terra, condição da nossa esperança. Vemos também que as comunidades vivem uma realidade mais complexa do que a do tempo da fundação da CPT, pois camuflada por discursos os mais variados de desenvolvimento e progresso, trazem consigo uma carga de violência igual ou pior à de 40 anos atrás. Hoje, tem-se consciência de que, pelo avanço voraz do capitalismo, é o destino da própria humanidade e da própria vida que está em jogo. O mercado nacional e transnacional encontra suporte nas estruturas do Estado, que se rendeu e vendeu aos interesses das elites e do capital.

Com a autoridade e humildade de quem vive as dores e alegrias da vida do povo, neste Congresso compartilhamos experiências que trouxeram a Memória de fatos e pessoas muito significativas na história das comunidades do campo e da própria CPT; experiências de Rebeldia que nos mostram a indignação diante das injustiças e da violência; e experiências de Esperança, que apontam para caminhos que levem a uma realidade mais justa.

Quanta história temos para contar! De gente e de lugares, de derrotas e vitórias… E nossos mortos – homens e mulheres. Fazemos memória para unir passado e presente. Não para repetir! Mas para radicalizar, voltar às raízes do amor pela terra e pelos povos da terra.

Na nossa luta, a CPT interagia de corpo e alma com a gente desde o começo, na ocupação e no despejo. Despejo não é derrota. A gente dá dois passos pra trás e três pra frente.

Rememorar lutas e resistências alimenta nossa indignação e rebeldia. É justo rebelar-se, é legítimo e urgente. Porque a violência e a destruição não são parte do passado, mas são vividas em todos os cantos do país, com muitas caras e a mesma cumplicidade das autoridades que deveriam zelar pelo bem do povo. Estas enrolam, cansam e esgotam as comunidades. A rebeldia vai brotando aos poucos, nasce da realidade de opressão que interpela a consciência. É igual às sementes das plantas do Cerrado, que precisam passar pelo fogo ou pelo estômago dos animais para quebrar sua dormência e assim germinar. Nem sempre é um processo racional. Muitas vezes é um processo festivo de construção de símbolos. Continua a convicção que nosso projeto de vida vai ser “na lei ou na marra”.

Se com a memória alimentamos nossa rebeldia… com o que damos vida à nossa esperança?

Essa esperança vai nas nossas mãos. Em uma, a luta e a organização – diária e rebelde – na outra, a fé e a paixão – diária e rebelde. De um lado resistimos ao sistema de morte com luta. Do outro descobrimos que conquistar terra e território e permanecer neles não é suficiente. O desafio é construir novas pessoas e novas relações interpessoais, familiares, de gênero, geração, sociais, econômicas, políticas, entre espiritualidades e religiões diferentes e com a própria natureza.

Com as mãos cheias de esperança convocamos os povos originários e o campesinato em suas mais diversas expressões: quilombolas, pescadores e pescadoras artesanais, ribeirinhos, retireiros, geraizeiros, vazanteiros, camponeses de fecho e fundo de pasto, extrativistas, seringueiros, castanheiros, barranqueiros, faxinalenses, pantaneiros, quebradeiras de coco-de-babaçu, assentados, acampados, peões e assalariados, sem-terra, junto com favelados e sem teto, para fortalecer estratégias de aliança e de mobilizações unitárias.

Convocamos também igrejas, instituições e organizações para reassumirmos um processo urgente de MOBILIZAÇÃO REBELDE E UNITÁRIA pela vida, que inclua a defesa do planeta TERRA, nossa casa comum, suas águas e sua biodiversidade.

Com o Papa Francisco reafirmamos que queremos uma mudança nas nossas vidas, nos nossos bairros, na nossa realidade mais próxima, uma mudança estrutural que toque também o mundo inteiro.

Se no passado a escuridão não nos calou, mas acendeu em nós a esperançosa rebeldia profética, hoje também ela nos impulsiona a continuar a luta ao lado dos povos e comunidades do campo, das águas e das florestas, em busca de uma terra sem males e do bem viver.

Por isso assumimos como perspectivas de ação para os próximos anos:

– Uma reforma agrária que reconheça os territórios dos povos indígenas e das comunidades tradicionais e uma justa repartição da terra concentrada;
– A formação dos camponeses, camponesas e dos agentes da CPT, com destaque para as comunidades tradicionais, a juventude, as relações de gênero, a agroecologia;
– O envolvimento em todos os processos de luta pela educação no e do campo;
– O serviço à organização, articulação e mobilização dos povos indígenas, das comunidades quilombolas, pescadores artesanais e mulheres camponesas;
– A intensificação do trabalho de base;
– A sustentabilidade pastoral, política e econômica da CPT.

O profundo desejo do próprio Jesus e do seu movimento é também o nosso: “Eu vim trazer fogo sobre a terra, e como gostaria que já estivesse em chamas” (Lc 12,49).

Porto Velho, 17 de julho de 2015