A Democracia é uma mulher negra de muitos braços, cabeças e corações

Vilma Reis é socióloga, mestra em Ciências Sociais. Uma mulher de candomblé. Sentada em sua sala de trabalho, é possível ver atrás de Vilma imagens sagradas, bandeiras que contam a história do movimento de mulheres negras.
13/12/2021
por
FRL
Vilma Reis – Arquivo pessoal

              Vilma Reis é socióloga, mestra em Ciências Sociais. Uma mulher de candomblé. Sentada em sua sala de trabalho, é possível ver atrás de Vilma imagens sagradas, bandeiras que contam a história do movimento de mulheres negras, e uma imagem cuja lembrança será evocada pela entrevistada durante toda conversa: Luiza Bairros (1953-2016), liderança política a quem Vilma reverencia sua trajetória, luta e articulação política no âmbito das mulheres negras no Brasil. “Sou uma mulher negra. Sou ativista de movimento de mulheres negras. Sou uma defensora de direitos humanos”. Ao lado de suas pares, cofundou o Coletivo Mahin, atua na construção da Coalizão Negra por Direitos, é uma das articuladoras do Fórum Marielles, inspiração e apoiadora do Instituto Marielle Franco e do Mulheres Negras Decidem.

              A trajetória de Vilma sintetiza o modo como mulheres negras vêm atuando na criação de práticas sociopolíticas no Brasil. Em cada um desses grupos citados (e tantos outros), a inserção de mulheres negras nas políticas institucionais vem contribuindo para preservação do legado ancestral da diáspora negra nas Américas, em sua inteligência em criar estratégias coletivas de sobreviver, subverter as estruturas coloniais e pós-coloniais pautadas no racismo anti-negros (e indígenas) e ao machismo.

              Na luta contra as hegemonias políticas, ao longo da história e atuação de mulheres negras tensionou e provocou a esquerda ao trazer para o centro do debate a dimensão interseccional, ou seja: deslocou o argumento de que no Brasil “o problema é de classe” e o próprio mito da democracia racial. Ao reconhecer que mulheres negras são sujeitos políticos e que, atravessadas pelo racismo e machismo, deveriam ir para o campo das disputas contra as opressões.

              “Tem que tratar a questão racial e de gênero com centralidade, porque se você não enfrenta o empobrecimento das mulheres negras no nosso país, a gente não resolve a questão Brasil. Portanto, mover o conceito de interseccionalidade articulando as categorias de raça, gênero, classe, sexualidade, pertencimento, territorialidade. Muitas vezes, todas elas são ativadas  para uma situação de sabotagem coletiva da nossa esperança”.

              Quando conceitua-se a luta das mulheres no Brasil, a partir do termo “negra”, além de humanizar sujeitos não visto como humanos ao longo de todo passado escravagista, o que se propõe é dizer este outro não-branco é um sujeito político, “se reconhece que tudo que se move nesse país tem as mãos, a imaginação e o pensamento das mulheres negras, das mulheres indígenas”. Um movimento que se pauta na pluralidade, “densidade e imensidão”.

              Ao longo dessas quatro décadas de movimento de mulheres negras brasileiras, sua organização acompanha os processos e movimentos de luta pelo fim da ditadura no Brasil e países latinos americanos e as lutas pelo fim da colonização dos países africanos, em especial os países de língua portuguesa. A mulher negra brasileira tem sido “um ator político ativo para todas as mudanças que a  gente tem colocado sobre a mesa do poder mesmo quando não tínhamos a capilaridade que temos hoje e a ousadia de quadros políticos da nossa militância”.

              No quadro político no Brasil contemporâneo temos visto os direitos, territórios e corpos negros ameaçados por “não permitir qualquer tipo de mudança no Brasil e nos impor um processo de asfixia permanente”. Contudo, ainda que estejamos sob a permanente ameaça da abreviação das vidas não-brancas, e presenciando os ataques recorrentes aos direitos, corpos e territórios, Vilma reitera que a projeto do feminismo negro é focado no matriarcado que reparte e horizontaliza o poder, se fazendo completamente necessária a distinção e revelia deste projeto racista patriarcal, violento, tal qual os bandeirantes dos tempos coloniais. A estes representantes desta estrutura conservadora, Vilma nomeou de “novos bandeirantes”.

              “O que temos feito é uma escola aberta de ciências políticas formando para o país inteiro”. Segundo a socióloga, dessa atuação política e pedagógica, ecoam alianças por todo Brasil, sendo possível extrapolar as fronteiras e oceanos. E quando se pensa no diálogo do movimento de mulheres negras brasileiras com outras territorialidades, é importante evocar a atuação de Lélia Gonzalez, cuja atuação abriu caminhos para que se pensasse o movimento de mulheres negras para além do Brasil e EUA, ao construir o conceito amefricanidade e confrontar “a elite colonial e americanófila”, profundamente desconhecedora dos países vizinhos e hostil aos países africanos. São nos encontros que ocorrem na Costa Rica, Republica Dominicana que surge o 25 de julho – Dia da Mulher Afrolatina e Caribenha -, a partir destes encontros e outros, abriram-se “uma nova perspectiva de comunicação, diálogo, contato e trocas” que tinham em comum a desobediência ao patriarcado.

              Em 2019, durante as campanhas municipais em Salvador (Bahia), Vilma Reis ao lado de inúmeras ativistas e coletivos de mulheres negras brasileiras, protagonizou o movimento de pré-campanha à prefeitura da cidade pelo PT – Partido dos Trabalhadores. O movimento Agora é Ela tomou as redes e a centralidade do debate: sobre de que democracia e qual a cara da política partidária da esquerda no Brasil. Nas palavras de Vilma: “a fissura no poder a gente fez em 2019 quando a gente lança aquela pré-candidatura no dia da independência da Bahia (2 de julho). Dia que Maria Felipa entrou vitoriosa na cidade de Salvador acompanhada de negros e indígenas, em 1823”.

              Quase 200 anos depois, a tecnologia empreendida por mulheres negras continua sendo o campo de batalha, disputa pelo poder e enfrentamento ao Estado e genocídio preto e indígena. Essa retomada e fissura política provocada pela pré-candidatura de Vilma, não é um fato isolado. Ela também reflete a indignação pelo assassinato de Marielle Franco (1979 -2018); ao passo que no mesmo ano de 2018, Érica Malunguinho (PSOL-SP) foi eleita primeira deputada estadual trans e negra, Joenia Wapichama (REDE-RO)  a primeira mulher indígena eleita como deputada federal na história do Brasil. No mesmo ano Taliria Petrone (PSOL-RJ), Aurea Carolina (PSOL-MG) são eleitas deputadas federal e Benedita da Silva (PT – RJ) foi reeleita. Em 2020, Erica Hilton (PSOL-SP) foi a vereadora mais votada no município de São Paulo. “Porque que eu vou deixar o Estado brasileiro inteiro para os brancos? Não faz sentido. Nós acreditamos em uma democracia popular, sonhamos com democracia para todos, todas e todes. Nós sabemos que somos nós as mulheres negras que empurramos a esquerda para esquerda”.

  • Candomblé – religião afro-brasileira de matriz africana onde se cultua orixás e que foi desenvolvida no Brasil pelos povos africanos escravizados no país. Atualmente sofre com uma perseguição institucional profunda, estimulada por representantes de igrejas neo-pentecostais;
  • Bandeirantes – Homens (principalmente da região de São Paulo) que, na época da colonização do Brasil atuavam na captura de pessoas escravizadas, destruindo quilombos, aprisionando indígenas, explorando pedras preciosas nestes territórios.
  • Lélia Gonzalés – Importante intelectual negra brasileira, pioneira dos estudos sobre políticas raciais no Brasil e sua relação com a diáspora negra na América Latina. Referência para a militância negra (foi uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado – MNU) é sempre citada como uma importante pesquisadora por Angela Davis. Faleceu em 1994.
  • Maria Felipa –  Mulher escravizada, mas que conquistou sua liberdade, participou ativamente da luta pela independência da Bahia, em 1823