“Eu paguei a bala que matou meu filho”

Organizada por uma articulação de diversos indivíduos, coletivos e movimentos sociais autônomos que têm discutido a desmilitarização da Polícia Militar, foi realizada neste dia 2 de outubro, no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, uma coletiva de imprensa com atingidos pela violência estatal.
03/12/2013
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Movimentos sociais organizam coletiva de imprensa dando voz a atingidos por violência estatal e defendendo desmilitarização da polícia

Eu paguei a bala

Por Júlio Delmanto, Fundação Rosa Luxemburgo

Organizada por uma articulação de diversos indivíduos, coletivos e movimentos sociais autônomos que têm discutido a desmilitarização da Polícia Militar, foi realizada neste dia 2 de outubro, no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, uma coletiva de imprensa com atingidos pela violência estatal. Entre os componentes da mesa estavam o indígena guarani Oriel Benitez, Débora Silva, liderança do movimento Mães de Maio, o fotojornalista Sérgio Silva, agredido e cegado pela polícia durante manifestação em junho, e a diarista Elvira Ferreira, mãe do funcionário terceirizado da Unifesp Ricardo Gama, assassinado por policiais em 2 de agosto.

Com clima emotivo, marcado pela memória ainda bastante viva e dolorida dos amigos e familiares perdidos, as falas da coletiva primaram pela denúncia do papel que as instituições armadas do Estado brasileiro, e sobretudo paulista, têm cumprido num contexto político supostamente democrático. Além do aniversário de 21 anos do Massacre do Carandiru, relembrado em chave de resistência por este evento, a articulação dos movimentos toma como simbólico exatamente o cumprimento de meio século da aprovação da Constituição brasileira, que acontece no dia 5 de outubro, e expôs a programação de uma “Semana contra a democracia dos massacres”, que inclui também manifestações a favor dos direitos indígenas e em repúdio à Câmara municipal de São Paulo por conta de sua homenagem à ROTA e uma tribuna livre de debate sobre a desmilitarização da polícia.

Também intervieram na mesa, antes das perguntas dos jornalistas de diversos órgãos alternativos e corporativos, Mariana Toledo, representante do Movimento Passe Livre São Paulo, Ângela Mendes, do Observatório da Violência Policial, Dora, do movimento Periferia Ativa e amigo de DJ Lah, músico assassinado pela polícia em chacina ocorrida em janeiro, e Alessandra, moradora da Favela do Moinho que teve seu irmão, então com quinze anos, também assassinado por homens de farda há dez anos. Familiares do pedreiro Amarildo de Souza, desaparecido após ser abordado por policiais de uma UPP no Rio de Janeiro, estavam previstos para o evento mas se atrasaram e não conseguiram chegar a tempo.

Os depoimentos são fortíssimos, e falam por si. Por isso, optamos por transcrever trechos de cada um deles, deixando que a emoção e a indignação por trás de cada denúncia cumpram o papel de espalhá-las, repercuti-las, respeita-las, converte-las em mudança.

Eu paguei a bala que matou meu filho – Débora Silva

Precisamos de uma mídia que traga à tona o que é o Estado terrorista. Ao longo de séculos vemos o massacre de nossos povos pobres, periféricos e negros, nossos povos tradicionais sendo exterminado por um país que renega seus filhos. Nós vemos também que os massacres custam décadas de luta para se fazer justiça, como o Massacre do Carandiru ou os crimes de maio de 2006, que não tiveram nenhuma resposta do Estado. Nós precisamos saber da verdade, os crimes de maio não passarão, enquanto não soubermos da verdade e alcançarmos a justiça nós vamos ter crimes de maio continuados, massacres continuados.

Chegou a hora de nós nos unirmos, porque o Estado não tem mais conserto, queremos outro Estado. Queremos as polícias desmilitarizadas, e a sociedade. E pra poder desmilitarizar a sociedade temos que começar pelo braço armado do Estado, pra gente poder blindar a violência institucional. O corporativismo faz com que eles fiquem impunes, e nós não aceitamos mais, nós gritamos: os crimes de maio não passarão!

É impossível uma mãe aceitar uma omissão dessa, mataram mais de 600 pessoas num período de uma semana, todos os inquéritos foram arquivados e há três anos não se tem uma resposta sobre o pedido de federalização da investigação. Nós vamos bater de frente em Brasília, Brasília é pequena pro movimento Mães de Maio, a gente quer resposta das autoridades maiores.

Só em maio de 2006 foram mais de 30 desaparecidos que até hoje o Estado não disse onde estão, são mais de 30 Amarildos. Se o Estado comeu a carne e roeu os ossos deles, a gente quer saber onde estão os restos mortais de nossos filhos desaparecidos. O Estado atribuiu esses crimes ao PCC, estão encobrindo por que então? É muito mais embaixo, foram crimes por retaliação. O Estado vive de corrupção, foi a corrupção que matou meu filho. Eu paguei a bala que matou meu filho, cada mãe aqui paga seus impostos e paga os algozes de nossos filhos. As autoridades são nossos empregados: quem matou? Quem ordenou? É isso que queremos saber.

Meu filho era um trabalhador, mas era um trabalhador empobrecido, não teve direito à justiça. A bala que retiraram do corpo do meu filho há um ano até hoje não foi feito exame balístico, é difícil uma mãe suportar isso, eu não preciso de diploma, o sistema podre do meu Brasil me ensinou a academia da safadeza, é preciso extirpar ela. Nós somos mães, ninguém vai nos frear, não nos intimidamos com a podridão desse sistema, temos que desmilitarizar as polícias já.

Não sei mais quem sou depois da morte do meu único filho – Elvira Ferreira

No dia 3 de agosto, o meu filho Ricardo Gama saiu para trabalhar e chegou na faculdade faltando dez minutos para o seu horário. Ele foi fumar um cigarrinho e aí chegaram três policiais, que entraram em uma casinha. Meu filho estava encostado no muro e ficou olhando, curioso, pra ver o que eles estavam fazendo. Eles começaram a falar um monte de palavrão pro meu filho, que xingou eles de volta. Aí eles pegaram ele pela camisa, deram cabeçada, ele ficou todo sagrando e ainda foi algemado. Com roupa do trabalho, crachá no pescoço.

Levaram ele, que depôs. Depois ele voltou para a faculdade, e foi para casa. Eu perguntei o que aconteceu, fiquei assustada, e ele me contou. Ele trocou a camisa e já estava saindo de novo, os estudantes estavam na delegacia e falaram pro Ricardo que “sujou”. Ele foi lá tentar conversar com eles, disse que não ia levar esse caso adiante. Falou que tinha passagem pela polícia e que gostava de sair à noite, podia piorar a situação. Eu falei que ele que sabia, e hoje me arrependo muito, cuidei dele por trinta anos e me descuidei por um minuto…

No dia seguinte ele saiu pra comer um lanche, não quis jantar em casa. Quando ele estava voltando, perto de casa, eu escutei todos os tiros que estavam dando no meu filho. Eu pensei que fosse escapamento de moto, mas aí meu vizinho veio batendo no portão desesperado. Eu vi meu filho todo ensanguentado, com as mãozinhas pra cima, aquelas mãos gordinhas que ele tinha, eu gostava de morder. Tinha muito sangue, não tinha mais jeito de salvar meu filho. Eu caí no chão, estou até banguela, sou pobre, não pude ainda arrumar. Tanto sangue que eu não conseguia nem chegar perto, eu lavei o sangue do meu próprio filho, um mundaréu de sangue. Eu esfreguei com uma vassoura o sangue do meu filho. E de lá pra cá eu não sei mais quem sou eu, é muita dor, muita tristeza.

Era meu único filho. Por que não prenderam, se ele estava errado? Meu filho teve passagem, e todos os domingos eu ia visitar ele, com a comidinha, cuidando, dando conselho, falando que ele tinha que trabalhar quando sair. Que passasse dez anos na cadeia! Eu ia estar lá – e hoje onde vou visitar meu filho? Eu ainda acho que é mentira, que vou acordar.

Era um filho bom, muito carinhoso, brincalhão. As pessoas vêm falar dele, todo mundo gostava dele, estava sempre batendo papo com as pessoas, era jovem. Teve passagem mas era um menino bom, ia correndo buscar remédio pra mim de bicicleta quando eu precisava, um filho bom. Ele tinha acabado de comprar um tênis em três prestações. Como vai ser meu natal?

Em junho, a PM e o Estado de São Paulo assumiram seus papéis de covardes- Sérgio Silva

Agradeço aos que se sensibilizaram com a minha causa, que não é só minha: a violência que foi cometida pela Polícia Militar nas manifestações de junho é apenas um reflexo da violência que é cometida todos os dias, há anos, nas periferias. Pra mim é bem estranho estar aqui, do lado de cá do microfone, ontem eu estava aí do lado dos companheiros de imprensa exercendo meu trabalho de fotógrafo e hoje o Estado me colocou do lado de cá. Agora o meu papel vai ser de cobrar uma resposta do Estado e do Secretário de Segurança Pública em relação ao inquérito que a PM diz que instaurou, em relação ao que eles chamaram de “possíveis excessos de violência policial”.

A polícia realmente desceu o cacete na juventude e nos movimentos sociais que estavam nas ruas em junho. Já se passaram três meses após o 13 de junho, em que fui atingido, e até o momento  o Estado não se pronunciou sobre essa fatídica noite. Para mim essa foi a noite da covardia, a noite em que a PM e o Estado de São Paulo assumiram seus papéis de covardes, e assumiram isso claramente para o país todo. Eles deixaram que a violência fosse televisionada, transmitida online.

Essa semana estamos completando vinte e cinco anos da Constituição e vinte e um anos do Massacre do Carandiru, chega a ser de certa forma algo irônico: alguma coisa está errada com essa Constituição, será que realmente conquistamos ela?

Eu venho carregando ao longo desses três meses uma dor muito pessoal, a perda da minha visão por conta de um projétil disparado por uma arma de bala de borracha. Isso é outro ponto extremamente importante de ser colocado em pauta: armas não letais. Elas matam, elas cegam, elas não são não letais. Alguém está por trás dessa indústria e está lucrando com a violência. Quem são essas pessoas? Quem são os políticos que patrocinam as políticas que colaboram com essas empresas?

Favela do  Moinho ocupou antigo cemitério clandestino, e pagou isso com sangue – Alessandra

Eu moro na Favela do Moinho há 19 anos, desde a fundação. Não sei se todos sabem da história da comunidade do Moinho, mas lá antes de ser ocupado por moradores era um cemitério clandestino da Polícia Militar de São Paulo. Naquela época nós travamos uma briga muito grande com a polícia, e desde então a gente segue brigando com eles. Em 2003… é uma coisa que não consigo nem falar. A polícia assassinou meu irmão e meu cunhado, meu irmão tinha quinze anos e morreu com dezesseis tiros.

Faz dez anos que a gente luta por justiça, e até hoje ninguém deu resposta. Muitas coisas aconteceram desde lá, eu apanhei, fui torturada por ser uma das testemunhas. Toda vez que eu vejo a polícia eu tenho que me esconder, se um dia eles me pegarem eu vou ser a próxima vítima. Meu irmão era uma criança, e em dez anos não aconteceu nada, eles continuam mandando lá dentro, fazendo cavalo-de-pau com a viatura, correndo com fuzil na mão no meio das crianças. São coisas inaceitáveis que acontecem até hoje.

Tinha duas testemunhas nesse caso, uma já morreu. E eu vivo que nem um rato, escondida. Sou mais uma que precisa ser tirada da lista deles. É muito difícil pra mim falar. Quando meu irmão morreu meu filho tinha quatro dias de nascido, a mesma data do aniversário dele é a data da morte do meu irmão, é muito difícil falar disso. A gente destruiu um espaço deles, um cemitério clandestino, e a gente pagou isso com sangue. Não foram uma ou duas pessoas que morreram lá, foram muito mais, alguns corpos nem apareceram até hoje, muita coisa que ninguém sabe. Era um matagal, eles levavam gente pra fazer esquadrão da morte lá dentro, muita coisa que eu vi eu tenho medo de falar, posso aparecer morta no meio da rua daqui meia hora.

Governo quer acabar com povos indígenas- Oriel Benitez

Sou do conselho do Aty Guasu do povo kaiowá e guarani do Mato Grosso do Sul e também faço parte do secretariado geral do Conselho Continental da Nação Guarani. Não podemos ficar de braços cruzados e ver acontecendo com outras pessoas, devagar isso vai chegando para nós, acaba chegando na cidade também. Nós presenciamos muito isso, a morte de lideranças nossas, crianças, professores, até hoje isso acontece e não há justiça. Gostaria em primeiro lugar, então, de falar em nome das nossas lideranças mortas, a morte do Amarildo nos comoveu muito, isso nós não podemos mais aceitar.

Nossas lideranças e caciques foram assassinados por pistoleiros de fazendeiros, e já houve caso em que quem trabalhava para os mandantes era policial. A gente não pode mais aceitar, nós somos um povo que vivemos num país democrático, temos leis que garantem, mas isso não se cumpre. Os kaiowá e guarani do Matro Grosso do Sul estão muito preocupados com o que chamamos de o projeto do governo assassino, a partir do momento que se aprove isso [PEC 215] vai haver muito conflito, o povo indígena não vai aceitar de maneira nenhuma a aplicação dessas leis dentro das aldeias, nós temos nossa autonomia, nossa cultura, nossa tradição, nossa forma de viver, jamais vamos deixar de praticar isso. O governo faz isso para acabar com o povo indígena.

Nosso sofrimento vem crescendo, nosso povo vem morrendo. Nossa saúde está péssima e nós precisamos de terra para sobreviver. Essa semana vai haver muita mobilização, vocês vão ver.

Os assassinos estavam de coturno – Professor Dora

No dia 4 de janeiro de 2013 houve uma chacina no Jardim Rosana, foram mortos sete trabalhadores neste dia, inclusive o DJ Lah. Eu estava a cinquenta metros da cena. Essas chacinas que aconteceram entre junho e janeiro de 2013, nós calculamos que deixaram 118 mortos: jovens, pobres e negros da periferia. Diante disso fizemos vários atos na cidade de São Paulo, até ocupamos a Secretaria de Segurança Pública. Isso tem que ter um ponto final.

Por que a abordagem policial da ponte pra lá é diferente da que acontece na Vila Madalena, nos Jardins? Como um jovem trabalhador é abordado na periferia com arma na cabeça? Na periferia ninguém pode tomar cerveja e na Vila Madalena os jovens ficam até seis da manhã com mesa na calçada? Quantos milhões investidos na Copa do Mundo enquanto o trabalho social da periferia está abandonado?

A rua onde a chacina aconteceu ficou deserta, hoje você vê jovens caminhando ali a passos largos, olhando para os lados. Na rua não tem mais ninguém, acabou a alegria naquele bairro. Policiais do 37º batalhão foram lá, eram catorze deles, e quem conseguiu escapar escapou. No caso do Bruno, ele tomou dois tiros e chegou no hospital com oito. Nós tentamos socorrer e eles abaixaram a porta do bar, não deixaram ninguém socorrer. Os moradores viram eles trocando de farda, as câmeras mostraram que os assassinos estavam de coturno, isso faz meses e até hoje não aconteceu nada.

Existência da Polícia Militar é barbárie- Mariana Toledo

Durante a luta contra o aumento em 2013 foram presas mais de trezentas pessoas. Os números oficiais não contam as prisões por averiguação, a polícia encaminhou para a delegacia pessoas por portarem tinta, vinagre ou só por terem cara de manifestante. Vemos aí a mesma lógica que leva a PM a prender jovens na periferia simplesmente por acharem que eles têm caras de suspeitos. As prisões para averiguação são prática corriqueira na periferia de São Paulo, mas não têm a mesma repercussão por ocorrerem longe das câmeras e por atingirem a população pobre e negra.

Dessas 300 pessoas presas, quase 25 aguardam para saber se serão julgadas, mesmo com a reconhecida falta de provas. Em todos os casos a única prova são as testemunhas da própria Polícia Militar. Existe ainda uma pessoa que continua presa: uma mulher, negra, moradora de ocupação urbana e que supostamente foi pega com um cobertor, roupas e itens de higiene pessoal. Seu habeas corpus foi negado, esse caso é a expressão de quem essa ordem manda prender.

Além disso, centenas de pessoas ficaram feridas por agressões ou uso de armamento menos letal, muitas delas com danos permanentes. Os atos de 2013 não cresceram devido a repressão policial, os atos do MPL sofrem repressão igual ou pior desde 2005, e nossas vítimas de agressão estão lado a lado com os que são assassinados nas periferias de São Paulo. Há uma prática lamentavelmente cotidiana de prisões seletivas e de genocídio da população pobre, em sua maioria negra e periférica. Todos os dias assassinatos são cometidos e nenhuma resposta é dada para mães que perdem seus filhos devido à barbárie que é a existência da Polícia Militar. A desmilitarização da polícia para nós é urgente.

Impunidade para crimes da ditadura está na raiz da barbárie policial – Ângela Mendes

Estamos vendo aqui um painel completo da barbárie que existe hoje no Brasil, e que continuou existindo mesmo com a chamada redemocratização. As vítimas dessa barbárie começam a emergir, a se juntarem e a se manifestarem nas ruas.

Eu fui militante durante a ditadura, meu companheiro também, Luiz Eduardo Merlino. Ele foi preso, torturado seguidamente durante mais de 24 horas, depois jogado numa cela solitária e ele morreu de gangrena. O principal responsável por sua morte é o famoso coronel Ulstra. Os militantes e os familiares de desaparecidos conseguiram efetivamente algumas vitórias, mas essa Comissão da Verdade que está aí deixa muito a desejar, o próprio governo não dá apoio.

Em 2005, a primeira homenagem que prestei a Luiz Merlino foi através da criação de um site, o Observatório das Violências Policiais, que denunciava, a partir de notícias de jornais, as diversas mortes e torturas que continuam acontecendo. Eu estou convicta que a impunidade que ainda permanece para os crimes da ditadura é uma das raízes fundamentais da impunidade e do descaramento que persistem não só do judiciário como a barbárie que as polícias praticam, particularmente nas periferias pobres. Temos que levar esses criminosos à justiça.

Foto: Carta Capital