Julho das Pretas: a maior agenda coletiva de mulheres negras da América Latina

Valdecir Nascimento, ativista do movimento de mulheres negras, traz um relato sobre as origens do Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e do Julho das Pretas
18/07/2023
por
Valdecir Nascimento*

Na primeira edição, em 2013, o Julho da Pretas contou apenas com 05 ou 06 organizações. Em 2015, mais de 100 mil mulheres brasileiras participaram de sua construção

Mulheres marcham celebra o dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha (Tânia Rêgo/Agência Brasil)

A realização do Encontro de Mulheres Negras na República Dominicana,1992, em protesto às celebrações de 500 anos do “descobrimento das Américas”, foi uma tomada de decisão muito atrevida de nossa parte, porque decidimos que faríamos o encontro e que estariam presentes representantes de todos os países da Região.

Foram cinco dias nos quais experimentávamos um contexto político que possibilitou o aparecimento de diversas organizações de Mulheres Negras na América Latina, no Caribe e na diáspora. Essas organizações tinham muito em comum. E esse fenômeno exigia a criação de espaços de diálogos transnacionais e a construção de alianças políticas que fortalecessem as organizações de mulheres negras; a fim de construir uma agenda alinhada com as lutas travadas em cada país, promovendo uma incidência política para o enfrentamento ao racismo, ao patriarcado e a todas as formas de violência e opressão que afetavam diretamente às mulheres negras.

A experiência de estar na Dominicana foi única. Já havia experimentado encontros gigantes com muitas mulheres negras no meu país, mas o que estava acontecendo naquele lugar foi único e, certamente, não poderemos repetir, pois aquele encontro foi um desaguar de possibilidades, histórias e o reconhecimento da construção de um território negro, feminino, transnacional, com muitas vozes e uma só direção.

A criação do 25 de Julho como o dia Internacional das Mulheres Afro-latino-americana, Afro-caribenha e da Diáspora está entre algumas das principais proposições do Encontro da Dominicana (1992), além do compromisso em promover a participação de mulheres negras em diferentes espaços políticos e de decisão.

MULHERES NEGRAS BRASILEIRAS

No Brasil, o 25 de Julho faz parte da agenda de várias organizações de Mulheres Negras desde 1993. Neste período, diversas atividades foram realizadas. Na Paraíba, por exemplo, o Dia da Mulher Negra da Latino-americana e Caribenha é celebrado desde 1998. E a partir de 2001, as atividades foram sendo ampliadas no estado com a criação da Bamidelê – Grupo de Mulheres Negras da Paraíba.

No Distrito Federal, desde 2008, o Festival Latinidades vem reunindo mulheres negras de diversos países da América Latina, Caribe e Estados Unidos. Nele, participam intelectuais, artistas, parlamentares, ativistas e cineastas. O evento tem como finalidade a de trocar experiências e a reflexão sobre a conjuntura política nos países envolvidos. Além de possibilitar as trocas geracionais.

Na contramão do movimento de mulheres negras brasileiras, políticos, Estado e empresas passaram a se apropriar da data. E começaram a fazer homenagens pontuais e entregas de certificados para mulheres negras, desviando o foco dos problemas quem as afetavam. Certificados e homenagens não alteram a nossa realidade, não revertem as desigualdades e violências causadas pelo Estado e pela omissão de muitos!  

Por tudo que havia sido proposto na Dominicana, em 1992, não poderíamos permitir que o dia 25 de Julho no Brasil fosse descolado dos fatos políticos que o originou. Portanto, o motivador central da criação do Julho das Pretas foi o sentimento de revolta e indignação por conta da tentativa de cooptação da data.

JULHO DAS PRETAS

O Julho das Pretas, criado em 2013, é uma incidência política pensada, proposta e organizada por diversas mentes pretas, para identificar as insatisfações constantes, as injustiças, as violações de Direitos Humanos e, ao mesmo tempo, construir estratégias de enfrentamento.

Em sua primeira edição, apenas 05 ou 06 organizações participaram. Já em 2015, a estratégia foi a ação mais poderosa que utilizamos para organizar a primeira Marcha de Mulheres Negras, que envolveu mais de 100 mil mulheres brasileiras em sua construção. O ato reivindicou o reconhecimento da trajetória política e histórica de Tereza de Benguela como liderança negra e quilombola e reafirmou o potencial revolucionário das Mulheres Negras.

O ponto forte da nossa aliança é a construção de uma agenda coletiva, que reúne ações de diversos movimentos. E como não pode deixar de ser, todo ano batemos um novo recorde. Se, em 2013, iniciamos com 05 atividades, este ano, atingimos 446 em todo o Brasil. Para tanto, contamos com a participação de três redes de mulheres negras (AMNB, Rede Fulanas e RMNNE) e 230 organizações, com atividades realizadas em 20 estados e no Distrito Federal.

INCIDÊNCIA POLÍTICA

O Julho das Pretas foi sendo forjado como tática fundamental da incidência política dos Movimentos de Mulheres Negras, que inicia na Bahia, se expande na região Nordeste e deságua no Brasil. Em seu curso, não se restringiu aos centros urbanos, alcançou, também, mulheres quilombolas, pescadoras e ribeirinhas, além de organizações de mulheres do interior do Brasil. Passou por escolas, por instituições sindicais, pela Organização dos Advogados do Brasil, por cooperativas de catadoras de resíduos sólidos…

A articulação se conecta, ainda, com intelectuais e ativistas brasileiras e estrangeiras, como, por exemplo, Ângela Davis, Ângela Figueiredo, Patrícia Hill Colins, Terlúcia Silva, Kimberly Crenshaw, Rosane Borges, Sueli Carneiro, Luiza Bairros, Nilma Bentes, Maria Lúcia, artistas e cineastas, jovens, como, Jaqueline Fernandes, Viviane Ferreira, Larissa Fulana de Tal. Um mundo de mulheres negras com suas artes e histórias.

JULHO DAS PRETAS É EXISTÊNCIA

O Julho das Pretas é existência. É sinônimo de mulher negra, de povo negro. Na história Brasil, várias têm sido as formas de resistência que o povo negro – particularmente, as mulheres negras – têm desenvolvido, a cada dia, para garantir a sua existência.

Em cada canto deste país, mexemos e movemos estruturas engessadas; negamos e recriamos conceitos; expressamos corporalmente sem negar os outros sentidos e sentimentos. São expressões de um fazer político comprometido com a nossa experiência histórica, com o sentido de liberdade e autonomia, marcados pela nossa existência. É um jeito mulher negra de ser.

O Movimento de Mulheres Negras se orgulha de dizer que os “nossos passos vêm de longe”. Esta frase celebra as pessoas que vieram antes de nós na luta política. Exalta nossa ancestralidade insurgente. E refere-se, também, ao acúmulo de experiências, saberes e métodos de fazer política coletiva, feminina e preta. Isso é o Julho das Pretas! ­­­­


Valdecir Nascimento – Divulgação | Instituto Odara

* Valdecir Nascimento é ativista do movimento de mulheres negras, historiadora e mestre em educação, coordenadora e fundadora do Odara — Instituto da Mulher Negra; coordenadora da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB); representante brasileira na Rede de Mulheres Afro-latino-americanas, Afro-caribenhas e da Diáspora.