Mobilidade: soluções tecnológicas não param em pé sozinhas

A especialista em mobilidade urbana Kelly Augusto reflete sobre o investimento em carros automatizados e o impacto da tecnologia na sociedade
05/10/2023
por
Kelly Cristina Fernandes Augusto
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Algumas, temem os efeitos do uso da IA na sociedade, apontando para possíveis desdobramentos negativos, como a obsolescência de atividades econômicas, violação de direitos autorais e problemas de segurança da informação. Outras, acreditam que a IA elevará a humanidade a um novo patamar de desenvolvimento socioeconômico, contribuindo de forma positiva para a sociedade.

Além disso, existem vozes como a de Peter Norton que vão além da inovação tecnológica em si e questionam os princípios subjacentes às sucessivas inovações sociais. Ele traz o exemplo dos automóveis automatizados, destacando a importância de considerar não apenas a tecnologia, mas também seu impacto na sociedade. Esse tema tem ganhado relevância diante dos desdobramentos recentes relacionados à ampliação do acesso à inteligência artificial, ganhando espaço no debate público, especialmente durante o Dia Mundial Sem Carro, celebrado em 22 de setembro.

A entrada de novas tecnologias historicamente sempre gerou certa ansiedade social. Norton ilustra isso ao mencionar em “Autorama” os registros de expectativas sociais geradas pela introdução do carro como solução para a redução de distâncias, economia de tempo e busca pela autonomia individual. No entanto, após o (in)sucesso da disseminação do automóvel como meio de transporte principal, as cidades se tornaram mais congestionadas, o tempo gasto no trânsito aumentou e a autonomia individual diminuiu.

Na prática, a revolução anunciada, no Brasil, há cerca de 70 anos, teve um alto custo para a humanidade, especialmente no sul global, onde a inovação automobilística chegou de forma exclusiva para alguns grupos sociais, demandando muito espaço e investimento público. Em algumas cidades, o foco no transporte rodoviário resultou na desativação da infraestrutura ferroviária, deixando apenas alguns trilhos como testemunho dos bondes que costumavam transportar dezenas de pessoas, sem gerar emissões de poluentes e gases de efeito estufa. A partir dessa experiência de desmantelamento do sistema de bondes em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, podemos nos perguntar se as inovações nos fazem retroceder.

Embora o transporte rodoviário por ônibus tenha proporcionado acessibilidade aos bairros periféricos, também contribuiu para a consolidação de um modelo de urbanização disperso e fragmentado. Esse contexto de desenvolvimento urbano determinou o sistema viário e, consequentemente, um padrão de oferta de transporte focado, principalmente, em relações produtivas, ignorando a reprodução da vida e o trabalho reprodutivo. Isso deixou as mulheres, responsáveis por atividades de cuidado, desassistidas de serviços e infraestrutura que socializassem ou simplificassem essas atividades.

Vale ressaltar que, nas grandes capitais brasileiras, as mulheres são a maioria dos usuários do transporte público, com as mulheres negras representando o grupo mais significativo. Isso resulta em menos mulheres usando carro como meio de transporte principal, enquanto a maioria dos proprietários de veículos são pessoas brancas. As informações relacionadas aos padrões de mobilidade de diferentes grupos sociais nos ajudam a compreender que as revoluções tecnológicas podem ser profundamente desiguais, mas também destacam quais grupos mais contribuem para padrões de mobilidade sustentáveis, menos emissões de poluentes e gases de efeito estufa e menos prejudiciais à sociedade.

Destacar o perfil das pessoas que possuem automóveis e o usam como meio principal de transporte no Brasil é fundamental para refletir sobre quem se beneficia com os investimentos públicos e privados realizados em prol dos automóveis. É importante considerar os investimentos indiretos, como infraestrutura viária, estacionamento gratuito, acidentes de trânsito, poluição do ar, subsídios para combustíveis, entre outros, ao calcular o custo social do automóvel.

Muitos avanços no setor automobilístico não foram alcançados no mesmo nível no que diz respeito aos veículos usados no transporte público coletivo e na logística urbana. Isso ocorre porque os investimentos em desenvolvimento científico e tecnológico são frequentemente motivados pela abertura de novos mercados e expansão do consumo. Um exemplo disso é a descarbonização da frota de ônibus, que pode ser uma alternativa para reduzir as emissões no setor de transporte diante das preocupações com o aquecimento global. No entanto, a eletrificação de veículos individuais muitas vezes recebe mais atenção e financiamento do que a eletrificação de ônibus, que deveria ser priorizada.

Além disso, a introdução de novas tecnologias, quando alinhada com princípios de promoção de direitos sociais, pode ter um papel transformador. Isso pode levar à revisão de padrões, incluindo a inclusão das mulheres, como demonstram projetos em andamento em cidades latino-americanas, como o da empresa pública de transporte coletivo La Rolita, em Bogotá, na Colômbia. A empresa foi criada a partir da necessidade de atender uma demanda de transporte que, inicialmente, não interessava ao setor privado. E busca a paridade entre homens e mulheres na operação, desde a direção até a manutenção dos ônibus.

Essa experiência revela não apenas o papel do poder público na criação de modelos de desenvolvimento, mas também o potencial de inovação que vai além das mudanças tecnológicas, comprometendo-se em reduzir as lacunas de gênero e incluir pessoas em situação de vulnerabilidade.

Refletindo sobre o uso do automóvel e suas atualizações tecnológicas, podemos extrair lições que nos ajudarão a definir o papel que a inteligência artificial terá em nossa sociedade. Isso ocorre porque a inteligência artificial desempenha um papel importante na atração de investimentos, com bilhões de dólares investidos em seu desenvolvimento nos últimos anos, e um aumento exponencial esperado no volume de recursos aplicados. Será que é possível canalizar esses investimentos para o desenvolvimento do setor de transporte público coletivo, ao invés de esperar que os desdobramentos do uso da IA significa para o setor a perda de mais pessoas que o utilizam, redução de postos de trabalho e captura de dados pessoais e sensíveis em detrimento da sociedade?

Certamente essa pergunta deve ser respondida com base em visões orientadas às urgências sociais e coletivas do nosso tempo. E, uma delas é a desigualdade social, com a segregação racial sendo um de seus aspectos mais perversos. Assim, qualquer política, plano ou inovação tecnológica dificilmente poderá promover uma melhor qualidade de vida se não abordar com profundidade, transparência e participação social os grandes desafios da sociedade.

Um exemplo claro sobre os limites da inovação tecnológica é o acesso desigual à internet no Brasil, que varia de acordo com a região, renda e grupo social. Inovações que dependem do uso intensivo de pacotes de dados de internet podem aprofundar as diferenças de acesso a serviços públicos, como informações de transporte público. Portanto, é fundamental que as introduções tecnológicas sejam orientadas por uma visão social que priorize a inclusão e a melhoria do bem-estar da sociedade como um todo.

Em resumo, a introdução de tecnologias, como a inteligência artificial, carros automatizados e outras que virão, deve ser cuidadosamente considerada, não apenas em termos de seus benefícios tecnológicos, mas também em relação às suas implicações sociais e econômicas. O alinhamento dessas inovações com princípios de justiça social e igualdade é essencial para garantir que elas contribuam para uma sociedade mais inclusiva e sustentável.

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Kelly Cristina Fernandes Augusto – arquiteta e urbanista, especialista em mobilidade urbana