O fracasso da burguesia alemã

O insucesso da revolução de 1848 definiu os parâmetros para o desenvolvimento reacionário da unificação alemã – e ainda além desta, diz Albert Scharenberg
17/03/2023
por
Albert Scharenberg*

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O insucesso da revolução de 1848 definiu os parâmetros para o desenvolvimento reacionário da unificação alemã – e ainda além desta, diz Albert Scharenberg

Um cartão postal contemporâneo que comemora a luta nas barricadas em Berlim na noite de 18 de março de 1848.
Foto: Wikimedia Commons
Um cartão postal contemporâneo que comemora a luta nas barricadas em Berlim na noite de 18 de março de 1848. Foto: Wikimedia Commons

Esses dias, a sociedade alemã poderia estar celebrando o 175º aniversário da revolução de 1848. Revolução esta que deu origem ao primeiro parlamento nacional alemão, marcando, portanto, o nascimento da democracia alemã. Além disso, com a fundação dos primeiros sindicatos surgiu também o movimento trabalhista organizado.

Entretanto, este aniversário é raramente mencionado na cultura popular. Estaria a burguesia constrangida com fracasso épico de sua própria classe durante e depois da revolução? Em todo caso, haveria razões suficientes para isso, já que a vitória da contrarrevolução dos regentes sobre o despertar democrático republicano sucedeu em preservar o poder das classes altas tradicionais, influenciando a Alemanha por um século inteiro. Neste sentido, a revolução, ou melhor, seu fracasso, marcaria talvez um dos momentos mais importante da história alemã. Como isso pode ter acontecido?

PRIMEIRO ATO: O SURGIMENTO DAS MASSAS

Trata-se de uma ironia da história que a Revolução Alemã de 1848 tem a sua origem em outro país. Com a Revolução Francesa nasceu o governo popular que pôs fim ao Antigo Regime no final do século XVIII. Com isso, a justificativa tradicional absolutista da “graça de Deus” tornou-se historicamente obsoleta, embora que com os vieses e reveses da história ainda demorasse algum tempo para enterrar definidamente esse tópico.

Nesse passo de caranguejo da revolução, Napoleão Bonaparte, ao dominar quase toda a Europa, exportou algumas de suas ideias nas mochilas de seus soldados, inclusive para a Alemanha. O poder combinado dos soldados e do Código Civil provocou o colapso dos antigos poderes. Em 1806, Francisco II abdicou da coroa imperial em Viena; o Sacro Império Romano-Germânico, estabelecido no século X, tornou-se coisa do passado. Mesmo a Prússia sentiu-se obrigada a modernizar seu próprio aparelho do Estado após sua derrota em Jena e Auerstedt.

Durante as denominadas guerras pela independência, nas quais os países ocupados pela França se levantaram contra o domínio napoleônico, os monarcas alemães apelaram especificamente à “consciência nacional” dos alemães, alimentando assim a esperança de formar-se um governo diferente. Após a Batalha de Leipzig, todavia, na qual as tropas unidas da coalizão derrotaram o exército de Napoleão em 1813, anunciando assim o fim de seu domínio, este nacionalismo foi abandonado imediatamente. A mobilização das massas parecia perigosa demais para Suas Majestades.

SEGUNDO ATO: DA RESTAURAÇÃO À REVOLUÇÃO

No Congresso de Viena, os antigos governantes foram reintegrados em seus postos. A “Sagrada Aliança” das “três águias negras” – Rússia, Áustria e Prússia – gostaria de ter anulado a Revolução Francesa. A essas alturas, todavia, o gênio democrático já havia escapado da lâmpada e não havia como reverter a situação. As décadas seguintes foram, portanto, marcadas em toda a Europa pela luta pela supremacia entre as forças burguesas – comerciantes, jornalistas, empresários, advogados, professores e estudantes que avançavam com vigor rumo à democracia e república – e os antigos poderes da restauração das classes.

As “três águias negras”, que já haviam dividido a Polônia entre si no século 18, continuaram sendo o reduto reacionista da Europa. Com as resoluções de Carlsbad em 1819, foi declarada a guerra ao liberalismo e à democracia, aumentando as repressões. A liberdade de expressão foi suspensa, a imprensa censurada, os ginásios fechados, as fraternidades proibidas, as universidades monitoradas e os professores com ideias liberais demitidos.

Desta forma, os antigos poderes sucederam em reprimir temporariamente o movimento democrático e cada vez mais republicano. A ascensão de uma nova ordem econômica, o capitalismo, no entanto, levou-os a impor certas modernizações de cima para baixo – na Alemanha, por exemplo, foi fundada a Confederação Germânica (Deutscher Bund) e a União Aduaneira Alemã. Com isso, porém, eles mudaram o tradicionalismo alemão – encorajando, contra sua vontade, o movimento de oposição.

Além disso, uma espécie de transnacionalismo republicano surgiu no período do “Vormärz”, que antecede a revolução de março: A própria luta pela democracia e pela república era compreendida como parte de um movimento internacional contra os poderes da antiga Europa. Também na Alemanha, a Revolução de Julho na França em 1830 e a Revolução de Novembro na Polônia foram recebidas com entusiasmo, e bandeiras polonesas foram  hasteadas na manifestação de Hambach em 1832. Esta orientação universalista, todavia, já naquela época estava em oposição a uma interpretação bastante particularista da “nação alemã”, que se expressava inclusive no Romantismo, o qual muitas vezes focava – em oposição à tradição francesa – na suposta “essência alemã”.

Em 1844, as classes trabalhadoras assumiram subitamente o palco da história com a revolta dos tecelões da Silésia, que haviam caído na miséria após a expansão das fábricas têxteis. Embora a revolta dos tecelões tenha sido contida com violência pelos militares prussianos, não tardou a chamar a atenção da sociedade para a situação do povo trabalhador comum, encontrando grande repercussão na população. As forças progressistas, incluindo Karl Marx que vivia no exílio em Paris, deixaram-se contagiar por este evento. A repressão violenta da revolta, no entanto, confirmou que os governantes continuaram bloqueando qualquer mudança nas condições sociais.

TERCEIRO ATO: A REVOLUÇÃO DE 1848

Uma vez que as potências regentes na França, na Prússia e em outros lugares não queriam permitir mudanças no estado reacionário, uma onda de revoluções varreu a Europa em fevereiro e março de 1848. Novamente o movimento iniciou-se em Paris e populações em todo o continente se revoltaram.

Em Berlim, os confrontos culminaram em 18 e 19 de março em lutas de barricadas com centenas de vidas perdidas. O rei Frederico Guilherme IV foi forçado a retirar os militares da cidade e a fazer concessões políticas. A revolução tomou um rumo semelhante em muitas outras cidades da Confederação Germânica. Logo foi eleita uma Assembleia Nacional, parlamento este, que foi constituído em 18 de maio na Paulskirche em Frankfurt.

Para que a vitória da revolução fosse permanente, haveria necessidade de uma ação mais decisiva. Pois a contrarrevolução dos antigos governantes, que de forma alguma admitiriam a derrota, não tardaria muito. Ao mesmo tempo, a Assembleia Nacional atuava com clara hesitação, seus debates eram lentos e prolongados. O “parlamento dos professores” logo tornou-se objeto de deboche.

A indeterminação do parlamento também se devia ao fato de que os partidos que ali se formaram tinham visões distintas sobre o futuro curso da revolução – a direita monarquista queria acabar com ela o mais rápido possível, o chamado centro objetivava uma monarquia constitucional. Somente a esquerda democrática defendeu o estabelecimento de uma república parlamentar-democrática – mas ela estava na minoria.

O movimento operário e sindicalista que acabava de se formar, bem como a Liga Comunista, apostavam na aliança com os democratas. Mas apesar dos esforços de constituir uma organização nacional, o movimento ainda era muito fraco para ter qualquer influência sobre o processo revolucionário.

O ponto decisivo das revoluções europeias foi a supressão da revolta operária de Paris em junho de 1848 – apenas três meses após o início da revolução em Berlim, o clima na burguesia já havia começado a mudar. As classes mais ricas temiam a reação da coroa; mas o que obviamente temiam ainda mais era a ameaça aos seus bens que parecia chegar com as massas de trabalhadores nas ruas de Paris. Como resultado, a contrarrevolução do principado regente foi ganhando gradualmente a dianteira.

Um ano após o início da revolução, o parlamento na Paulskirche finalmente adotou, em 27 de março de 1849, uma constituição imperial que deveria estabelecer um estado federal alemão único com uma monarquia constitucional – este, todavia, sem a Áustria, ou seja, a denominada solução da Pequena Alemanha. Entre as duas opções, esta era a mais reacionária, pois desta forma a Prússia, que era menos liberal que os reinos do sul da Alemanha, ascendeu, tornando-se o poder hegemônico dentro da Alemanha, ao contrário da solução da Grande Alemanha, que incluiria a Áustria. Quando o rei prussiano, que havia sido eleito “Imperador dos alemães” pela Assembleia Nacional, rejeitou a coroa oferecida a ele um mês depois, alegando a sua legitimação pela “graça divina”, o parlamento estava à beira do colapso e se dissolveu ao final de maio. Posteriormente, foi constituído um “parlamento residual” em Stuttgart, mas que logo foi dispersado pelas tropas de Württemberg, enquanto os soldados prussianos terminaram violentamente a Revolução de Baden dominando a cidade de Rastatt. Este acorde dissonante encerra a revolução.

Milhares de revolucionários fugiram e deixaram a Alemanha. A maioria dos revolucionários da “revolução de 48” foi para os Estados Unidos, onde muitos deles mais tarde se filiaram ao Partido Republicano e lutaram contra a escravidão na Guerra Civil do lado das tropas da União. Para o movimento democrático na Alemanha, porém, estes revolucionários da “revolução de 48” estavam tão perdidos quanto os de seus companheiros de luta que, após a derrota da revolução, aderiram cada vez mais às potências existentes.

QUARTO ATO: A SEPARAÇÃO ENTRE A DEMOCRACIA PROLETÁRIA E A DEMOCRACIA BURGUESA

O fracasso da revolução também marcou o término das ambições republicano-revolucionárias da burguesia alemã. Ela nunca mais se recuperou desta derrota. Isto significava que a burguesia, se não quisesse comprometer seu próprio progresso material e sua riqueza, que estava aumentando explosivamente com o início da industrialização, dependia de compromissos com os regentes.

Com o rápido crescimento da economia, todavia, a desigualdade social também cresceu. E como a burguesia liberal apostou na cooperação com as autoridades, o movimento operário viu-se cada vez mais isolado. Já nos anos 1860, a fundação dos primeiros partidos de trabalhadores independentes, o ADAV e o SDAP, deu origem à “separação entre a democracia proletária e a democracia burguesa” (Gustav Mayer). Na verdade, porém, segundo relatos de Jürgen Kocka, esta foi “a substituição do último pelo primeiro, porque de fato não sobrou muito do movimento democrático burguês independente (…) após Bismarck ter fundado o Reino da Prússia (…)”. E como a burguesia se havia rendido, o movimento dos jovens trabalhadores teve que assumir também sua missão histórica, a democratização da sociedade.

A separação, todavia, fez com que a partir de agora as elites sociais e econômicas se uniram contra o movimento dos trabalhadores. Logo após a fundação do Reich (Reino da Prússia), uma “unidade de ação” foi forjada entre a antiga aristocracia e a nova burguesia, de forma que o caráter repressivo do Estado seria agora dirigido contra a classe trabalhadora, defendendo os interesses de ambos. Em 1878, a chamada Lei Antissocialista proibiu todas as atividades do Partido Social-Democrático e de seus sindicatos. Mesmo após sua readmissão em 1890, o movimento operário permaneceu em quarentena social. O isolamento social não foi, portanto, de forma alguma adotado por vontade própria, mas ocorreu a partir do comportamento – ou, em uma linguagem mais polêmica, da covardia – da burguesia alemã.

ATO FINAL: O CAMINHO REACIONÁRIO PARA A UNIDADE ALEMÃ

O fracasso da burguesia e da revolução “da base” abriram caminho para que as velhas potências ressurgentes estabelecessem a unidade alemã “de cima para baixo”, definindo assim o curso da política rumo a uma direção reacionária que eventualmente levou à fundação do Império Alemão sob a liderança prussiana.

Otto von Bismarck tornou-se o arquiteto da unidade. O nobre do Leste do Elba ficara ao lado do rei prussiano durante a revolução. Ele devia sua nomeação como primeiro-ministro prussiano em 1862 à sua reputação de “durão”, capaz de arrancar os últimos dentes da burguesia. E a burguesia alemã suportou suas humilhações. O que restava muitas vezes não era muito mais do que um “patriotismo da cerveja” burguês (Marx).

Com “ferro e sangue”, ou seja, por meio de três guerras, Bismarck estabeleceu então a unidade. Como resultado, a Prússia não se uniu à Alemanha, mas a Alemanha à Prússia. A constituição do novo Reino alemão continha elementos progressistas, como o sufrágio universal masculino, mas isto só se aplicava às eleições para o parlamento (Reichstag); não à Prússia, onde o sufrágio de três classes continuava a existir. Não foi por acaso que o social-democrata Wilhelm Liebknecht descreveu a Prússia como uma “instituição de seguro do principado regente contra a democracia”.

Acima de tudo, porém, a unidade estabelecida “de cima para baixo” garantia a supremacia da nobreza, cujos privilégios nas instituições estatais e na sociedade foram salvaguardados. Todos os cargos mais altos do Estado e do exército eram reservados aos nobres; os cidadãos, mesmo os ricos, estavam subordinados à nobreza do Estado. O novo império, portanto, não representava um novo começo, mas a continuação da regência das classes altas tradicionais. As estruturas antigas, tradicionais, baseadas em classes foram assim preservadas.

Não foi por acaso que cidadãos poloneses e judeus foram as primeiras vítimas do Reich, que foi proclamado em 18 de janeiro de 1871 no Salão dos Espelhos, em Versalhes. A política de germanização em relação à população polonesa foi intensificada, e o antissemitismo estava prestes a se impor no jovem império, tornando-se até mesmo um fenômeno de massa. Então, na década de 1880, o Reich também se tornou uma potência colonial.

A forma reacionária da unidade alemã, construída sobre as ruínas da revolução de 1848, consolidou o poder das classes altas tradicionais durante décadas. No processo, a burguesia, o grande capital, amadureceu tornando-se a força economicamente dominante; o poder político, no entanto, permaneceu a cargo da nobreza do Estado de classes.

E o efeito deste estabelecimento da unidade governante estendeu-se mesmo além da Revolução de novembro de 1918 e a derrubada dos monarcas alemães. Toda a burocracia, os funcionários leais ao imperador no judiciário, militar, administração, educação, etc., permaneceram em seus postos após a Primeira Guerra Mundial e trabalharam para abolir novamente a República de Weimar – o que finalmente conseguiram fazer em 1933. Portanto, foi perfeitamente coerente que um nobre prussiano, Paul von Hindenburg, tenha nomeado Hitler como Chanceler do Reino, e que os funcionários públicos leais ao imperador ajudaram então assiduamente a estabelecer firmemente o regime nazifascista.

Só os revolucionários de 1848 não podem ser responsabilizados por este desenvolvimento. É claro que o fracasso da revolta revolucionária e a subsequente subordinação da burguesia às autoridades regentes moldaram decisivamente a história alemã durante um século.


*Albert Scharenberg é historiador, cientista político e editor de política internacional na Fundação Rosa Luxemburgo.