Paraguai estuda expandir áreas militarizadas 

No marco dos dez anos da Força-Tarefa Conjunta no Norte do país, governo defende ampliar orçamento e extensão da zona em que o Estado de Direito foi suspenso
21/12/2023
por
Ramón Corvalán com abertura de Daniel Santini e tradução de Luiza Mançano

No marco dos dez anos da Força-Tarefa Conjunta no Norte do país, governo defende ampliar orçamento e extensão da zona em que o Estado de Direito foi suspenso. Análise aponta que medida deve favorecer expansão de monocultivo e exploração de recursos naturais, com graves impactos sociais e ambientais 

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Por Daniel Santini

Com um trabalho estruturado em torno da defesa de Direitos Humanos e da educação para a Não-Violência Ativa (NOVA),  a organização Servicio Paz y Justicia Paraguay (SERPAJ-PY) é uma das organizações que há mais tempo tem acompanhado a ocupação militar no Norte do país. Desde 2013, três estados paraguaios encontram-se em estado de exceção permanente, ocupados por tropas das forças armadas. Designados originalmente para combate emergencial ao Exército do Povo Paraguaio (EPP), grupo guerrilheiro que tem como estratégia a realização de sequestros, os militares se instalaram e passaram a policiar de maneira contínua os estados Amambay, Concepción e San Pedro. Uma década depois, o governo agora fala em ampliar o orçamento e expandir a área de atuação das tropas.

O artigo a seguir, escrito por Ramón Corvalán, integrante do SERPAJ-PY, apresenta uma análise detalhada que ajuda a entender a estratégia e a dimensionar impactos sociais e ambientais relacionados. O tema, que normalmente recebe pouca atenção dos países vizinhos, é chave para melhor compreensão de um processo de militarização crescente, com supressão de direitos fundamentais e ameaça à democracia. Trata-se de uma tendência que afeta não só o Paraguai, mas toda a região. O trabalho de acompanhamento de violações e denúncias realizado pelo SERPAJ-PY na região é apoiado pela Fundação Rosa Luxemburgo.

10 ANOS DE FORÇA-TAREFA CONJUNTA NO PARAGUAI: AMPLIAÇÃO DO ORÇAMENTO E EXTENSÃO DA ZONA DE INFLUÊNCIA

Ramón Corvalán[1]

O Ministério do Interior paraguaio confirmou que o governo está analisando a extensão da zona de influência do Comando de Operações de Defesa Interna (CODI) e da Força-Tarefa Conjunta (FTC) a outros departamentos do país para aumentar a segurança dos cidadãos, especificamente em Caaguazú, Canindeyú e Alto Paraná, bem como Ñeembucú e Itapúa[2].

Ele explica que ainda “seria possível ampliar a zona de influência, já que lugares que antes eram conhecidos pela violência, como Huguá Ñandú, Arroyito ou Takuatí, sendo esse último o local onde o senhor Lindstrom foi assassinado, hoje são cidades tranquilas e prósperas, e o segredo disso é a segurança. Se há segurança, há desenvolvimento, assim como há presença do Estado, chegando com luz, água, com desenvolvimento e trabalho; o terreno foi preparado, plantamos as sementes, compramos a produção e, bom, hoje temos outra realidade. Esse é o trabalho que o Ministério do Interior tem de fazer simultaneamente com a questão da segurança”.

Esses argumentos contrastam com as conclusões da Missão de Observação sobre a situação dos direitos humanos na Zona Norte do país, realizada pela Coordenação de Direitos Humanos do Paraguai (Codehupy, 2021)[3] oito anos após a criação da FTC. A Missão de Observação aponta que: “há um cenário caracterizado pela implementação de um determinado modelo de desenvolvimento econômico, vinculado a atividades extrativistas[SD2] , o que provocará um grande impacto ambiental e um importante processo de reorganização social, com particular ênfase no deslocamento de camponeses e das populações indígenas, com a reconversão produtiva do território da agricultura camponesa”. Assim, “a política de segurança proposta na região tem mais a ver com o controle do conflito social gerado pelo modelo de desenvolvimento que está sendo implementado no local do que com a mitigação do risco representado pelo crime organizado”.

Naquele mesmo ano, o Serpaj Py publicou o documento Investigação sobre os gastos da Força-Tarefa Conjunta (FTC), no qual conclui “que o território e a população dos departamentos de Concepción e San Pedro (e também de Amambay) estão passando por um processo de transformação profunda, devido à ampliação e ao aprofundamento de características extrativistas, mafiosas e oligárquicas.”[4].

Se, dez anos após a implementação da FTC, o controle militar da vida cotidiana é uma das etapas de um processo mais amplo de reconfiguração das relações entre a população e o território, qual é a lógica que esse Estado, que não é um Estado de Direito, e sim, de certa forma, uma meia-democracia, pretende aplicar?[5]

Campesinato no Paraguai: existência sob ameaça?

Almeida (2023), em um artigo que analisa o contexto de aumento da violência e da repressão aos camponeses no Paraguai como parte de um processo de descampesinação, destaca que “os últimos dez anos correspondem a um período marcado pela multiplicação de casos de violência contra as populações camponesas no Paraguai”[6]. Ele aponta que o período parlamentar pós-golpe (2012) se caracterizou por uma postura mais intransigente em relação às demandas dos camponeses, incluindo reações mais violentas a novas ocupações e assentamentos já estabelecidos. O autor se refere a uma ‘violência didática’ como ofensiva anticamponesa.

Essa modalidade já aparecia nas conclusões do relatório Chokokué, elaborado pela Codehupy, em suas duas edições[7]. Na primeira edição (2007), concluía-se que “essas graves violações do direito à vida fazem parte de um plano para interromper os protestos, aterrorizar as comunidades e as organizações camponesas e dissuadir as ocupações”. A segunda (2014), que “em 25 anos de governo pós-ditatorial, entre 3 de fevereiro de 1989 e 15 de agosto de 2013, 115 lideranças e membros de organizações camponesas foram executados e desaparecidos no contexto de ataques perpetrados contra as comunidades rurais”. O relatório também esclarece que essas ocorrências “não se deram por acaso, de forma desconexa ou como consequência da falta de controle de algum policial”. Isso é, elas correspondem a um esquema de impunidade.

Arrúa, García e Ortega (2023) destacam que o governo de Nicanor Duarte (2003-2008) aprofundou a criminalização da luta social com 6.336 despejos e 3.000 pessoas indiciadas; no governo Lugo (2008-2012) “a perseguição, as acusações e os assassinatos não cessaram, manteve-se o mesmo esquema de criminalização[8][LM3] ; com Cartes (2013-2018) alcançou cerca de 4.471 pessoas, 34 despejos, 389 indiciamentos, 539 prisões, com 51 condenações e o assassinato de 8 lideranças sociais; enquanto com Abdo (2018-2023) os números subiram para 6.565 pessoas afetadas, 41 despejos, 97 indiciamentos, 172 prisões e 6 assassinatos. Além disso, desde setembro de 2021, está sendo aplicada a “lei Zavala-Riera”, como é conhecida, que aumenta a pena para a ocupação de propriedades de terceiros para até 10 anos de reclusão, com classificação criminal.

Um poder real e letal

Uma questão a ser acrescentada à análise do processo mencionado acima é a persistência do que Tomás Palau (2010) chamou de estrutura do poder real no Paraguai, que distingue quatro grupos: a oligarquia pecuária, os narcotraficantes, os ‘empresauros’ e as multinacionais. “O primeiro é o mais antigo deles; o segundo e o terceiro se instalaram com Stroessner; o último poder surge após o golpe de 1989 e é composto por aqueles que se tornaram os ‘paladinos’ da democracia mínima que rege o país atualmente”[9]. O autor destaca que a soja e a pecuária se tornaram importantes mecanismos de acumulação de capital e, ao mesmo tempo, são os setores que mais exigem grandes extensões de terra para manter a lucratividade. A disputa pela terra se torna, portanto, significativamente desigual, já que a agricultura e a pecuária corporativa contam com uma legislação feita sob medida, tecnologia, capital e acesso aos meios de comunicação hegemônicos, enquanto “as comunidades indígenas e os assentamentos rurais ficam à margem”.

Já o fenômeno do tráfico de drogas tem um perfil particularmente complexo. Na edição de 2023 do Índice Global de Crime Organizado, o Paraguai aparece como o quarto país no ranking dos 193 países estudados, ocupando o terceiro lugar nas Américas e o segundo na América do Sul. O Paraguai é um país de trânsito e de destino do tráfico de cocaína, no qual a droga é transportada com apoio e ligação com as elites locais, agentes do Estado e funcionários públicos que facilitam as atividades e criam obstáculos para as ações legais.

O Estado capturado

Verónica Serafini Geoghegan (2017) descreve que esses atores, por meio de órgãos e comissões, assumem várias funções e permeiam o aparato estatal, “o que resulta na captura de políticas e prioridades públicas”[10]. Ao identificar a posição de tais atores, a autora afirma que “a maior participação do setor privado se dá nas esferas agrícola e ambiental, dentro de órgãos colegiados”.

O controle militar proposto pelo Ministério seria implantado principalmente em territórios caracterizados pela pecuária e agricultura tecnificadas e pelo cultivo de arroz, operando em áreas onde são registrados fluxos de contrabando de/para o Brasil e a Argentina (tabaco, medicamentos, produtos agrícolas). Em relação aos cultivos de cannabis, o controle seria implantado em áreas de corredores de tráfico primário e secundário para o Brasil e a Argentina e em departamentos paraguaios com produção de alto e médio porte (Amambay, Alto Paraná).

Uma das mulheres entrevistadas por Benegas (2023) declara: “Não vejo a presença militar como segurança, não temos segurança. Não nos sentimos protegidos”. Mas então, por que eles vieram? Ela responde: “Há três anos, o cultivo de soja e milho transgênico também estão avançando. Mais proteção para os pecuaristas e para o agronegócio. Agora também está sendo implementado o cultivo de celulose. Omokangy ha omosarambi a organização”[11].


[1] Este artigo se baseia em uma reportagem feita por Julio Benegas para o Serpaj Py, dez anos após a implementação da Força-Tarefa Conjunta na Zona Norte do Paraguai. Ele se detém particularmente na tentativa de compreender a lógica por trás da proposta de ampliação do alcance territorial da FTC, apresentada pelo Ministro do Interior, Enrique Riera.

[2] https://www.lanacion.com.py/politica/2023/09/15/analizan-extender-operaciones-del-codi-ftc-a-otros-departamentos-del-pais/

[3] Codehupy. Informe Final. Misión de Observación sobre la situación de los derechos humanos en la zona Norte. Codehupy, Asunción, 2021.

[4] Servicio Paz y Justicia, Paraguay. Una investigación sobre gastos de la Fuerza de Tarea Conjunta (FTC), a siete años de su implementación en la zona Norte y su impacto sobre el derecho a la vida, en particular sobre el derecho del campesinado. SERPAJ Py, Asunción, 2021.

[5] José Carlos Rodríguez. Escollos del nuevo gobierno sin gestos para hacerle frente. In: Economía y Sociedad. Análisis de coyuntura – Julio/Agosto, número 77. Cadep, Asunción, 2023.

[6] Guilherme Borges Almeida. Campesinos que insistem em não desaparecer: perspectivas para a resistência do campesinato no Paraguai. In: Realidad Campesina e Indígena en Paraguay. Abel Irala, Alma Monges, Félix Pablo Friggeri, Guilherme Borges Almeida (Organizadores). Base Is, Asunción, 2023.

[7] Codehupy. Informe Chokokue. Ejecuciones y desapariciones en la lucha por la tierra en el Paraguay (1989-2005). Codehupy, Asunción, 2007; Codehupy. Informe Chokokue 1989-2013. El plan sistemático de ejecuciones en la lucha por el territorio campesino. Codehupy, Asunción, 2014.

[8] Leticia Arrúa, Lis García y Guillermo Ortega. Institucionalización del agronegocio transgénico en Paraguay. Base Is, Asunción, 2023.

[9] Tomás Palau (2010). La política y su trasfondo. El poder real en Paraguay, en Es lógico que una sociedad agredida se defienda. Recopilación de artículos 2008-2011. Tomás Palau Viladesau. Base Is. Asunción. Paraguay.

[10] Verónica Serafini Geoghegan (2017). Élites y captura del Estado. Paraguay: un estudio exploratorio. Decidamos. Campaña de Expresión Ciudadana. Asunción. Paraguay.

[11] Em guarani: “Eles enfraqueceram e arruinaram a organização.”


 [SD2]
Nota de edição: O autor refere-se a atividades extrativistas no sentido em que o termo é utilizado em espanhol, ou seja, atividades de extração e exploração de recursos naturais e de produção agrícola em grande escala voltadas para exportação.