“Precisamos de trens elétricos, não de carros elétricos”

O autor estadunidense Peter Norton defende uso de transporte sobre trilhos como caminho para reduzir emissões e impactos da mobilidade no clima
08/11/2023
por
Daniel Santini*

Peter Norton estuda ruas, pessoas e transportes. Ele escreve sobre o passado e o futuro da mobilidade urbana. Em seu livro Autonorama, Norton faz um levantamento dos ciclos de promessas feitas pelos fabricantes para manter um horizonte de esperança de que, um dia, será viável a mobilidade organizada a partir de automóveis individuais. A obra foi publicada originalmente pela Island Press e agora traduzida pela Fundação Rosa Luxemburgo em parceria com a editora Autonomia Literária. O livro foi apresentado em outubro no Brasil em uma série de eventos com participação do autor realizados em São Paulo (SP), Recife (PE) e Belo Horizonte (MG).

Professor associado do Departamento de Engenharia e Sociedade da Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos, é considerado um dos principais historiadores da indústria automobilística do planeta e tornou-se referência nos Estados Unidos em debates sobre tecnologia.

O pesquisador lembra que não é a primeira vez que carros sem motorista são anunciados como solução. E detalha como novas fantasias são sempre criadas para preencher o espaço deixado pela frustração com as anteriores. Gerando, assim, ciclos em que as expectativas em relação às inovações se dissolvem sempre em fumaça, buzinas e engarrafamentos.

Qual a relação entre mobilidade e mudanças climáticas?

Em todo o mundo, 20 a 30% das emissões de gases de efeito de estufa são atribuíveis aos transportes, a maior parte ao transporte rodoviário com veículos a motor. Por isso, é aí que temos de concentrar grande parte dos nossos esforços. No meu país, os Estados Unidos, é cerca de 29%, um percentual muito elevado.  É aí que vejo a maior oportunidade de reduzir as emissões de gases de efeito de estufa. Também temos emissões na agricultura, na geração de energia, mas talvez a maior oportunidade esteja nos transportes.

Se conseguirmos encontrar uma tecnologia ou combustível mais eficiente não daria para pensar em uma forma de cada pessoa ter um veículo motorizado individual para se deslocar? Isso é impossível?

Antes mesmo de responder sua pergunta, quero questionar qual o interesse de manter o transporte baseado no uso extremamente intensivo de energia que temos hoje. Se a gente imaginar que seria tecnologicamente viável tornar esse transporte sustentável, só por uma questão de argumento, a próxima questão é: porque queremos isso?

Há problemas de custos, de segurança. Quanto mais se dirige, maior é a exposição ao risco, de tal modo que, mesmo que a direção se torne mais segura, o aumento de pessoas dirigindo anula esse benefício. Por isso questiono a pergunta.

Agora, mesmo que eu aceite a pergunta, preciso perguntar: como isso se tornaria possível? Veículos elétricos com bateria podem nos oferecer algo, mas não tudo o que prometem. Então não vejo maneira de responder “sim”, mesmo se aceitasse que é a pergunta correta. 

Podemos considerar que os carros inteligentes sem motorista são parte da solução para as mudanças climáticas e parte do futuro?

Não, isto é um absurdo inventado pelo marketing. O objetivo do marketing é vender, a verdade não é relevante. E foi-nos vendida a história de que os veículos robotizados permitirão um aumento de eficiências, ao ponto de se tornarem sustentáveis. Isto é um absurdo quase óbvio. Os tipos de eficiência de que se fala são insignificantes quando comparados com a exigência intensiva de energia desse tipo de transporte.

Também questiono o adjetivo “inteligente”. É um adjetivo falso, não tem qualquer validade. O componente mais inteligente de um automóvel comum é o condutor humano. Qualquer substituto robótico ou computorizado desse motorista mal pode competir com a inteligência real, adaptável e versátil de uma pessoa. Os carros robóticos são bastante burros em comparação com um ser humano. 

Qual é a diferença entre automação e autonomia? Podemos considerar que um dia teremos carros realmente inteligentes?

Automação é uma palavra comum, falamos de automação desde o século XIX. Autônomo é, na minha opinião, um termo completamente falso quando nos referimos a engenharia. Engenheiros se opõem a mim quando digo isso.

Eles dizem: “bem, na engenharia temos um sentido especial para a palavra autonomia. Não queremos dizer que uma máquina tenha, de fato, vontade, critério ou intenções próprias. Usamos um termo especializado, como engenheiro”. 

Então pergunto como é que isso é possível, uma vez que, de fato, o objetivo da chamada autonomia é desenvolver uma máquina incapaz de fazer qualquer coisa que não seja o que engenheiros querem que ela faça.

Isso significa que, na realidade, querem uma máquina determinística. E uma máquina determinística é o oposto de uma máquina autônoma.

Desafiado pelo questionamento dos engenheiros, procurei a origem do sentido que a engenharia dá para a palavra “autônomo”. E é um completo disparate. A utilização original em engenharia foi feita pela NASA, que nos anos 60 disse: “Queremos o projeto de uma cápsula espacial autônoma. Vocês podem nos mostrar seus projetos?”, eles disseram às empresas. 

O que eles queriam dizer era “queremos uma cápsula espacial com uma janela para que a tripulação humana faça como [o navegador português Fernão de] Magalhães fez, use navegação celestial. E isso dará à cápsula espacial independência dos sinais de comunicação vindos da Terra”. Era isso que eles queriam dizer com autonomia. E por esse padrão, do sentido original de engenharia de autonomia, um carro comum de 1950 é autônomo, porque o condutor pode ver e dirigir. Era esse o verdadeiro significado de autonomia.

Na década de 1980, no Pentágono, os burocratas decidiram chamar sistemas robóticos de sistemas autônomos, presumivelmente porque soavam de forma mais impressionante. Isso não só é impreciso como é um logro, porque um veículo autônomo, o que eles realmente querem dizer, é um veículo sem qualquer autonomia.

Um veículo que tenha realmente alguma autonomia, bem, é como criar um monstro. É o Frankenstein. Frankenstein é uma história sobre dar autonomia a algo e é um alerta de que a autonomia não é inerentemente o que queremos.

Quais são as soluções reais para as mudanças climáticas na mobilidade urbana?

A primeira solução é rejeitar o termo solução. “Solução”, tal como a “autonomia”, é uma palavra inventada em parte para deturpar o que a tecnologia pode fazer. 

A tecnologia não pode resolver nada. Nunca resolveu nada. São as pessoas que resolvem as coisas. Quando resolvemos coisas, normalmente resolvemos com a ajuda de tecnologias. Mas é muito importante reconhecer que, quando um ser humano resolve um problema com uma tecnologia, é o ser humano capacitado pela tecnologia que resolve o problema. Não é a tecnologia que resolve o problema. 

Agora, se estivermos na área do marketing, é muito atrativo apresentar erradamente a tecnologia como a solução, porque assim se vende mais. É como a magia. Arthur C Clarke disse que qualquer tecnologia avançada o bastante é indistinguível da magia. Os profissionais de marketing sabem disso e tentam aproveitar este sentimento que as pessoas têm, de que tecnologias fantásticas são mágicas, porque isso vende coisas.

Para responder sua pergunta, o que precisamos é de ferramentas. Ferramentas, ao contrário de soluções, dão poder a quem as utiliza. Tornam o usuário responsável, dão escolhas ao usuário. O usuário escolhe a ferramenta e escolhe o trabalho, a tarefa, na qual vai utilizar a ferramenta.

Nós temos ferramentas incríveis. Temos bicicletas convencionais e elétricas; temos trens elétricos que não precisam de baterias porque recebem energia aos cabos aéreos ou de um terceiro trilho; temos bondes. Os ônibus não são perfeitos, mas são úteis. Podemos melhorar os pontos de ônibus. Só nos EUA gastamos 200 bilhões de dólares no desenvolvimento de carros robóticos. Podíamos ter dado a cada pessoa seu ponto de ônibus individual, com esses custos.

Portanto, é isso que podemos fazer. Para começar, precisamos reconhecer que precisamos de ferramentas que nos empoderem, que empoderem as pessoas que, de fato, precisam ir a lugares e rejeitar “soluções”.

Qual a diferença entre discutir isso em países do Norte Global e em países do Sul Global, como no Brasil?

Meu conhecimento sobre o debate no Sul Global não é extenso, por isso não tenho uma resposta segura. Posso dizer que no Norte existe uma ilusão, criada pelo marketing, de que todos podem pagar por este futuro que está sendo vendido a nós. Isso não é verdade em nenhum país do mundo, por mais rico que seja. Essa ilusão é criada pelo fato de as empresas que nos querem vender esses carros estarem dispostas a perder muito dinheiro subsidiando seus próprios serviços. Custa mais dinheiro para uma empresa oferecer um serviço de robotáxi do que ela jamais vai conseguir recuperar. Mas as empresas estão dispostas a perder esse dinheiro porque esperam nos convencer de que tem soluções. E daí vão ter soluções pelas quais não poderemos pagar. 

Agora, se olharmos para isto a nível mundial, isto significa que os países com rendimentos mais baixos estarão numa situação ainda pior. Na verdade, este é um tipo de perspectiva neocolonialista, porque as pessoas que vendem essas tecnologias enxergam o Sul Global como fornecedor de minerais. Do cobalto, do lítio, do níquel, do manganês, do cobre que vão tornar tudo isso possível. Cada um desses minerais tem efeitos devastadores e não há quantidade suficiente deles, mesmo que a gente ignore os efeitos humanos e ecológicos devastadores de fornecer esses minerais na quantidade em que serão demandados.

 O que significa AUTONORAMA, o título de seu livro?

O nome é um mistério que vou revelar agora. Nos anos 30 a indústria automobilística, a começar pela General Motors, teve uma percepção muito importante e nós vivemos com essa percepção até hoje. É a visão de que eles podiam vender um carro de cada vez e isso era bom para ganhar algum dinheiro. Mas podiam vender muito, muito mais automóveis, podiam vender estradas também, prometiam um futuro para dali a 20 anos, onde tudo seria perfeito porque todo mundo dirigiria o tempo todo.  Porque todas as cidades seriam lugares onde você poderia dirigir para qualquer parte, sem demora nem atraso, e estacionar em seu destino quando chegar lá. 

A General Motors foi a primeira a perceber isso, não foi a única. Eles inventaram uma palavra para essa ideia: Futurama, que combina “futuro” com “diorama”, como uma visualização, um display. Sabiam que para convencer as pessoas de que esse futuro era possível teriam que mostrá-lo de uma forma muito vívida, atraente. E foram muito engenhosos ao fazer isso. 

Estamos na quarta geração dessa venda de futuros impossíveis. Eles são impossíveis, mas são feitos para parecer possíveis porque estão sempre associados à tecnologia mais recente. A tecnologia mais recente, agora, é a tecnologia mal chamada “autônoma”. Ela é a base, a justificativa para dizerem que “finalmente, até que enfim”, depois de cem anos, a dependência de carros vai funcionar. É a tecnologia “autônoma” que vai, em tese, fazer a gente acreditar nisso. 

Então decidi conectar “autônomo” com a velha promessa de “futurama” para que a gente possa perceber que se trata da mesma promessa. Assim a gente pode reconhecer que esta promessa foi quebrada todas as vezes anteriores. E assim a gente pode perceber porque não devemos acreditar nela, mais uma vez.


*Daniel Santini é coordenador de projetos da Fundação Rosa Luxemburgo – Brasil e Paraguai e autor do livro Passe Livre – As possibilidades da Tarifa Zero e a distopia da uberização.