Teoria Bicha: feminismo interseccional pautado nos afetos

Neon Cunha é uma mulher negra ameríndia transgênera, 51 anos, vivendo no Brasil "com todos os marcadores, dores, alegrias e desafios de ter que se tornar grande em um lugar que exige que você se apequene para ocupar espaços e existências, em um mundo não foi feito para você".
13/12/2021
por
FRL
Neon Cunha – Arquivo pessoal

            Neon Cunha é uma mulher negra ameríndia transgênera, 51 anos, vivendo no Brasil “com todos os marcadores, dores, alegrias e desafios de ter que se tornar grande em um lugar que exige que você se apequene para ocupar espaços e existências, em um mundo não foi feito para você”. Falar de si, das dores, das violências sofridas dentro e fora de casa, para Neon não é feito para sensibilizar, mas para que tais práticas, ameaças e intolerâncias não voltem a se repetir. 

            Neon tornou-se emblemática, ao transformar em luta pública e política, a sua revindicação pela troca do nome em seus documentos. Foi a primeira pessoa trans ter o nome trocado nos documentos, sem apresentar laudo médico que sugestiona a transgeneridade como um distúrbio psiquiátrico. Ao longo de 2016, Neon publicizou essa luta, ao afirmar que não ter seu nome trocado, seria uma morte assistida pelo Estado. Na contramão das sentenças assinadas até 2016, o processo de Neon foi aceito, utilizando a Constituição Brasileira de 1988: “o direito ao auto reconhecimento. É importante que as pessoas observem que a neutralidade do Direito não existe. O que existe é interpretação pautada em privilégios.

            Para Neon, é urgente que, ante a discussão sobre transexualidade, é necessário e urgente que se discuta heteroafetividade e não só a homoafetividade. “Porque nós, mulheres trans, somos vistas como heterossexuais, na maioria das vezes. A validação do gênero passa pelo crivo do macho ainda”. Em uma sociedade falocêntrica, cisgenerizada e com condutas misóginas naturalizadas, para Neon “desgenitarizar é ampliar a afetividade. O problema toda da hipersexualidade é a ideia do genital. O corpo é instrumento de gênero e só. Esse campo afetivo é um lugar de disputa para mulher. O privilégio cis está posto a partir da genitarização”.

            Ter um nome é um símbolo de luta e busca pela experiência de liberdade. Neon critica as tendências a tornar a condição transgênero em algo maior do que a existência: “você não vê nenhum outro feminismo que comece com a condição como  transfeminismo”.  Para a publicitária e ativista, tal tendência, impossibilita a discussão da produção de políticas públicas, ao condicionar o pertencimento a um processo científico masculino. “A quem pertence esse corpo? Eu preciso do feminismo para posicionar minha existência e a disputa das políticas públicas. A busca do corpo é uma luta para todas nós: mulheres trans e cis”.

            “Não sou transfeminista. Não posso mais achar uma só condição para a minha existência. A questão racial se deu muito mais forte para a minha existência. Isso me faz ver o mundo de outra forma”. Neon destaca que nesta busca pelo corpo que também pode ser lida, como a busca pelo direito a existir, o feminismo negro serve como espaço de acolhimento, amparo e força. De acordo com a ativista, é no feminismo negro que o capacitismo, sexismo, cis-sexismo terão outra dimensões e profundidades.

            Para ela, “o feminismo negro é o lugar da afetividade assertiva. Marielle falava muito bem disso. Quando você pensa no feminismo negro que resgata a ancestralidade, que está discutindo religiosidade principalmente no campo da matriz africana, mesmo com o avanço das igrejas neopentecostais, no Brasil. No campo da afetividade estamos assumindo responsabilidades. É diferente desse papel utilitário”, ultrapassando a questão de inclusão e políticas de governo, mas se convertendo a um espaço de afeto e cura, se tornando urgente discutir a Saúde Integral da População Trans Negra, afirma.

            “A maior contribuição das pessoas trans para os feminismos é dizer que não precisa se fechar num processo. Podemos iniciar um e continuar construindo. Gostaria de mudar a Teoria Queer para Teoria Bicha que é quem não está performando a cis heteronormatividade. Teoria Bicha é a mutação. Sou bichérrima. Sejamos mais bichas”! Para Neon, a Teoria Bicha compreende de que não há um “espaço de disputa”, uma vez que este é um espaço de construção contínua alcançado pela interseccionalidade.

            Em 2020 foram registrados 175 assassinados de pessoas trans no Brasil, 41% a mais do que em 2019. Tais números, colocam o Brasil há anos no ranking de país que mais mata trans no mundo. Por outro lado, é o país que mais consome produções pornográficas trans e “provavelmente, o país com a maior população em prostituição”. Fazendo do Brasil um lugar inconsistente e incoerente quando o assunto é liberdade e desejo.

            “Não vejo como contradição, vejo como desejo. Somos o país que ressignificou códigos da transvestilidade, reivindicação inclusive acadêmica no pensamento travesti que está em pauta. Eleger pessoas trans, ao meu ver é o processo natural porque a grande maioria das eleitas é negra. Assim como muitos consideram a prostituição como um dos lugares mais podres da sociedade, a nossa política é um dos lugares mais podres e nossas mulheres estão nesse lugar de enfrentamento”.


            De acordo do Neon, a construção de uma rede de solidariedade latino-americana se dará ao assumirmos a responsabilidade de se reconhecer ameríndia e dissipar as fronteiras, “pensar a fronteira como um processo não material, mas ideológico. Para criar redes precisamos vencer  a barreira do idioma, essa barreira intelectual. E este será o nosso papel quanto mulheres negras, feministas ou não:  incluir a pauta educacional. Porque não dá mais para ser do jeito que é.”

            É na educação, por meio de novos paradigmas educacionais que a contra colonialidade poderá ser empreendida e estruturada. “Somos fruto da colonização. Na verdade, somos frutas. E vamos frutificar o contra colonial e é por meio da educação. É preciso observar e tensionar para que o decolonial repense o capitalismo. O Brasil precisa assumir este lugar contra-colonial e abandonar a lógica e tentativa de ser um outro EUA. A nossa colonização não passa por isso”.

            “O Brasil ainda é colonial. Somos o efeito desta colonização tardia e em curso. Falamos o idioma do colonizador. A nossa aculturação é colonial. Precisamos buscar o decolonial, já que não descolonizamos muita coisa não. A decolonialidade (re)constrói perspectivas dentro do sistema colonial, é disso que precisamos”.

            “Precisamos nos perguntar: o que as pessoas cis estão fazendo pelas pessoas trans? Afetividade é muito mais sobre o que estou disposta a oferecer do que estou disposta a receber. O destino do rio é virar mar”, encerra Neon Cunha.

*Bicha: termo usado por muito tempo de forma pejorativa para se referir a homens homossexuais que performavam uma feminilidade. As gerações mais jovens se apropriaram da palavra e a ressignificaram de forma a ser uma expressão de orgulho para quem é homossexual. No caso das mulheres, houve algo similar com a palavra sapatão.